"Inanição", o terceiro disco da Karne Krua, saiu, finalmente. Encontra-se à venda a partir de hoje, 13 de julho de 2011 ( Dia Internacional do rock ) na loja Freedom, que fica na Rua Santa Luzia, 151, no centro de Aracaju, próximo à catedral Metropolitana. Na próxima sexta-feira os caras da banda estarão ao vivo nos estúdios da Aperipê FM para contar como foi esta saga no programa de rock.
Abaixo, um texto de Alexandre Gandhi, o guitarrista da banda, sobre o disco:
Voltando um pouco no tempo acho que dá para se localizar melhor. Lembro claramente que quando eu tocava na Gee-o-Die eu andava muito na Freedom quando a loja era na Galeria Cortês, na Rua São Cristovão, em frente ao Edifício Futuro. Tudo nessa cidade, para quem vive nela, é tão parte de si, que acaba por se lembrar de muitos momentos em certos lugares da cidade, para não dizer em quase todos. Anos depois tive uma experiência artística fora do comum, já cursando Artes Visuais pela UFS, naquele edifício. Aquela área da cidade já era muito comum para mim, mesmo antes de andar na galeria com Thiago Stress, fumando Malboro vermelho e trocando idéias com Silvio sobre Rock. Era o tempo todo ali, sentado na escadaria, fumando cigarro e ouvindo rock. O Rock-SE já havia passado e quem tinha ido, principalmente os mais iniciantes no mundo do rock, se sentiam mais rockeiros depois daquele evento. Sim, havia visto a Karne Krua lá no Batistão e não tinha gostado tanto assim. Mas as idéias estavam mudando, o hardcore estava tomando conta da cabeça quando antes só era ocupada pelo metal e algumas outras bandas, as coisas estavam mudando. Sim, estavam mudando tanto que a minha banda tinha saído dos tempos de covers e começava a tocar musicas próprias, o que era bastante legal. Meio que lá, meio que cá do hardcore melódico, mais puxado pra o HC Oldschool, os sons saiam e a banda ia tomando forma. Silvio gostava bastante da Gee-O-Die e começou a distribuir fitinhas de "Fúria, Revolta e Dor" para o Braisl inteiro junto com suas correspondências. Virava e mexia eu recebia uma carta de alguém de algum recanto escondido nos submundos anarcopunks querendo saber do som da Gee-O-Die. E eu mandava mais fitas para fora, muito mais fitas...
E foi assim que minha amizade com Silvio começou. Foi ali na Galeria Cortês que eu conheci quase tudo da Karne Krua. Acho que o trabalho mais fresco era o "Máscaras para o Caos", mas me lembro de ter gostado bastante de "Instantes Irreversíveis". Musica visceral naquela fita K7. E eu me borrava todo quando ouvia "As Crianças da Usina Nuclear", assim como me borrava quando ouvia "Animal Boy" dos Ramones. Interessante, não havia gostado do Ramones de primeira, nem tão pouco da Karne... agora me borrava todo ouvindo. E foi assim que virei um aficcionado por ambas. Muito mais pela Karne Krua. E em pouco tempo eu já tinha o maior número possível de material e já sabia quase tudo de trás pra frente e de frente pra trás. E minha amizade com Silvio crescia e a minha estadia no rock sergipano parecia duradoura.
E no passar do tempo a Gee-O-Die acabou. Os motivos: não sei se dá para listá-los. Acho que o gosto já não era comum, cada um da banda estava gostando de uma coisa, e naquela imaturidade onde Tennage Fan Club ou Belle e Sebastian nunca rimará com Agathocles a banda acabou. Mas eu tinha entrado pra a Merda di Mendigo e aquilo sim me manteria no rock - na verdade ali foi uma grande escola pra mim... não é a toa que a parada foi parar na Da Boca Ao Reto, pra mim, o som perfeito, nada a dever a meio mundo de banda que pago pau. Enfim, aqui o assunto é Karne Krua...
Quando comprei minha primeira guitarra, a qual toco até hoje, Wendell foi quem deu uma tocada nela antes que eu a levasse. Eu era um pivete que não sabia tocar nada e Wendell estava na loja. Pegou a guitarra e começou a tirar um som. Senti que a guitarra tinha timbre, tinha potencial, só faltava eu saber tocar. Ele confirmou que era uma boa guitarra e realmente hoje acho ela uma ótima guitarra, está comigo até hoje. E muito tempo passou até eu sacar que Wendell tocava na Karne Krua naquela época... parece coisa de destino traçado, viagem... e muitas formações passaram pela Karne e naquele Rock-SE a formação era Dejair no baixo, Valdeleno na bateria e Wendell na guitarra, e mesmo naquele show eu ainda não sabia que era Wendell que tinha tocado na minha guitarra quando eu a comprei... isso não importava, a banda não tinha me agradado mesmo.
Mas o tempo passou e como eu havia dito fiquei fã da banda, um pouco depois do Rock-SE, quando conheci Silvio. E Valdeleno saiu da bateria. Rony entrou rapidamente e a Karne Krua não era mais a mesma. Tinha algo de errado. Senti vergonha de um show que eles fizeram no antigo Tequila Café. Um show horrível. Sendo amigo de Silvio, acabei comentando sobre o show e a opinião foi igual. Show horrível. Algum tempo depois, Max Alberto, que estava participando da Karne como uma espécie de ajudante ideológico (a Karne Krua, com Instantes Irreversíveis, se aprofundou no tema do êxodo rural, seca nordestina e miséria do homem do campo), começou a cantar junto com Silvio. "Máscaras para o Caos" foi lançada e, provavelmente, já havia sido lançado o embrião para o disco Em Carne Viva. A banda tava sem baterista... e agora?
Eu: Silvio, porque você não chama Thiago Babalu pra tocar na Karne?
Porra, ele é um bom baterista, será que ele toparia tocar?
Vou falar com ele, se ele aceitar eu já passo algumas músicas pra ele. Gravo em K7 das fitas que tenho e passo pra ele, ok?
Tranqüilo, depois você me diz o que ele disse.
E Babalu aceitou tocar na Karne Krua. Passei uma fitinha de 90 minutos com meio mundo de som da Karne. Nem sei se foi fita de noventa minutos, só sei que a fita tinha som pra burro, a Karne Krua tem bem mais que 70 composições, tirem por ai... e Babalu caiu direto em estúdio pra gravar o "Em Carne Viva". Tava lá acompanhando as gravações de perto.
Eu: Babalu, a bateria é assim, pára no prato de ataque, trá tun tun tum. Sacou?
E o fi-da-peste pegou tudo certinho e gravou o disco. Esgotado por sinal... e ficou tocando na Karne por um bom tempo... e fez show de lançamento do cd e meio mundo de show por ai...
Certa vez, na antiga Casa Laranja, me encontrei com Max Alberto. Nos víamos direto nos shows e começávamos a conversar. E sempre o assunto era a Karne Krua, era o lirismo, era a força do hardcore da Karne. Eu, entrão todo, disse: cara, queria ver um ensaio da Karne, quem sabe tirar um som com vocês. Max disse: apareça no estúdio tal do Augusto Franco. Nesse tempo a Karne era Mazinho na guitarra (que havia gravado baixo no Em Carne Viva), Jamesson no baixo, Silvio, Max e Babalu. E Lá fui eu, para o ensaio, com minha guitarra. E como já era muito amigo de todos, fui incorporado ao ensaio tranquilamente. E como já sabia as músicas todas, tocar algumas delas não foi problema, e como o entrosamento com Sílvio já era grande, nasceu a partir de uma idéia dele "Infinitivos", um dos primeiros sons do pretenso "Do Sol Latente Ao Cinza das Ruas".
Esse era o nome do disco: Do Sol Latente Ao Cinza das Ruas. A formação seria: eu estabelecido na guitarra da Karne Krua, Mazinho na outra guitarra, Jamesson no baixo, Silvio e Max cantando e Babalu na bateria. Essa formação tava mais afiada que punhal de cangaceiro, mais amolado que espada de samurai. Fizemos muitos shows com essa formação, cada um mais destruidor que o outro. Até o dia em que fomos tocar com Marcelo Nova no Mercado Central. Evento bacana, inusitado, como foi inusitada uma mega discussão entre alguns integrantes da banda e produtores do evento (que eram envolvidos com a banda) em pleno palco, durante o show. Coisa de doido! "Vá se fuder!", "Vá tomar no cu" e outras frases delicadas foram trocadas. E essa formação da Karne começou a passar.
Max já saiu do palco desse show sem ser integrante da banda. Mazinho saiu logo depois, por motivo de trabalho. Restaram eu, Silvio, Jamessom e Babalu e algumas músicas do disco que iria ser feito.
Fizemos muitos shows. A banda continuava afiada e cada vez mais pesada. Cada show era uma porradaria só. Parece que as dificuldades estavam deixando a Karne mais revoltada. E vários show foram feitos com essa formação. Já não sabia ao certo quanto tempo estava na Karne Krua. É como se entrasse num lapso temporário que não importava, só a força dos fatos.
Eu e Babalu estávamos tocando na Da Boca Ao Reto e estávamos esbagaçando por lá. Arregaçando caixa de bateria e cubos de guitarra. Uma gritaria dos infernos. Uma doidera literalmente. E isso veio parar na Karne Krua. Musicas mais complexas, mais trabalhadas e mais destruidoras.
Estávamos com quase tudo pronto para o novo disco quando nas carreiras Babalu teve que ir pra São Paulo. E Jamesson também. Um corre corre danado para deixar registradas as baterias do novo disco. Babalu gravou e poucos dias depois partiu para a cidade grande para iniciar o ciclo do êxodo rural. Para Jamesson nem deu tempo de gravar os baixos, algumas músicas não estavam realmente acabadas.
E a Karne Krua secou. Secou como rio intermitente. E sobrou eu e Silvio e uma gravação de bateria.
"Meu irmão, o que vamos fazer?", indagou Silvio.
É Silvio. Vamos gravar o disco. Nem que eu banque essa gravação, vamos terminar esse disco, temos a bateria gravada. Vamos chamar outras pessoas pra tocar na banda, mas essa gravação é da nossa obrigação acabar, vamos acabar nós dois.
E foi desse jeito que "Do Sol Latente Ao Cinza Das Ruas" foi gravado. Eu acabei gravando baixos, guitarras e backing vocals. E de tão seco que foi gravar, acabou por virar "Inanição", música que quando gravada se destacou dentre as outras, pois sintetizava tudo que o disco queria dizer. Inanição. E desde que a bateria foi gravada até a ultima etapa do disco passou-se tempo suficiente para maturar uma nova formação, novas composições surgiram, mas um foco lá atrás, naquele disco que ainda não estava nas ruas, aquele disco que nasceu ideologicamente em outro tempo, juntamente com outras pessoas, que não mais participam do grupo, mas emanaram as suas energias para as composições e o fundamento teórico. "Inanição" é um disco que a Karne Krua não mais lançará, não mais conseguirá compor. É um disco que já nasce velho, mas como todo velho é cheio de sabedoria, cheio de história para contar. Sem sombra de dúvidas é um disco que considero um dos melhores do rock sergipano (falo como fã, antes mesmo de ser integrante da banda, e antes mesmo de ter gravado o disco, porque o disco não me pertence, ele pertence a uma banda que tem quase a minha idade, e não consideraria uma pessoa dois anos mais nova inferior a mim).
Lembro das palavras de Walter Benjamin sobre a autonomia da obra de arte. Ele dizia que a peça, quando finalizada, adquire a aura da obra de arte. E é essa aura que faz com que saibamos, mesmo sem saber ao certo, que ali está uma obra de arte. Esqueçam as abordagens sobre reprodução do teórico da Escola de Frankfurt. Disco é isso, é reprodução, mas a música tem o poder da mais perfeita das manifestações artísticas: o poder de seduzir por sons, algo perfeitamente abstrato. E eu nunca imaginaria naquele dia, naquela loja localizada lá na Praça da Catedral, que aquela guitarra um dia ia gravar um disco da mesma banda do cara que testou a guitarra pra mim, quando eu arranhava meus primeiros acordes...
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