segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

BOWIE

É difícil imaginar um mundo sem David Bowie – ainda mais agora, à luz da notícia de sua morte. Mas o fato é que o mundo seria um lugar bem pior se David Bowie não tivesse existido.

Bowie transformou a sensação de estranhamento que todos nós sentimos – em maior ou menos escala – em grande arte. Estranhamento em relação ao mundo, à sociedade, à vida, a si mesmo. Contemporâneo da geração de ouro da história do rock (era cinco anos mais novo que Paul McCartney, dois anos mais novo que Pete Townshend e Eric Clapton), ele chegou tarde nos anos 60 para garantir presença no panteão que mudou a história da cultura ocidental. Mas não sem motivo. Ao lançar a própria carreira no final da década do rock clássico, ele a sincronizou com um momento único na história da humanidade e fez-se notar pela primeira vez lançando uma música sobre a solidão no espaço sideral e o olhar frio e distante sobre o planeta, a Terra, o mundo, nós mesmos.

“Space Oddity'' não era apenas o hit que a BBC escolheu como trilha sonora para a chegada do homem à Lua em 1969. Ela lançava questionamentos num tom solene para uma geração que ainda iria acordar do sonho hippie. O festival de Woodstock aconteceria um mês após aquele momento e em menos de seis meses os Rolling Stones trariam – no fatídico festival de Altamont – para a realidade o temor pressentido por Dennis Hopper em seu filme Easy Rider – Sem Destino. A era da paz e do amor terminaria com nervos à flor da pele e ao lançar sua carreira naquele exato momento Bowie se desprendia da geração que achava que deveria pertencer – a dos Beatles e dos Rolling Stones – para criar a sua própria era.

E sempre à sombra do estranhamento. Usar o espaço sideral como trampolim para sua carreira foi providencial para seu segundo ato, quando criou o alienígena Ziggy Stardust, no início dos anos 70. Aquele personagem era tudo que a década de 70 precisava antes de virar uma enorme caricatura de si mesma: andrógino, de cabelos vermelhos, tapa-olho e guitarra em punho, o conto de fadas glam rock contado em um de suas obras-primas (o mítico The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972) era uma celebração e uma crítica ao status atingido pelo rock, em que Bowie se vendia como um híbrido de deus inatingível e item de consumo, na melhor definição do que é um popstar.

Ziggy também foi uma fórmula para as diferentes personas que Bowie assumiu desde então – o exilado em Berlim, o outsider, o líder do Tin Machine, o pierrô new romantic, o Thin White Duke -, bem como para outros personagens que viveu graças à moda, ao comportamento e ao cinema (como o senhor cool, o Rei Goblin, o marido da supermodelo, Nikolai Tesla, o gay chique, o pacificador em Zoolander). Gravou com John Lennon e Mick Jagger, apresentou ao mundo Lou Reed (e, de brinde, o Velvet Underground), Iggy Pop (e, de brinde, os Stooges), o Kraftwerk (e, de brinde, a música eletrônica) e chancelou Brian Eno como produtor. Culpe-o também pela popularização do saxofone, instrumento que tocava – e o que pode ser mais cool do que David Bowie tocando sax?

Apesar de ícone do rock e autor de riffs e refrões memoráveis, ele era um artista clássico e classudo que usou o rock como veículo para voos mais audazes e foi um dos popstars que melhor souberam lidar com o jetset, sempre em voga. Transitou entre a ficção científica e a música eletrônica, entre a atuação e a moda, entre discussões sobre sexualidade e drogas. E que compositor – suas maiores canções são baladas tristes e contemplativas que o alinham a compositores como Cole Porter, Noël Coward, Scott Walker, Leonard Cohen.

Nestas canções sempre cantou sobre as transformações que viveu e quase sempre contemplava a morte – até em seu último disco, Blackstar, repleto de referências ao seu capítulo final. Ela não parecia tão próxima porque já pareceu estar mais próxima – na virada da década passada, auge do período de reclusão do artista, os boatos sobre sua morte vinham e voltavam com frequência (a ponto até dos Flaming Lips terem composto uma canção que perguntava se ele estava morrendo). Por isso sua persona mais recente (começada com o disco The Next Day, no início de 2013) parecia anunciar uma nova vida – e confesso que escrevi sobre a reinvenção de seu envelhecimento à luz de seu novo disco com uma ponta de felicidade, ao perceber, como todos nós, que ele ainda tinha muito o que dar.

Hoje, como todos, engulo em seco ao lembrar que uma possibilidade que temia há cinco anos, finalmente se materializou. Vivemos agora em um mundo sem David Bowie – mais careta, menos cool, menos sexy, mais chato. As imagens e sons voltam pela memória (e a minha melhor lembrança é tê-lo visto de pertinho no show que ele fez em São Paulo em 1997 – assisti ao show inteiro do fosso dos fotógrafos), mas fica o legado de uma carreira em constante movimento, uma prova de que é possível envelhecer sem se conformar e uma lição contida no refrão de uma das minhas canções favoritas, “Changes'': “Vire-se e encare o estranho''.

Hora de encarar um mundo sem David Bowie. Boa sorte para nós.

por Alexandre Matias

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70 Anos de Syd Barret

Poucas pessoas mudaram sozinhas o curso de uma época a partir de suas ideias e conceitos – e a maioria destes revolucionários solitários são artistas. São raros músicos, artistas plásticos, cineastas e escritores que com uma forma de tocar um instrumento, um tipo de narrativa contagiante ou trazendo visões pessoais cativam toda sua contemporaneidade. Nomes como Stanley Kubrick, Miles Davis, Picasso e João Gilberto trouxeram versões personalíssimas de mundo que se espalharam para toda sua época e transformaram a cultura de seu tempo sem participar de um movimento artístico, correntes ideológica, política ou estética, quase sempre inaugurando novas linguagens. E um destes nomes completou 70 anos no último dia 06 – ou melhor, teria completado, caso não tivesse sucumbido às mesmas drogas que o transformaram em um ícone dos anos 60. Há sete décadas nascia na Inglaterra o menino Roger Keith Barrett, que ficou mais conhecido por seu apelido Syd e por ser o progenitor daquilo que nos referimos como música psicodélica.

Syd Barrett já teria seu lugar na história do século passado apenas pelo fato de ser o fundador do Pink Floyd. Mesmo não tendo participado dos discos mais populares do grupo inglês, sua influência é sentida em toda a carreira da banda e dois de seus principais discos – Dark Side of the Moon e Wish You Were Here – são homenagens ao legado do músico ao grupo e à amizade que fez o Pink Floyd existir.

Mas a força torta que fez o Pink Floyd extrapolar o padrão das bandas de rock inglês da época – tirando-o do meio das dezenas de bandas de blues ou rhythm'n'blues que tentavam transformar Londres em uma Chicago branca – foi a mesma que começou a retomar a autoestima da cultura inglesa num mundo em que esta havia sido ultrapassada pela norte-americana. O contato de Syd Barrett com as drogas lisérgicas – especificamente com o LSD, ainda permitido à época – fez com que ele vislumbrasse um futuro bem diferente para seu grupo, que à medida em que se distanciava da cultura hooligan chique dos mods e dos milhares de filhotes dos Rolling Stones começava a tornar a paisagem inglesa mais colorida e menos cafona. O país já tinha saído dos dias pesados depois da Segunda Guerra Mundial mas ainda pintava-se com os tons cinzentos de uma austeridade que não tinha mais eco frente à máquina de marketing que era a cultura dos Estados Unidos.

Syd começou a apontar outra direção. Pegou a Inglaterra pela mão e a levou para o final do século 19, quando contos de fada e um início de surrealismo coloriam o antigo império em que o sol nunca se punha com uma audácia e ousadia que pareciam nunca terem existido no século 20. Buscou o surrealismo inglês, o humor absurdo de escritores, pintores e dramaturgos esquecidos após duas guerras mundiais para começar a colorir a Londres dos anos 60. E aquele colorido começou a se espalhar pelo resto do planeta.

A Swinging London já estava acontecendo quando a banda de Syd Barrett apareceu. Era uma manifestação cultural que modernizava a velha capital europeia, trazendo-a para os dias de consumo frívolo e transgressões sociais da nova década. Uma série de transformações que misturava artes plásticas, rock'n'roll, drogas, a cultura mod, programas de rádio e de TV, moda e cinema e tornava a capital inglesa um ponto focal para o resto do mundo, farol de tendências e referência mundial de comportamento. Mas quando Syd Barrett e seu Pink Floyd sintonizaram-se àquelas transformações, as coisas começaram a mudar drasticamente.

Barrett apresentou a psicodelia para as massas, liderando uma banda que fugia de estereótipos rock'n'roll e experimentava jam sessions intermináveis alternando-as com canções dóceis e épicos audazes que descreviam cenas especiais, viagens no tempo, gnomos e viagens de ácido. Projetados sobre a banda, jogos de luzes gelatinosos criavam cenas multicoloridas que aumentavam ainda mais o grau das viagens sonoras do grupo. Os shows aconteciam em festivais que duravam a noite toda, precursores das futuras raves, e a banda vestia-se com roupas coloridas, cheias de franjas e babados, enquanto Syd dominava o público com sua presença magnética.

O carisma de Syd Barrett pode ser percebido nos poucos registros em vídeo que sobreviveram à sua fase na banda, quando começou a espalhar ondas tecnicolor que foram se espalhando pelo mundo, criando cenas psicodélicas em cidades como São Francisco, Los Angeles, Berlim, Paris e Nova York, além de dar origens a novos grupos e artistas no mundo todo. Essa distorção colorida da realidade influenciou até mesmo os Beatles e até hoje discute-se quem influenciou quem quando o Pink Floyd gravou seu primeiro disco no estúdio ao lado que os Beatles gravaram seu clássico Sgt. Pepper's. Graças à psicodelia difundida por Syd Barrett a música pop começou a buscar outros rumos e criar novos gêneros musicais, como o próprio heavy metal e o rock progressivo.

Mas o impacto foi muito maior que musical: a psicodelia tornou possível as transformações culturais propostas por David Bowie e Marc Bolan, programas de TV que hoje são ícones ingleses como a série O Prisioneiro e o Flying Circus do grupo Monty Python. Os quadrinhos ingleses foram influenciados diretamente por ela (e, assim, nomes como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison puderam reinventar os super-heróis nos anos 80), o culto ao Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien ganhou mais força, como a influência da obra de Lewis Carroll no imaginário inglês. Até subprodutos distantes como a acid house, a cena de Manchester dos Stone Roses e Happy Mondays, a obra do cineasta Danny Boyle, a cultura clubber e a moda inglesa foram são marcas fortes da influência de Syd Barrett na cultura inglesa e mundial. Isso sem contar a própria carreira do Pink Floyd.

Mas as mesmas drogas que abriram a cabeça de Barrett a fundiram de vez. Logo após o lançamento do primeiro disco da banda – o clássico The Piper at the Gates of Dawn, de 1967 – Barrett começou a criar problemas no palco, às vezes tocando um único acorde, às vezes sem se mexer ou não responder aos entrevistadores em programas de TV. Sua socialização foi se tornando cada vez mais comprometida e logo ele não poderia continuar na banda, sendo substituído pelo velho amigo guitarrista David Gilmour. A saída de Barrett não encerrou a relação da banda com o amigo, que continuou lançando discos (dois discos solo) com a ajuda dos integrantes do Pink Floyd mas, pouco a pouco, foi se fechando em casa e se tornando incomunicável. Largou a vida pública ainda nos anos 70, quando cortou o cabelo e começou a pintar. Morreu na Cambridge que o viu nascer, há dez anos, no dia 7 de julho de 2006. De lá para cá a família vem organizando o material do ícone psicodélico e, no aniversário deste ano, apresentou um novo site, repleto de informações inéditas (e muitas, muitas fotos, inclusive de suas telas e dos móveis que construía), que foi tão visitado em sua estreia que ficou fora do ar. É um bom fio da meada para quem não conhece o trabalho e a vida deste pioneiro psicodélico, um Ícaro moderno que queimou suas asas ao voar perto demais do Sol.

por Alexandre Matias

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