terça-feira, 9 de novembro de 2010

FESTIVAL DOSOL 2010


Terminou na madrugada deste último sábado a festa de abertura da edição deste ano do Festival Dosol, e o batismo não poderia ter sido melhor. Amp, de Recife, e o misterioso Love Bazukas, ambos especializados em tocar o chamado “rock de verdade”, despejaram guitarras amplificadas em altos decibéis sobre o público. O Centro Cultural Dosol recebeu uma platéia formada, em sua maioria, por integrantes de outras bandas escaladas para o festival, convidados, patrocinadores e imprensa. Começa efetivamente hoje, no Largo da Ribeira, na Rua Chile, a sétima edição do Festival.

Quem conhece a música do Amp não tem dúvidas. O quarteto sempre bebeu na fonte do stoner rock consolidado nos final dos anos 90, mas fez isso de forma a criar uma marca própria para. Quem ainda não tinha visto os rapazes do Recife se apresentando sobre um palco, percebeu do que eles são capazes quando colocam as manguinhas de fora. Poucas bandas têm dois guitarristas/vocalistas que passam todo o tempo de um show um mostrando ser melhor que o outro, como fazem Djalma e Capivara. O equilíbrio foi tão grande que até os amplificadores dos dois, castigados por riffs porradas, às vezes irresistíveis, pifaram juntinhos, ao mesmo tempo – descobriu-se depois que o motivo era a falha de outro componente da instalação elétrica.

No repertório, a ênfase nas músicas do disco de estreia, o esporrento “Pharmako Dinâmica”, não impediu que músicas novas fossem apresentadas. Todas em sintonia com a pegada pesada do grupo, que só realça os bons riffs criados na maior parte do tempo. Não é por acaso que o grupo é contratado da Monstro Discos; o Amp se identifica muito mais com a Goiânia Rock City do que com o Recife que não consegue se livrar do passado apegado às inefáveis referências regionais – algo hoje completamente démodé. Por isso o público de Natal, que com a consolidação paulatina do Festival Dosol, não é mais bobo, percebeu a diferença e caiu no rock do Amp.

Goiânia marcaria presença na atração seguinte, que teve a participação de Fabrício Nobre, do MQN, cantando no cover de sua própria banda: “Burn Baby Burn”, tocado pelo Love Bazucas. A banda que não está no mapa nada mais é do que o Black Drawing Chalks reforçado por Chuck Hipolitho, que durante anos encabeçou o Forgotten Boys (espécie de tio avô precoce da sonoridade de Goiânia) e hoje segue no Vespas Mandarinas. Ou seja, são três guitarras ao vivo e a serviço do riff e do esporro. Imagine um incêndio de grandes proporções e um piromaníaco injetando gasolina em cima. É mais ou menos por aí.

Além de covers que todo mundo queria ouvir, o grupo mandou músicas que estão no split CD (quatro músicas pra cada um) com o chileno Bonzo. Acredite se quiser, além da mistura punk/hard rock que o Forgotten Boys propagou, e o stoner do BDC herdado do mesmo Forgotten Boys, o grupo manda até um funkão arrebenta assoalho, que abriu o show, a ótima “Destroy This Little Boy”. Victor Rocha assume boa parte dos vocais, mas a presença de Chuck e o apelo que o grupo mostra com o acréscimo de uma terceira guitarra é algo realmente sedutor. Pena o show ter durado tão pouco – cerca de meia hora -, mas o projeto teve sua principal serventia: dar o pontapé inicial num festival cuja edição, a julgar por sua festa de inauguração, promete.

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O cronômetro foi ligado às 15h30 em ponto no primeiro dia do Festival Dosol para que as dezoito (!) bandas programadas se mantivessem no padrão pré-estabelecido de meia hora para cada show. Uma exceção, no entanto, teve que ser aberta. Aos gritos de “Mais um! Mais um!” o público exigiu e conseguiu que o Autoramas voltasse ao palco para tocar outra música. O grupo protagonizou uma espécie de “momento Beatles” ao ser equivocadamente escalado para o palco menor do festival. O resultado foi uma superlotação do bem que resultou na maior interatividade conseguida por um artista na edição deste ano.

Quem esperava o show do álbum acústico não encontrou violões e se deparou com uma apresentação visceral. Na ótima “Você Sabe”, re-incluída no set, o público delirou cantando o refrão a plenos pulmões e pulando sem parar; na balada “A 300 Km Por Hora” coube ao líder do grupo, Gabriel Thomaz, puxar o coro; e até músicas como “Catchy Chorus” e “1, 2, 3, 4”, do Little Quail, foram resgatadas numa noite desde já histórica para o Dosol e que deve servir de marco para a retomada da trajetória do trio, interrompida pelo tal projeto acústico. Numa noite cercada de surf music por todos os lados, perigava o Autoramas perder o trem da história e ser atropelado pela “concorrência” que ele próprio ajudou a criar.

O local Camarones Orquestra Guitarrística que o diga. Aclamado com um dos destaques da cena local, mesmo sem ter um único álbum no mercado, já estava colhendo cenas para um DVD a ser lançado cobrindo a série de shows feito pelo Brasil este ano. Teve o público na mão e com o volume de som alto pacas dinamitou uma mistura de surf music de raiz e a do tipo “australiana”, tudo com muita pegada punk – um dos guitarristas parece ter saído do Ramones anteontem. Da Argentina, o Tormentos foi prejudicado ao tocar a clássica surf music depois da tsunami do Autoramas, e o trio paraibano Sex on the Beach mostrou virtuose típica do norte-americano The Mermen. Na abertura o instrumental do Hossegor deu mais sinais de classic rock do que e surf music ao público que ainda chegava à Rua Chile.

A produção apostou em nomes recorrentes em outros festivais espalhados pelo Brasil. Grupos como Móveis Coloniais de Acaju, que fez o último show da noite com grande participação do público (e olha que foi o segundo em Natal esse ano); Black Drawing Chalks, o distribuidor oficial de esporro à granel; Nevilton, que, uma vez escalado muito cedo, sofreu para animar uma platéia incipiente, mesmo com a usual boa performance; e Superguidis, incrivelmente melhor a cada novo show, são exemplos de que, na prática, um circuito nacional de festivais já está se estabelecendo. O brilho do quarteto é inegável, cada qual com segmento e “tamanho” bem definidos.

Mas surpresas ocorrem, mesmo com veteranos como o Mechanics. “Uma péssima noite pra vocês”, desejou o vocalista Márcio Jr. logo de cara. “Somos uma banda movida pelo ódio e pela vontade de morrer”, vociferou em seguida, num prenúncio do que estaria por vir. Depois de uma pá de tempo cantando em inglês, a banda goiana partiu para as letras em português no disco mais recente, “12 Arcanos”, de onde boa parte do repertório foi retirada. Conteúdo mais claro só nos temas, já que o som discorre livremente entre o stoner, doom metal e grunge pesadaço, num festival de riffs que desaguou na primeira abertura de roda no meio do público no sabadão, e isso antes das 18h!

Como novidade, o Vespas Mandarinas, que ainda não fez nem dez shows, se saiu muito bem. O grupo é formado por ex-integrantes e bandas como Forgotten Boys, Banzé e Ludov e aposta numa veia entre a pauleira e a canção colante, no que se sai muito bem em músicas como a ótima “Impróprio”. Três quartos dos membros canta – e muito bem – encorpando ainda mais o som. Pena que a banda não pode mostrar mais serviço, já que dividiu praticamente metade do tempo com Fábio Cascadura. Juntos, eles encerraram o show com “Rádio Blá”, do Lobão. O indie rock com um pé no pós/positive punk foi representado pelo Sweet Funny Adams. Só que o grupo, já no nome, é espécie de banda cover com músicas próprias. Cada uma das canções, quando é iniciada, parece com algo já conhecido. Exceção feita para “The Killing Moon”, porque essa é do Echo And The Bunnyman mesmo.

Afora o Camarones, que reúne a duplinha Anderson Foca & Ana Morena, responsáveis pelo Dosol, a cena de Natal deixou a desejar no primeiro dia do festival. Aposta vencida já na edição passada, o Calistoga praticamente repetiu o show de antes, esvaziado ainda mais pelo sanduíche do Tormentos com o Black Drawing Chalks. Bem inexperiente, embora formado por integrantes cascudos, o Decreto Final vai de metal, hardcore e classic rock, mas parece mais banda de amigos de final de semana. Já o Venice Under Water é até bem intencionada, mas precisa refinar referências e melhorar muito os vocais.

Banda chilena, a Humana vai de metal e suas tendências, mas a cantoria linear do vocalista não ajuda. Só não ficou mais deslocado que a Orquestra Contemporânea de Olinda, chamada para tocar o baile e deixar os numerosos fãs do Móveis Coloniais de Acaju num imerecido castigo. O Cabruera também teve a mesma função, mas não contou com um público tão grande assim; a essa altura o tráfico de cervejas era o objetivo para suprir uma inesperada falta do líquido precioso em temperatura adequada nos bares.

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A turistada pode partir para as famosas praias escondidas atrás de dunas fenomenais, mas no domingo do Festival Dosol, a juventude de Natal só quer saber é de esporro mesmo. E chega sedenta na tarde encalorada para ver o bicho pegar. É uma espécie de redenção da música pesada local – e de outras cidades do Nordeste – que vai fundo no metal extremo e no hardcore. Não é dizer que a Ribeira, na região portuária, seja transformada na filial do inferno, mas é como se a chave da cidade estivesse entregue ao Cão em forma de gente.

Quando o Claustrofobia entrou no palco principal, no Armazém Hall, o ambiente já fazia jus ao nome do grupo. Nascido thrash metal, o quarteto paulistano evolui a olhos vistos e hoje faz um som pesadíssimo e em sintonia com o que vem lá do outro lado do Atlântico. Das raízes, o grupo traz a manha de cadenciar trechos de uma mesma música, alternado com porradas impiedosas. A novidade é a gravação do próximo álbum, o primeiro com letras em português, de onde saiu “O Pino da Granada”, como boa amostra do que vem por aí. O vocalista/guitarrista Marcus d’Angelo se adapta muito bem – já tinha feito o cover bem sacado para “Filha da Puta”, do Ultraje a Rigor. Mas foi com “Arise”, do Sepultura, que o público veio abaixo em monumentais rodas que sumiam e surgiam sem parar. Para quem acha que o metal brasileiro parou no Sepultura, taí a continuação.

O Nordeste sempre foi pródigo no som pesado nacional, e esta edição do festival não deixou barato, com Facada , do Ceará; Desalma, de Pernambuco; e a local Kataphero. Local o modo de dizer, já que o quarteto investe com precisão no death metal comum aos pares europeus, como o Hypocrisy, só para citar um exemplo. As guitarras às vezes limpas, melódicas até, dão um interessante contraste com a porrada que sai das caixas do Centro Cultural Dosol, abarrotado e encalorado. Com poucos – mas eficientes – solos, o grupo só peca pelo excesso de sons pré-gravados, a menos que um tecladista estivesse malocado atrás do palco para não dar bandeira.

Na cadência do thrash, o Desalma vem de Recife como o ímpeto da destruição. O trio aposta em levadas sombrias que logo avançam para a velocidade cruel que faz doer os ouvidos mais sensíveis. O resultado é um som técnico, bem tocado, mas sobretudo com alto poder de combustão, faísca ideal para que todos se debatiam na beirada do palco. Quase não se percebe, mas as letras que saem do vocal gutural são cuspidas em bom português, o que faz do grupo uma grata revelação no metal nacional. Ao Facada coube fechar a noite no palco menor, e o trio não fez por menos. Em poucos minutos despejou um crust/grincore esporrento para arrematar a noite. “Estamos aqui para celebrar o prenúncio do fim”, disse o baixista James, num dos intervalos. Vacilou quem saiu antes para ver o show de Marky Ramone, cujo início atrasou em quase uma hora.

Mais cedo, entre a turma do hardcore, a tarde foi de altos e baixos. A ansiedade pelo show do Garage Fuzz fez a produção iniciar a apresentação um pouco mais cedo. Antes do vocalista Farofa e sua turma entrarem já tinha gente se jogando sobre os outros em pensamento no Armazém Hall. O grupo fez um show correto e lembrou os bons tempos do hardcore melódico, antes da contaminação emo que praticamente tirou o importante subgênero de cena.

Incorreto é Mozine, dono de bandas toscas que fazem sucesso em Natal: Mukeka di Rato (a maior delas), Os Pedrero (a preferida da casa) e o Merda, no qual faz as vezes de guitarrista. Como de hábito, o grupo agradou geral. Tocando uma guitarra de brinquedo (mas que sai som) adquirida num camelô japonês, ele desencadeou as maiores rodas da tarde, quando o público ainda chegava ao festival. De quebra, homenageou o capixaba (o grupo é do Espírito Santo) mais ilustre, ao tocar uma impagável versão para “Quando”.

Apresentado como uma banda de “surf e lombra”, o Mahatma Gangue, de Mossoró, é na verdade um trio, que tem Rafaum (Distro) e Pedro (Catarro) na formação. Com músicas a serem melhor arranjadas e tocadas mais vezes, sobra vontade ao grupo, mas falta repertório mais definido e ensaiado. Já o AK-47 mistura referências a vários segmentos do metal, mas aparece mais por conta do vocalista, que tem o corpo cravado de agulhas durante o show e se banha de “sangue”. Duas bandas que precisam evoluir. Em tempo: por questões logísticas o Homem Baile não pôde ver o show das bandas Pumping Engines, Burn My Heart At Sunset e Todos Contra Um, todas locais.

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Todos os camisetas pretas de Natal, Mossoró, Caicó e adjacências, vivos ou mortos, foram ao domingão from hell do Festival Dosol. Os vivos saíram de suas casas, e os mortos, de suas tumbas. Se estivesse vivo, Nelson Rodrigues começaria assim uma crônica sobre a segunda e última noite da sétima edição do festival, cuja primeira parte foi encerrada ontem com dois mil garotos se digladiando ao som de Ramones no talo. Como é imortal, o pensamento vivo do Mestre vaga por estas linhas assim como vagavam os de Joey, Johnny, Dee Dee e o do próprio Marky, espécie de morto-vivo que continua a espalhar o legado do grupo que inventou a música punk aos lugares onde os parceiros, agora, só aparecem como almas penadas.

A Marky Ramones Blitzkrieg, com o vocalista do Misfits, Michale Graves, de cara limpa, cumpre o que promete: 32 músicas tocadas no talo e num pique de fazer inveja a muito adolescente por aí. Vinte e duas delas coladas umas nas outras, até que Graves faça um set acústico de três canções para que o público para de se matar ali, a olhos vistos. Entre “Beat On The Breat” e “Commando”, os cestos de lixo antes usados par recolher latas de cerveja amassadas, são lançados ao ar no meio da multidão. Vestido como o protagonista do filme “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, Graves segura a onda muito bem, já que Marky não arrefece um minuto sequer, realçando a diferença ente um baterista de banda cover e um legítimo Ramone. O vocalista ganha camiseta jogada do público, tira foto para os fãs e se vê abraçado ao fantasma de Joey a cada nova porrada lançada sem dó sobre a garotada.

Não é que o público se divida naquelas rodas de pogo com um correndo atrás do outro como é comum nas praças nordestinas, e como aconteceu em boa parte do festival. Ontem, dentro de um Armazém Hall lotado, uma massa disforme se deslocava de um lado a outro, numa velocidade comandada pelos riffs manjados, porém eficientes depois de todos esses anos. Do meio do povo insurgiam body surfers lançados ao ar a todo o momento. Na falta do mosh de palco, controlado pela produção para que o caldo não desandasse, uns eram espremidos pelos outros e se jogavam sobre a multidão música após música. Enquanto no extremo Sul do País Sir Paul McCartney fazia chorar com canções de amor que embalaram gerações, no extremo Norte pérolas do cancioneiro ramônico como “Teenage Lobotomy”, “Pet Semetary”, “I Wanna Be Sedated” e “The KKK Took My Baby Away” mostravam outro panorama para a juventude disposta a tudo para se divertir. Como faziam os Ramones, aliás.

Antes, o show parecia que não iria acontecer. Marky Ramone decidiu que a bateria fosse desmontada do palco para ser afinada (!) no camarim, ocasionando um atraso de quase uma hora (coisa inédita nos dois dias de shows) e ele próprio ainda passou o som no palco, para delírio do público. A ansiedade era tanta que, o início, os organizadores cortaram um dobrado para que tudo funcionasse sem maiores problemas. Durante cerca de hora e meia, alucinações tomaram conta do local; teve gente que saiu de lá garantindo que viu, pairando sobre o palco, a trinca sagrada: Joey, Johnny e Dee Dee. Pode não dar para acreditar, mas a certeza unânime entre os garotos de Natal é uma só: Ramones vive.

Por Marcos Bragatto

Fonte: REG

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