quinta-feira, 10 de junho de 2010

TELEFANZINE - Um formato realmente inovador ...

Acabo de receber do camarada Jesuíno André, via e-mail, uma interessante matéria sobre o "Telefanzine", uma espécie de fanzine via telefone que existia em Salvador na década de 90. Usei muito esse serviço daqui mesmo, de Aracaju, e atesto que era realmente bem legal, muito bem feito para a época. Era como se você estivesse ouvindo um programete de rádio de 4, 5 minutos, via telefone, com informações sobre o rock independente baiano - que estava numa excelente fase na época, com bandas seminais como Dead Billies e Dois Sapos e Meio em plena atividade. Lembro que ligava sempre que podia - tipo, tava no cinema esperando o filme começar, ligava pro telefanzine pra ouvir as novidades e matar o tempo. Uma idéia sensacional, mais uma das muitas histórias do cenário alternativo que precisam ser resgatadas, para que jornalistas desavisados não continuem achando que o rock independente brasileiro só passou a existir quando a Petrobras resolveu patrocinar alguns festivais da Abrafin.

Abaixo, a materia completa.

A.

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Na década de 90, um novo cenário começava a se delinear para o rock na Bahia. Ainda longe de serem sucesso, algumas bandas já passavam a tocar com alguma regularidade em Salvador, consolidando eventos e casas de show – ainda que precárias – como espaço cativo dos roqueiros locais. Bandas como Inkoma (da qual saiu a cantora Pitty), Lisergia, Dois Sapos e Meio, brincando de deus, The Dead Billies, Malefactor, Saci Tric, entre outras, apesar das diferenças de estilo compartilhavam um público jovem em formação.

Mesmo diante desse quadro em transformação, de uma maneira geral, o rock baiano permanecia à margem para os veículos locais, que não davam conta de divulgar ou refletir a movimentação que ocorria. Ou melhor, o rock de maneira geral e a cultura em torno dele não tinham voz nos meios de comunicação convencionais da Bahia, que pareciam entender tudo aquilo como excêntrico e sem correspondência na identidade cultural da região. Nessas circunstâncias, partiu da iniciativa do próprio público a criação de um canal de informação e diálogo que o atendesse. Surgia então o Telefanzine – uma caixa postal telefônica que fornecia notícias sobre agenda de shows, lançamentos, comentários e entrevistas sobre a cultura rock na Bahia e no mundo.

Criado por Ednilson Sacramento, um agitador cultural residente da Fazenda Grande do Retiro (periferia de Salvador), o Telefanzine permaneceu à disposição do público através do número 71 533 6640 durante cerca de 6 anos, a partir de 1994 ou 1996 – as datas não são precisas por falta de registros. Ednilson conta que era uma versão dos tradicionais fanzines que já fazia na época, com a diferença de se apropriar de uma tecnologia bastante popular: o telefone. “Percebi a possibilidade de transmitir notícias por via eletrônica. Criei o Telefanzine porque, além da possibilidade de colocar idéias e informação por um número telefônico, podia, de forma inédita, experimental e livre, estabelecer uma rede informativa ‘acessável’ de qualquer lugar em que se podia usar um telefone – da praça, do trabalho, do orelhão”, afirma.

Ednilson recorda que média diária nos primeiros meses girava em torno de 80 chamadas, mas com o passar do tempo esse número subiu para mais de 280 ligações – o sistema de caixa postal permitia múltiplos acessos simultâneos. As pessoas ligavam e podiam escutar programas corridos com duração de cerca de cinco minutos, pagando a tarifa normal do pulso telefônico. O Telefanzine também abria espaço para interação com o público: “Ao final da programação o ouvinte podia deixar um recado ou participar de alguma promoção para faturar um ingresso para show ou coisa parecida. Outra forma era o e-mail ou uma ligação telefônica para contato direto, no caso de produtores e pessoal integrante de bandas”. As mensagens gravadas entravam no programa do dia seguinte.

Mobilização - No começo, segundo Ednilson, eram apenas dois ou três colaboradores, mas ao longo da existência do Telefanzine, chegaram a ser mais de sete, entre outros que faziam participações especiais. “Cada quadro ia ao ar em um dia da semana”, explica. Esses colaboradores faziam suas “colunas” voluntariamente, assim como ele mesmo. Eram pessoas direta ou indiretamente ligadas ao cenário rocker local, que forneciam informações acerca de temas que lhes interessavam em especial. Em outras palavras: eram amadores no melhor sentido, uma vez que tinham interesse em compartilhar o conhecimento fruto de pesquisas motivadas por suas paixões pessoais.

O perfil desses colaboradores era tão diverso quanto a variedade dos temas que tratavam, como conta um deles, o jornalista Leonardo Parente. Ele enumera:“Carlos Navarro (filósofo) falava sobre arte, e o ‘rock triste’ de bandas como The Smiths, My Bloody Valentine e Joy Division, entre outras; Robson Pinto (comerciário) trazia notícias sobre punk e hardcore, sendo até hoje ativista na cena; Rodrigo Chagas (que se tornaria vocalista das bandas The Honkers e The Futchers) se dedicava ao rock mais antigo; Isaac Filho (jornalista), fazia uma abordagem sobre cultura pop de maneira geral; Eduardo Marques (técnico da Telebahia, então estatal da telefonia baiana) fazia uma geleia geral com esportes e comportamento; Miwky (funcionária pública) comentava sobre indie rock, e Lisiane Braga (estudante) focava o heavy metal”.

Na época, Leonardo era estudante e freqüentador de shows, sendo o Telefanzine o que ele considera como sua primeira experiência jornalística. Seu espaço era dedicado à internet, então grande novidade, fornecendo dicas de sites de bandas, entre outras informações ligadas à música. Ele acredita que o Telefanzine foi talvez o mais relevante catalisador para a cena cultural alternativa de Salvador e atribui a ele – direta ou indiretamente – o fortalecimento de uma rede de relacionamentos que proporcionou o surgimento de bandas e eventos na cidade.

Outro ouvinte e colaborador eventual, Luciano Matos, também jornalista e produtor de festas com enfoque em música independente, lembra do zine com entusiasmo: “Ele era a mídia que existia para um circuito que na época era muito mais off midia, off tudo. Era a referência para saber o que acontecia no cenário rock e afins, muito mais do que qualquer jornal, rádio ou TV”. Ele aponta que atualmente existem sites e blogs que cumprem o mesmo papel, mas acredita que faz falta porque era um modelo diferenciado, o que também é lembrado por outro ouvinte, Hendrik Aquino, que na época tocava bateria na banda Dê Cream Cracker – “Ednilson teve a grande sacada de criar uma espécie de rádio pelo telefone, dando uma dinâmica especial aos programas diários. A cobertura permitia, por exemplo, que alguém ligasse em pleno show, registrando o momento com o som da banda ao fundo, o que dava aquele clima de reportagem ‘ao vivo’. De qualquer canto era possível ouvir e deixar uma mensagem, o que estimulava a participação e troca de informações. O ouvinte era também o repórter”.

O alcance do veículo não se restringia a Salvador. O radialista Rodney Brocanelli era um ouvinte de São Paulo, que tomou conhecimento do zine a partir de uma lista de discussão sobre música independente. “Foi pelo Telefanzine que eu fiquei sabendo da existência da Pitty. Nessa época, ela integrava o Inkoma. Era bacana de acompanhar a movimentação da cena rocker de Salvador. Afinal, naquela época a axé music era o produto musical de exportação mais conhecido do público do eixo Rio-SP”, lembra. Rodney, que chegou a dar entrevistas para o zine a respeito rádios piratas no Brasil, se interessou pelo cruzamento de linguagens e mídias, que considerava bastante original – “O Telefanzine juntava duas linguagens: a do fanzine com o de um programa de rádio e divulgava isso por um meio bastante diferente: o telefone. Não fiquei sabendo de outro projeto nesse sentido sendo tocado à época”.

Ednilson, com orgulho de ter sido o criador, acredita que “naquele momento, o Telefanzine conseguiu unir pessoas, permitiu a troca de idéias e insultos, formou uma massa crítica dentro de uma juventude acuada pela massificação da grande mídia, projetou pessoas que puderam, mais tarde serem conhecidas por outras pessoas”.

Sem registro - O sistema de edição do Telefanzine era bastante precário, envolvendo gravadores de fita cassete e as gravações feitas diretamente na caixa postal eletrônica. A linguagem era semelhante à do radiojornalismo e o conteúdo era atualizado diariamente. Ednilson recebia as colaborações e montava tudo sozinho, varando as madrugadas em sua casa. Devido a essas condições, maior parte das gravações se perdeu ou encontra-se em estado deteriorado, o que comprometeu lamentavelmente o registro de um momento peculiar de efervescência cultural na capital baiana, assim como de seu principal veículo.

O Telefanzine era mantido pelo investimento pessoal de seu idealizador, que custeava o aluguel das caixas postais, contando eventualmente com o apoio de pequenos anunciantes – algumas lojas que atendiam ao público do segmento, como as extintas Na Mosca e Coringa, que comercializavam discos, publicações, camisetas e outros produtos. Apesar de jamais ter sido lucrativo, ou ter alcançado condições de ser mantido sem gerar custos, o fator determinante para o encerramento do projeto foi a desativação da modalidade de telefonia virtual da operadora baiana. “Era o boom do telefone celular e, simplesmente, a empresa encerrou o serviço”, recorda Ednilson.

A militância, no entanto, continuou. Com a experiência e conhecimento acumulados, em 2006 Ednilson lançou o livro Rock Baiano – História de uma Cultura Subterrânea, resultado de mais de dez anos de pesquisa realizada sobre o cenário musical alternativo de Salvador. Atualmente, ele cursa Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, na UFBA, ao mesmo tempo em que faz parte da diretoria da Acesso e Reintegração À Comunicação, Cultura e Arte (ARCCA) e também da Associação Baiana de Cegos, além de coordenar projetos sociais na área de direitos humanos, sobretudo no segmento de pessoas portadoras de deficiências.

Fonte: Cultura e Pensamento

por Juliana Protásio

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