sábado, 20 de novembro de 2010

# 170 - 19/11/2010

LOU REED defendeu seu controverso "Metal Machine Music" que, para os não-iniciados, se trata de um álbum composto apenas por uma monótona repetição de guitarra tocada em velocidades diferentes.

No seu lançamento em 1975, "Metal Machine Music" decepcionou muitos críticos e fãs do ex-frontman do VELVET UNDERGROUND, com a revista Roling Stone descrevendo sua sonoridade como a de "um bárbaro grunhido de uma geladeira galática", e uma experiência tão terrível quanto "uma noite no terminal de ônibus". Muitos o consideraram uma piada, ou apenas cumprimento com má vontade de obrigações contratuais com a gravadora de LOU REED, RCA - e de fato, apenas alguns meses depois, o álbum foi recolhido.

Mas o poeta de Nova York decidiu remasterizar e relançar seu álbum, e coincidindo com este acontecimento, ele está em turnê com o Metal Machine Music Trio.

Antes de subir ao palco no Royal Festival Hall em Londres na segunda feira do dia 19 de abril, Reed defendeu o álbum, que ele chamou de crucial para o nascimento do punk, heavy metal, grunge até para o trance e techno, mesmo que seja, para muitos, o pior disco de todos os tempos.

Em uma entrevista à BBC ele diz: "Eu acredito que seja uma música realmente profunda e eu me apaixonei por ela por um longo tempo. Eu fiz esse álbum para mim. E eu estou tentando fazer algo que eu tenha vontade de escutar".

Fonte: We Will Rock you

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Algum trabalho musical mereceria ser apontado como o pior disco de todos os tempos? Em 1975, diversas revistas acharam que sim e deram tal prêmio a Metal Machine Music, disco conceitual de noise rock lançado por Lou Reed.

Ele mesmo, Lou Reed. O afeminado, esquisito e afetado líder do Velvet Underground, banda que foi catapultada ao “jet set artístico” da Nova York dos anos 60 pelo seu produtor, o artista Andy Warhol. Foi com o Velvet que Lou Reed se consagrou como um poeta/cronista do submundo e de seus seres marginais.

Depois de sair da banda, a consagração de Reed veio em 1972, com seu segundo disco, Transformer, que eternizou músicas como Walk on the Wild Side, Perfect Day e Satellite of Love.

Aí, vieram mais alguns álbuns e, então, ele lançou Metal Machine Music. Muitos não entenderam. Alguns acharam piada. O disco trazia apenas quatro músicas. Cada uma com 15 ou 16 minutos. Não há vocais, apenas distorções de guitarras, texturas e camadas sonoras. Em três meses, o disco foi retirado das lojas. Muito se disse que Metal Machine Music foi um disco feito para cumprir contrato com a RCA. Reed nega isso, apontando o disco como antecessor dos estilos noise e industrial.
“Metal Machine Music é dedicado à proposta da guitarra como o maior instrumento conhecido ao homem (…). Você não precisa de um vocalista ou um baterista (…). É uma reflexão sobre a glória do rock” disse Reed, em entrevista à BBC.

Em 2002, Reed se espantou ao ver o saxofonista alemão Ulrich Krieger interpretar o álbum. Acabou convidando-o para formar o grupo Metal Machine Trio, que revisita Metal Machine Music em performances cheias de improvisos. Esse show virá ao Brasil. Reed e seu grupo tocam nos dias 20 e 21 de novembro em São Paulo.

por Francisco Dalcol

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Lou Reed - Berlin (1973) (Revista Bizz, Edição 20, Março de 1987)

Discos conceituais já não eram novidade no início da década de 70. Eles funcionam como trilhas-sonoras de idéias, de conceitos - daí o nome. O LP conceitual é um todo orgânico, um corpo constituído por vários elementos (cada um exercendo uma função em prol da idéia central): a capa, o título, as letras, a ordem das músicas e até (nos países civilizados) a divulgação.
"Berlin", terceiro LP solo de Lou Reed, é talvez o exemplo mais bem acabado de um disco conceitual. É uma viagem pelo cotidiano do underground, da marginália dos centros urbanos, tudo contado num tom de poesia cruelmente direta e fria.

A produção e os arranjos são de Bob Ezrin (que tinha acabado de produzir os melhores LPs de Alice Cooper). Ezrin escolheu a dedo músicos, estúdios de gravação, fez a mixagem e ainda uma edição brilhante: transformou as duas horas de material gravado, através de cortes e emendas, numa matriz de cinqüenta minutos.

O LP abre com o teipe de uma voz que anuncia: "Eins, zwei, drei..." e pronto, estamos em Berlim (a música em questão é a faixa-título). Bons tempos aqueles, conclui Lou. Mas a realidade é outra - e os climas que se seguem não são indicados para suicidas em potencial.

A segunda faixa do disco é "Lady Day", um clássico de Reed, e, para quem está ouvindo o disco, a certeza de que dificilmente um produtor conseguirá reunir de novo um naipe de instrumentistas desse nível. São músicos vindos de formações diversas: Steve Winwood, Jack Bruce, Aynsley Dunbar, os irmãos Brecker e Steve Hunter - só para citar os mais famosos.

Com "Men of Good Fortune" as coisas vão ficando amargas ("homens afortunados/ muitas vezes causam quedas de impérios/ enquanto homens de pobres começos/ muitas vezes não podem fazer nada").

Com "Caroline Says I" Lou começa a contar histórias sobre as pessoas que o cercam ("ela me trata como se eu fosse um imbecil/ mas para mim ela ainda é uma rainha germânica"). Em "How Do You Think it Feels" e "Oh, Jim" o assunto é drogas, solidão e desespero, tudo contado num tom isento e desleixado pela primeira pessoa (são comuns, ao longo do LP, frases como "mas eu não ligo" ou "pra mim tanto faz").

No lado B, Lou, cantando sempre com voz baixa e triste, retrata o caráter violento do narrador - o próprio Lou - na continuação "Caroline Says II": "Caroline diz - enquanto ela se ergue do chão/ você pode me bater o quanto quiser/ mas eu não te amo mais". Daí pra frente a barra pesa mesmo. Em "The Kids", em meio às dissonâncias do baixo, a melodias atonais de uma flauta doce e aos gritos desesperados e autênticos de "mamãe!" feitos por crianças, Lou conta a história de uma mulher que perdeu a custódia dos filhos. Só que, dessa vez, a postura do narrador não é tão neutra: "E desde que ela perdeu sua filha/ são seus os olhos que se enchem de água/ e dessa maneira eu fico mais feliz".

A letra de "The Bed" fala por si: "Esse é o lugar onde ela pegou a lâmina/ e cortou seus pulsos naquela noite estranha e malfadada/ e eu disse oh, oh, oh, que barato". E encerrando o disco com chave de ouro, outro clássico deprê de Lou Reed, "Sad Song", com um brilhante arranjo orquestral de Ezrin.

Todas as faixas de Berlin são lentas, mas isto, de fato, não importa muito. Este disco não é menos emocionante, impressionante e influenciador por causa disso. E tampouco deixa de ser o primeiro LP conceitualmente "deprê" do rock'n'roll. Uma visão que rompeu tabus e abriu novos caminhos na música pop: a realidade das ruas dos grandes centros pode ser cantada e transformada em música. Não é à toa que o Berlin é disco de cabeceira de gente como Siouxsie, Budgie, Iggy Pop e o pessoal do New Order.

Thomas Pappon

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Julho/2010 - O Poeta do Rock - Lou Reed

No universo da canção, não foi o jazz nem o blues que elevou as letras ao estado da arte. ''Atravessar o Fogo'', livro com versos de Lou Reed, traz alguns momentos de destaque da fascinante história de como a música pop se transformou em poesia

Por Arthur Dapieve

Fonte: Revista Bravo

A história da transformação da letra num item tão importante quanto a música na canção popular tem um herói insuspeitado. Nos Estados Unidos do século 20, de onde muitos gêneros foram exportados para o resto do mundo, o blues chegou a intercambiar versos entre uma composição e outra, pois o essencial era o sentimento. Seu afilhado jazz quase sempre prescindiu das palavras e, quando as criou ou as foi buscar no cancioneiro popular, usou-as mais como outro suporte para a sonoridade geral do que como elemento em si. No caso do cancioneiro, nem a presença de um requintado Cole Porter, por exemplo, conseguiu de imediato destacar a dimensão intelectual - literária - do trabalho de se pôr certas sílabas em determinadas ordens. Coube, quem diria, ao bastardo rock transformar a letra numa arte independente, autônoma, digna de estudo e apreciação em si mesma.

O nome central dessa revolução foi Bob Dylan. Desde então, vários jovens letristas, não necessariamente seus discípulos estéticos, reafirmaram que havia literatura, alta literatura, aliás, a ser perseguida por entre três ou quatro acordes de guitarra. Um dos mais importantes poetas "libertados" por Dylan foi Lou Reed. Às vésperas de seu retorno ao Brasil, Reed tem 310 letras lançadas em livro no país. Atravessar o Fogo, editado pela Companhia das Letras, em boa tradução em versos livres e brancos de Christian Schwartz e Caetano W. Galindo, ajuda a entender não apenas por que Reed é Reed mas por que a letra virou um fetiche, uma arte à parte dentro do cancioneiro ocidental.

No clássico livro Rock, o Grito e o Mito, publicado pela Vozes em 1973, reeditado em 1981 e hoje infelizmente fora de catálogo, o jornalista, crítico e tradutor brasileiro Roberto Muggiati escreveu: "O rock nasceu de um grito, o primeiro grito do escravo negro ao pisar em sua nova terra, a América." A partir daí, Muggiati desenvolveu com brilho a tese de que o rock foi uma espécie de grito primal represado por séculos de opressão, grito que restituiu a voz verdadeira ao homem. Se, em si, a terapia do grito primal de Arthur Janov resultou no constrangimento musical que é a obra de Yoko Ono, a metáfora ainda se aplica à perfeição. O gênero mulato surgido do affair entre o blues negro e o country branco rompeu os grilhões que prendiam a letra à melodia, à harmonia, ao ritmo. Ela pôde, enfim, ser lida em silêncio. Como poesia. Isso ajudou a constituir uma cultura pop a partir da década de 1960.

Logo, o bardo fanho americano, ano que vem setentão, assinalou um momento chave na história da arte, ao estabelecer o antes - o rock'n'roll despreocupado - e o depois - os letristas que se valeram de referências literárias, seus "filhos". Ao mesmo tempo, Dylan forneceu o grande parâmetro ao qual uma nova sensibilidade pôde se contrapor e ser compreendida. Expressada pela turma da fragmentação, essa nova sensibilidade quebra a linearidade da canção pop tradicional - no Brasil bem representada tanto por um Caetano Veloso quanto por um Renato Russo - como num espelho partido em múltiplas personalidades, mídias e redes sociais na internet.

Garotas, garotas, garotas - Nos primórdios, o rock tinha pouco cérebro e muito coração e sexo

O rock não teria tido o mesmo impacto sociocultural entre os jovens da segunda metade da década de 1950 e da primeira metade da década de 1960 se já tivesse nascido sob o signo da pretensão poética. Se os filhos ficavam excitados e os pais, amedrontados, era porque Elvis Presley sacudia a pélvis daquela lasciva maneira africana, Little Richard urrava "A-wop bop-a loo-bop, a-wop bam-boom! Tutti Frutti, al-rudy" como se fosse uma bateria desenfreada, e Chuck Berry louvava o rock'n'roll acima do jazz, das sinfonias, do country, do tango, do mambo. Como antes acontecera com o jazz e depois aconteceria com o funk e o rap, o racismo americano se manifestaria na forma de uma cruzada moral, de repulsa ao sexo.

"Muitos pais imaginam suas filhas, que saem para os dates - até então considerados encontros inconsequentes de namoradinhos - sendo violadas pelos namorados no banco traseiro de um Cadillac rabo-de-peixe enquanto o rádio toca uma canção de rock a todo volume", ilustra Muggiati em Rock, o Grito e o Mito. Na reprimidíssima década de 1950, não era necessário ser sexualmente explícito para suscitar a antevisão de prazeres proibidos. A combinação entre carrões envenenados e romances infelizes aparecia, por exemplo, em Maybellene, de Chuck Berry, cuja refrão dizia: "Maybellene, por que você não pode ser fiel? Você voltou a fazer as coisas que costumava fazer." Essas coisas, à época, não precisavam ser ditas para serem censuráveis. A batida frenética dizia tudo. O meio era a mensagem.

A imagem de rebeldia associada ao rock em filmes como Sementes de Violência (1955) ou No Balanço das Horas (1956) tornou-se tão forte que resistia ao evidente bom-mocismo de Bill Haley e Seus Cometas, presentes em ambos. As canções entoadas por Elvis também não eram especialmente selvagens. O que perturbava a ordem era a boa aparência, o rebolado, a voz de negro num branco. As letras, portanto, não iam além de garotas, garotas, garotas. Isso fez alguns observadores confundirem o rock com outros modismos musicais que, em décadas anteriores, haviam cutucado os hormônios da América branca e, de carona em sua poderosa indústria cultural, os hormônios de todo o Ocidente cristão. Quando Elvis foi enquadrado no serviço militar, então, o bicho parecia domado.

Nem mesmo ao final da primeira fase dos Beatles, com o já musicalmente brilhante álbum Revolver (1966), as letras possuíam a capacidade de funcionar sem a companhia da música. Qualidade que conquistariam conforme, "desafiados" por seu ídolo Dylan, John Lennon e Paul McCartney se dedicassem a torná-las mais significativas, casos de She's Leaving Home ou Blackbird. O repertório inicial dos Fab Four fazia cândidas declarações de amor, externando o desejo de pegar na mão da menina ou, no máximo da ousadia, se tornar o homem dela. Fosse como fosse, o rock'n'roll era sobre coração e sexo, não cérebro. Até hoje há compositores bons na pregação de que a música deve ser, antes de tudo, diversão. Certas bandas de hard rock ou heavy metal, como o AC/DC, eternizam em poucas linhas o sentimento de que a vida é curta, e é preciso vivê-la rapidamente. Parafraseando Lobão, os livros na estante - com antologias de letras de canções - não teriam tanta importância.

Política, religião, morte e arte - Bob Dylan mostrou que a música pop poderia falar de qualquer assunto.

Em seu primeiro filme como diretor, Ricardo III - Um Ensaio (1996), o ator Al Pacino a certa altura conjecturava se Shakespeare já não havia pensado tudo o que o homem poderia pensar. Em relação a Bob Dylan o sentimento é mais ou menos o mesmo. Abrir ao acaso o calhamaço que é Lyrics 1962-2001, nunca editado no Brasil, se assemelha a jogar I Ching. A poesia de Dylan funciona tanto como arte divinatória como gotas espessas de sabedoria. Em meio século de carreira, ele se pronunciou sobre virtualmente tudo o que há para se pronunciar: política, amor, guerra, ecologia, religião, morte, arte. E, quando o fez, fê-lo com a autoridade moral de profeta que atravessou várias crenças e descrenças.

Dylan despontou para Nova York e para o mundo como um trovador folk. Nesta condição, participou do comício de 28 de agosto de 1963, em Washington, no qual Martin Luther King Jr. contou a 200 mil manifestantes pelos Direitos Civis o seu célebre sonho: "Um dia meus quatro filhos pequenos viverão num país em que não serão julgados pela cor de suas peles, mas pelo conteúdo de seu caráter." De alguma forma, a poderosa retórica batista de Luther King Jr. já ressoava pela obra deste judeu de Duluth, Minnesota, que dois anos antes largara a universidade ainda como calouro e fora pregar o próprio evangelho pelos bares do Greenwich Village. Esta, porém, não seria sua influência mais óbvia. Dylan idolatrava Woody Guthrie, que escavara a canivete no tampo de seu violão a frase "Esta máquina mata fascistas", e com certeza lera com atenção poetas beat como Allen Ginsberg.

Havia ainda, é claro, o fascínio primeiro por Dylan Thomas, tão intenso que lhe fornecera o sobrenome artístico. Diferentemente da impenetrabilidade da poesia do galês, entretanto, o pulo do gato de Bob Dylan foi unir uma erudição instintiva à capacidade de comunicá-la de forma eficiente, pop. As letras de Dylan ofereciam - e oferecem - inúmeras camadas de interpretação e permitiam ao rock, gênero pelo qual ele se interessara ainda antes de virar o cantor folk por excelência, a autoconsciência da própria complexidade e importância. Dylan abandonou a universidade, certo, mas sua obra voltou a ela pela porta da frente. Existe uma anedota daquelas que se não for verdadeira é bem achada. Dizem que Dylan entrou incógnito num grupo de discussões sobre suas letras na internet. Diante de um despautério, contudo, ele não pôde deixar de se manifestar e afirmar que não quisera dizer nada daquilo que lhe era atribuído. Foi expulso do grupo como impostor, óbvio.

O impacto de centenas de letras como as de Blowin' In the Wind, The Times They're a-Changin', Don't Think Twice it's All Right ou Hurricane ultrapassou as fronteiras artísticas e conquistou para o rock o respeito de exegetas que antes consideravam aquela música sem nenhuma relevância cultural. No Brasil, papel análogo foi desempenhado por Vinicius de Moraes. Embora obviamente já existissem ótimas letras no nosso cancioneiro, foi apenas quando o diplomata e poeta tornou-se também letrista - sob a desconfiança e o desprezo de muitos de seus pares - que se reavaliou com a devida correção as possibilidades intelectuais da música popular. De certa forma, então, Dylan foi o Vinicius dos anglófonos.

Lord Byron, Oscar Wilde e Delmore Schwartz - Inspirados por Dylan, letristas como Lou Reed beberam poesia nas melhores fontes

Dylan tem um filho cantor, Jakob. O líder dos Wallflowers, porém, está longe de ser o melhor exemplar de rebento intelectual. Este talvez seja Lewis Allan Reed, ou Lou Reed. Tanto no Velvet Underground - grupo apadrinhado pelo artista plástico Andy Warhol que dividia com outra boa cabeça do rock, John Cale - quanto na sua carreira solo, Reed atraiu atenção e escândalo porque se propôs a falar do lado selvagem da vida. Sua música mais famosa, aliás, Walk on The Wild Side, de 1972, habitava um universo de travestis e sexo oral. Tempos depois, num documentário sobre essa canção, David Byrne dizia se indagar a cada vez que ouvia pessoas cantarolando o refrão: "Será que elas sabem do que se fala?!"

Ainda a bordo do Velvet Underground, Reed havia feito polaróides da sujeira sob o tapete dos anos 60. Quando os Beatles decretaram ao final da década que o sonho tinha acabado, ele deve ter dado um sorrisinho sarcástico e dito "ah, é, não diga..." Em 1967, no famoso "disco da banana", cuja capa fora desenhada por Warhol, Reed falou desabridamente sobre drogas em Heroin, música que emulava a gangorra de excitação e prostração do vício. I'm Waiting for The Man tratava de prostituição e Venus in Furs, de sadomasoquismo: "Falem os chicotes, a cinta que espera por você/ Castigue-o minha senhora, para que seu coração seja curado" (a tradução é a do livro Atravessar o Fogo).

O choque não era dado só pela temática pesada, pouco usual na música da época, mas pelo tratamento musical e poético. Havia um fascinante contraste entre a vida baixa retratada e a alta cultura do retrato. A derradeira faixa daquele LP, European Son, era um réquiem cacofônico para o poeta Delmore Schwartz, ex-professor de Reed na faculdade de artes e ciências de Syracuse que morrera de ataque cardíaco no ano anterior. Seu corpo ficara dias à espera de identificação num necrotério. O lado selvagem. No prefácio a Atravessar o Fogo, Reed reconhece: "Delmore Schwartz, meu professor, me apresentou à beleza da frase simples, e foi o que tentei seguir ao longo de uma vida escrevendo."

Na Inglaterra, entre muitos exemplos dessa elaborada oralidade, presente também nos beats ou em Dylan, está Steven Patrick Morrissey. Sua poética está enraizada em Lord Byron ou Mary Shelley, enquanto suas tiradas ácidas remetem a Oscar Wilde. Quando os Smiths acabaram, em 1987, Morrissey partiu para uma carreira solo de achados funcionais como "eu nunca pretendi matar/ eu não sou naturalmente mau/ fiz tais coisas/ apenas para me fazer/ mais atraente para você/ terei falhado?" (The Last of The Famous International Playboys).

No Brasil, Caetano Veloso admitiu no livro Verdade Tropical que, mesmo preferindo os Beatles e não entendendo direito o inglês de Dylan, este talvez lhe tenha sugerido frases e ideias para suas próprias canções. A afinidade com o americano fica evidente na felicidade da versão em português para It's All Over Now, Baby Blue (Negro Amor). Influências menos oblíquas de Dylan estão no fã declarado Renato Russo. Como Trovador Solitário, no hiato entre o Aborto Elétrico e a Legião Urbana, ele se apresentava só, ao violão, cantando uma saga como Faroeste Caboclo, de 159 versos sem repetição. Afinal, Dylan dera um ultimato aos letristas: se eles queriam escrever algo bom, teriam de pular mais alto. O sarrafo subira.

Com o indicador no mouse e o polegar no controle remoto - A geração dos anos 90 para cá não é influenciada pelos livros, e sim pela televisão e pela internet

Até a chegada da década de 1990, os garotos e garotas com maturidade intelectual para escrever boas letras de música tinham tido uma formação baseada em textos, não em imagens. Sua cultura ainda era basicamente literária, linear. Isso criava uma certa continuidade estética entre os poetas pré-rock'n'roll e as novas gerações, como no caso dos escritores de beats e de Dylan, ou Delmore Schwartz e de Reed. Porém, com a entrada em cena de letristas nascidos diante do aparelho de televisão, os versos passaram a funcionar quase como epigramas, reveladores de um estado de espírito mais inquieto que o polegar na tecla do controle remoto, em vez de constituir histórias com início, meio e fim.

A primeira cabeça representativa da turma da fragmentação foi a de Kurt Cobain, de Seattle, o líder do Nirvana que se suicidaria em 1994, no ponto mais baixo de uma espiral de drogadição e insegurança. Na biografia Come As You Are, de Michael Azerrad, são abundantes os testemunhos de como Cobain deixava para escrever as letras em cima da hora, num canto de estúdio. O seu desespero era transmitido pela alternância entre agitação e calmaria nos instrumentos do grupo, entre gritos e sussurros nas próprias cordas vocais. A letra era quase secundária, mas não desprezível, na sua arte.

Na época em que música Smells Like Teen Spirit explodiu na MTV americana, a emissora fez uma enquete entre seus espectadores: "O que diz a letra?" As pessoas ouviram as coisas mais disparatadas. Inclusive porque Cobain lhes oferecia, sim, imagens disparatadas, como "um mulato/ um albino/ um mosquito/ minha libido/ yeah". E assim, para seu terror, Cobain descobriu-se porta-voz de uma geração que achava não ter nada a dizer. O que nem era verdade: ela não tinha a dizer à moda antiga. Leia-se a tristíssima Pennyroyal Tea, ou "Chá de erva poejo", de supostas características abortivas. Nela, Cobain escreveu: "Sente-se e beba chá de poejo/ Destile a vida que está dentro de mim." Imagem forte e bonita.

Outros talentos burilaram a nova estética, à medida que a fragmentação audiovisual era radicalizada pela digital como fonte de educação sentimental da rapaziada. E o inglês Thom Yorke, do cultuado Radiohead, acabou herdando o bastão de intérprete das angústias geracionais após a morte de Cobain. Seu grande hit - agora raramente executado ao vivo - expressa de forma simples a inadequação da juventude. "Você flutua como uma pena/ Num mundo maravilhoso/ Eu queria ter sido especial/ Tão especial/ Mas eu sou um verme/ Eu sou esquisitão/ Que diabos faço aqui?/ Eu não pertenço a este lugar", avisa Creep.

No país onde alguns se apressaram a decretar a morte da canção apenas porque ela já não se apresenta da velha forma, os expoentes dessa sensibilidade fragmentada, concisa, são os dois letristas oriundos do grupo Los Hermanos, hoje desativado: Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante. Praticamente orados pelas plateias, com um fervor que não se via desde o auge da idolatria à Legião Urbana, seus versos ora se agrupam na obscuridade ora no nonsense mesmo, como em Do Sétimo Andar: "Parece que foi ontem, eu fiz/ Aquele chá de habu/ Pra te curar da tosse e do chulé/ Pra te botar de pé." A estrofe foi escrita por Amarante em 2003, antes do advento do Twitter, mas dá e sobra em 140 toques.

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Atravessar o Fogo, de Lou Reed. Tradução: Caetano W. Galindo e Christian Schawrtz. Companhia das Letras, 794 págs. Preço a definir.

Olhos azuis-claros (1969), ainda dos tempos do Velvet, ajuda a lembrar que, embora
Reed seja conhecido e admirado pela crueza, também é capaz de praticar um lirismo
arrebatador. Aliás, a velha versao em ingles de Marisa Monte ficou muito boa.

Olhos azuis-claros (Pale blue eyes)

As vezes me sinto tao feliz
As vezes me sinto tao triste
As vezes me sinto tao feliz
Mas quase sempre voce simplesmente me deixa maluco
Baby, voce simplesmente me deixa maluco
Nao esqueço teus olhos azuis-claros
Nao esqueço teus olhos azuis-claros
Para mim voce foi o topo da montanha
Para mim voce foi o ápice
Para mim voce foi tudo
Que um dia eu tive mas nao soube guardar
Que um dia eu tive mas nao soube guardar
Se o mundo pudesse me tornar puro e estranho como o vejo
Eu poria voce no espelho que ponho a minha frente
Que ponho a minha frente
Desperdiçar uma vida inteira, socá-la numa xícara
Ela disse que dinheiro é como o tempo que passa
Promete mas nao cumpre
Para voce, dívida é promessa
Foi bom o que a gente fez ontem
E eu faria de novo
O fato de ser uma mulher casada
Só prova que voce é minha melhor amiga
Mas isso é um pecado muito, muito feio
Nao esqueço teus olhos azuis-claros
Nao esqueço teus olhos azuis-claros

Vamos fazer uma loucura (1972) é a cançao-assinatura de Reed. Se a memória coletiva pifasse um dia, e ele tivesse direito a manter um único poema vivo, seria este. Pela descriçao do submundo dos travestis e prostitutos de Nova York e pelo refrão irresistível.

Venha fazer uma loucura (Walk on the wild side)

Holly veio de Miami, Flórida
Peregrinou pelos Estados Unidos
Fez as sobrancelhas no caminho
Depilou as pernas, e entao ele virou ela
Ela diz: Ei, babe, venha fazer uma loucura
Disse Ei, meu bem, venha fazer uma loucura
Candy era forasteira na Ilha
No quartinho dos fundos ela dava pra todo mundo
Mas nunca, nem durante um boquete, ela perdeu a cabeça
Ela diz: Ei, babe, venha fazer uma loucura
Disse: Ei, babe, venha fazer uma loucura
E as garotas de cor cantam
Doo da doo da doo
Doo da doo
Doo da doo da doo
Doo da doo
Doo da doo da doo
Doo da doo
Doo
Little Joe nunca desistiu, nem uma vez
Todo mundo tinha que pagar sempre
Um safanao aqui, outro ali
Nova York é o lugar onde dizem
Ei, babe, venha fazer uma loucura
Eu disse: Ei, Joe, venha fazer uma loucura
Sugar Plum Fairy desceu as ruas
Atrás de alimento espiritual e um lugar para comer
Foi ao Apollo
Voce precisava ter visto ele ir lá lá lá
Disseram: Ei, Sugar, venha fazer uma loucura
Eu disse: Ei, babe, venha fazer uma loucura
Jackie está simplesmente a mil
Pensou que era James Dean por um dia
E aí, penso eu, só podia se arrebentar
Um Valium teria evitado a pancada
Ela disse: Ei, babe, venha fazer uma loucura
Eu disse: Ei, doçura, venha fazer uma loucura

Desta seleçao, Os sinos (1979) talvez seja o item mais obscuro. O disco homônimo é
um dos mais sombrios e, sem trocadilho, menos badalados de Reed. No entanto, a imagem do profeta-suicida urrando para as ruas lá embaixo talvez pudesse se aplicar ao próprio autor do poema, caso ele nao tivesse sobrevivido existencial e artisticamente a décadas de loucuras. Nas loucuras de Reed, aliás, o artista plástico Andy Warhol, o papa da Pop Art, teve participaçao de destaque.

Os sinos (The bells)

E as atrizes se dao
Com o ator que volta tarde pra casa
Depois que as peças terminaram
E as plateias se dispersaram
Em meio as luzes da cidade e as ruas
Nao havia ingresso que pagasse
O maravilhoso espetáculo dos espetáculos
Ah, só a Broadway sabe
Que a Grande e Branca Via Láctea
Tinha algo a dizer
Quando ele caiu de joelhos
Depois de se elevar no ar
Sem nada que o sustentasse
Nao foi mesmo muito bonito
Brincar daquilo sem paraquedas
Parado a beira do abismo
Olhando, ele achou que viu um riacho
E gritou: "Veja! Lá estao os sinos!"
E cantou: "Lá vem os sinos!"
"Lá vem os sinos!"
"Lá vem os sinos!"
"Lá vem os sinos!"
"Lá vem os sinos!"

Oi, sou eu (1990) é uma despedida incomum, que apenas ratifica o genio de Reed: ele nao perdoa o falecido Warhol, mas justamente por isso faz uma bela e honesta homenagem.

Oi, sou eu (Hello, it's me)

Andy, sou eu, faz tempo que nao te vejo
Queria ter falado mais com voce quando voce estava vivo
Eu achava que voce era seguro quando dava uma de tímido
Oi, sou eu
Sinto muita saudade de voce, muita saudade de sua inteligencia
Faz tanto tempo que nao ouço ideias como aquelas
Eu adorava ver voce desenhar e ver voce pintar
Mas quando te vi pela última vez, dei as costas
Quando Billy Name estava doente e trancado no quarto
Voce me pediu umas bolinhas, achei que era pra voce
Desculpa se eu duvidei do seu bom coraçao
As coisas parecem sempre terminar antes de começar
Oi, sou eu, aquela sua exposiçao foi genial
O seu papel de parede de vacas e os travesseiros prateados flutuantes
Queria ter prestado mais atençao quando riram de voce
Oi, sou eu
"Artista pop dança", dizia a manchete
"O tiro é encenaçao, ou o Warhol está mesmo morto?"
A pena por roubo de carros é maior
Lembro de pensar enquanto ouvia o meu próprio disco em um bar
Eles te odiavam de verdade, agora tudo aquilo mudou
Mas tenho alguns ressentimentos que jamais poderao ser desfeitos
Voce me bateu bem onde doía, eu nao ri
Teus diários nao sao um epitáfio digno
Mas agora entao, Andy - acho que está na hora de ir
Espero que um dia, de algum jeito, voce goste desse showzinho
Sei que chegou tarde, mas só sei fazer assim
Oi, sou eu - Boa noite, Andy
Adeus, Andy

Por fim, aqui, mas nao na ordem cronológica mantida por Atravessar o Fogo, Boulevard Barra-pesada (1989) ilustra o quanto de crítica social há no supostamente hedonista e altamente pessoal Reed. A imagem do garoto latino sem-teto que sonha aprender uma mágica que o faça voar de sua vida miserável é inesquecível.

Boulevard barra-pesada (Dirty Blvd.)

Pedro mora do lado de fora do Hotel Wilshire
Ele olha por uma janela sem vidro
As paredes sao de papelao
O chao, de jornal
E ele apanha do pai porque está cansado demais para ir pedir esmola
Ele tem nove irmaos e irmas
Eles sao criados de joelhos
É difícil correr quando suas coxas sao espancadas com um cabide
Pedro sonha em crescer e matar o velho
Mas a chance é mínima, ele está indo pro boulevard
Este quarto custa dois mil dólares por mes
Podes crer, cara, é verdade
Em algum lugar o proprietário está rindo de se mijar nas calças
Ninguém aqui sonha ser médico ou advogado ou o que quer que seja
Sonham em traficar no boulevard barra-pesada
Me traz teus famintos, teus exauridos, teus pobres, vou mijar em cima deles
É isso que diz a Estátua da Intolerância
Tuas pobres massas em desordem _ vamos matá-las a pauladas
E acabar logo com isso e simplesmente desová-las no boulevard
Está uma bela noite lá fora, tem ópera no Lincoln Center
E estrelas de cinema chegam de limusine
Os refletores lançam seu facho sobre a silhueta de Manhattan
Mas as luzes passeiam pelas ruas miseráveis
Um garotinho está perto do Lincoln Tunnel
Ele está vendendo rosas de plástico por um dólar
O tráfico está todo na rua 39
As putas da TV convidam os tiras para um boquete
E, de volta ao Wilshire, Pedro fica a sonhar
Ele achou um livro de mágica numa lata de lixo
Ele olha as figuras e mira o teto rachado
"Quando contar até tres", ele diz, "quero poder desaparecer"
E voar, voar para longe

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The Jimi Hendrix Experience – Crosstown traffic
Nantes – Here, there and everywhere

Titãs – Lugar Nenhum
Os Replicantes – O Futuro é vortex
Plebe Rude – Seu jogo
Camisa de Vênus – Só o fim
Ira – Núcleo Base (instrumental)

Giovanni Caruso – Acontece nas melhores famílias
Mordida – Festa Jovem
( Drop Loaded )

Pós-Guerra – Ravachola
Walls of Jericho – Revival never goes out of style
Yeah Yeah Yeahs – Art Star
Cansei de ser sexy – off the Hook
Sonic Youth – Bull in the Heather
Jefferson Airplane – Somebody to Love
Mutantes – Hey Boy
(por Lauro Francis)

Undertones – The True confessions
Eddie & The Hot Rods – Teenage depression
The Heartbreakers – Born to loose
The Dictators – Two tub man

Lou Reed – “Berlim” + “Metal Machine Music”
# The Bed
# How do you think it feels
# Sad song
# MMM I

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