Eu só queria ser músico. Tocar rock por aí, ser uma estrela da música e viver como num clip do Van Halen nos anos 80. Em 95 ser como os Raimundos já me bastava, vida na estrada, rock todo dia e coisas do tipo. Tentava sem sucesso ter uma banda que tinha como equipamentos uma caixa onde ligávamos todos os instrumentos e uma bateria surrada. Não havia escritório de familiares que não ocupássemos nos fins de semana com nossa “equipe”.
Em 97 dei um salto qualitativo. Passei a estar numa banda em que cada integrante tinha o seu equipamento. Quase não acreditei quando nos primeiros ensaios consegui finalmente ouvir minha voz minimamente depois de dois longos anos “cantando”. Formávamos um grupo chamado Jam97. Nome horroroso por sinal, mas que nos orgulhava muito na época. A tentativa de seguir carreira era uma só para quem estava no Nordeste. Tínhamos que ir ao Abril Pro Rock, ficar na porta do backstage, esperar Paulo André – produtor do festival – sair, dar uma fita cassete para ele e pronto, todo um sonho se realizaria: tocaríamos no evento, uma gravadora nos contrataria e no ano seguinte voltaríamos lá de novo com um disco e uma tour.
Eu só queria ser músico. Só que logo percebi que meu sonho morreria se eu esperasse a sorte bater na minha porta. O engraçado é que o universo conspira durante nossas elocubrações e acabei encontrando muita gente que vivia realidades (e sonhos) parecidas com a minha. Eram zineiros, roqueiros, indies, jovens jornalistas numa fauna imensa de desacreditados, totalmente à parte do universo das gravadoras, mas que acreditavam na música como condutora de suas vidas. Começamos a trocar cartazes, zines, fitas e nos conhecemos presencialmente em alguns festivais como o SuperDemo, Abril Pro rock, Porão do Rock, RecBeat, MADA, entre outros.
Eu só queria ser músico, mas em Natal tocar rock era impossível. Na angústia dos ensaios sem show, já fora da faculdade e com a carreira voltada só para a música, comecei a perder a esperança de ser contratado. Mais que isso, comecei a ter nojo da ideia de ter que entregar minha criação para outras pessoas editarem, gravarem e afins. Queria ser dono do meu nariz e responsável direto pelo sucesso ou fracasso da minha empreitada. Não me restava nenhuma alternativa a não ser seguir o caminho alternativo, onde shows autorais eram raros e tours de bandas de fora da cidade eram mais raras ainda. Começamos do zero produzindo shows para o Jam97, nessa época já com um nome um pouco melhor, o Ravengar. Lembro de comemorar como um gol uma nota de cinco frases publicada na Tribuna do Norte sobre o primeiro show. Era garantia de sucesso porque sem internet e redes sociais, o único jeito de informar as pessoas sobre uma atividade artística era via TV ou jornal. Assim comecei a me tornar um produtor cultural.
Como eu, centenas de jovens no Brasil inteiro passaram a ter as mesmas ideias, produzir os próprios shows, criar os próprios cartazes, seguir o lema punk do eterno “do it yourself” e empreender em atividades inéditas dentro de suas cidades, muitas delas inclusive ridicularizadas pelo poder público. Em Brasília, capital dos playboys, em Goiânia, capital da música sertaneja ou em Natal, capital do forró e em várias cidades Brasil afora a chama do rock independente permaneceu acesa, e mesmo nas mais toscas produções e nos piores espaços que nos abriram portas permanecemos ativos, mantendo a tradição dos nossos antecessores do punk, do começo do rock 80 e de muitos outros que vieram antes de nós.
No final dos anos 90 já fazíamos coisas bem relevantes. Começamos a lançar nossos primeiros discos, e a minha geração foi a que popularizou o CD como mídia. Ficamos mais perto de registrar nossos trabalhos, já que lançar vinil por conta própria era algo fora da nossa realidade pelos custos de estúdio e prensagem. Começamos a nos digitalizar e a internet apareceu. Lembro de tentar gravar meu primeiro cd com o Ravengar, mas era tão caro que a banda acabou antes de terminarmos o disco completo (a dívida do estúdio só foi paga quase três anos depois com os mesmos caras que mixamos hoje, o Megafone). Continuei em bandas e continuei produzindo shows e bandas. Meus companheiros fora daqui começaram a ter vitórias parecidas, alguns foram absorvidos pelo mercado mainstream, outros foram protagonizando cenas em suas cidades como a Monstro em Goiânia, Tamborete no Rio de Janeiro e uma infinidade de labels em São Paulo, só para servir de exemplo.
Com a internet, a troca de informações entre a minha geração ficou mais dinâmica. Fomos capazes de utilizar isso ao nosso favor enquanto assistíamos “de camarote” a derrocada das grandes gravadoras como conhecemos, engolidas pelo período digital. Nossas atividades foram ganhando alguma visibilidade, já não éramos os patinhos feios da sociedade, muito de nós estavam começando nas redações de jornais e revistas, aos poucos fomos começando a produzir artistas que eram nossos contemporâneos e que tinham atingido o grande público e fomos aprendendo a atuar mais profissionalmente.
Eu só queria ser músico, mas já fazia mais de dez atividades ligadas à música que não tinham a ver com ensaiar, compor e se apresentar. Meus trinta minutos em cima do palco eram um prêmio pelo meu esforço de fazer o rock acontecer diariamente na minha vida, na minha cidade e no meu país. Sabia que o que eu fazia era parte de algo muito maior e que tinha alguém bem longe de mim que estava fazendo o mesmo. Pela internet trocamos tecnologia e encurtamos caminhos uns dos outros. Nossa geração sabia que precisávamos de força conjunta, meu grupo nunca iria para São Paulo se eu não fosse capaz de receber um grupo de São Paulo por aqui. Criamos intercâmbio mínimo, médio e máximo.
Não queríamos mais espaços ruins pros nossos shows e resolvemos abrir nossos próprios espaços, adequados à nossa realidade. Não queríamos mais estúdios que não entendiam nossa linguagem e compramos nossos próprios computadores. Não queríamos mais festivais com bandas que não nos agradavam e criamos nossos próprios festivais. Sou capaz de contar nos dedos das mãos quantos festivais de música independente existentes até hoje no Brasil que são geridos por caras que não são músicos ou não vieram de alguma banda. Perdemos editais e projetos por mais de dez anos para corporações culturais instaladas nas grandes cidades e aprendemos sozinhos a competir por melhorias para as nossas atividades. Ninguém nos ensinou, ninguém deu dica, não havia palestras. Atiramos no escuro até começar a acertar e replicamos as coordenadas para que mais de nós pudessem fazer o mesmo. Minha geração não ficou num bunker atirando pedra no inimigo oculto. Foi lá e cavou seu espaço com muito trabalho e dedicação que só o extremo amor pela música foi capaz de nos fazer aguentar. Isso pode soar piegas, mas é real.
Muitos de nós se organizaram em associações e movimentos culturais para ter força política e defender nossos direitos como classe culturalmente ativa. Vieram ABRAFIN, Fora do Eixo, Associação de Produtores, Fóruns de Músicos, Redes, Casas de shows, Cine Clubes, sites, entre outras centenas de atividades, todas no intuito de se manter viva a chama da música nas mais variadas esferas da sociedade. Nossas responsabilidades aumentaram mas nunca corremos com medo desses novos desafios. Nunca corremos com medo de nada.
Por isso que é fácil entender porque caras como eu produzem festivais, têm banda, estúdio, fazem seus próprios clips, sua própria assessoria de imprensa e ainda saem para dividir experiências Brasil afora com quer tentar fazer o mesmo. Estamos acostumados. É o que fizemos ontem, fazemos hoje e vamos continuar fazendo amanhã. E eu só queria ser músico.
Para essa geração que se forma agora no meio do caos mercadológico em que se configurou a música no Brasil é compreensível que ao invés de heróis da resistência (título que não queremos para nós) sejamos vistos por alguns como o “mercadão a ser combatido”. O contra-ponto, o “inimigo” a se combater parecem ser uma espécie de pólvora propulsora. Sabemos disso, já fomos assim. A minha geração tinha um oceano para atravessar a nado para poder colher alguma vitória. E essa geração de agora? Qual é a briga boa a se comprar? Existe um oceano para ela atravessar?
Eu ouvia fita fora de rotação para conhecer meus ídolos da música e a nova geração clica num streaming e ouve qualquer coisa em altíssima qualidade. Eu via filmes dropados e com áudio fora de fase para assistir meus ídolos e hoje tudo está disponível no youtube em alta definição em tempo real. Só vi um estúdio ao vivo quase seis anos depois de começar minha carreira com música; hoje, em cada computador tem o que os Beatles jamais tiveram para gravar. Essa geração tem a sorte de não ter o que combater, porque não somos os inimigos inacessíveis com os quais eles nunca dialogarão como foi para gente quando começamos nossa atividade com música. Qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo fala com qualquer um dos caras da nossa geração com um único clique e correspondemos a esse contato dentro do limite do possível (e às vezes do impossível).
Sobra tempo para essa geração empreender, se dedicar e realizar. Tempo que nenhum dos caras da minha geração ou dos que vieram antes jamais tiveram para se manter em atividade com música. Hoje temos uma super população de artistas que termina sendo um crivo muito mais difícil para quem quer ter uma carreira. Temos muito mais quantidade e dessa quantidade aumentou também a qualidade de registros, áudios e perfomances mundo afora. Cada período tem suas dificuldades e vocês da nova geração têm que arrumar soluções inteligentes para vencer esses novos obstáculos.
Dedico esse texto, que pretende ser o começo dos meus relatos para um livro de 10 anos de atividade do Dosol, para todos os meus amigos advogados, promotores, médicos, fiscais da natureza, e doutores que tentaram ter alguma carreira na música e por uma contingência do destino não conseguiram. Se hoje ainda continuo aqui empreendo na música devo isso a todos eles.
Essa é a única e real história sobre a minha geração, aquela que disse não ao mercado como ele existia e criou o seu próprio (e ainda muito pequeno) espaço. O mais legal disso tudo é que descrevi resumidamente acima apenas o começo de uma longa caminhada. Podemos acumular conhecimentos e continuar a caminhada juntos. Quem se habilita?
por Anderson Foca
Camarones Orquestra Guitarrística
www.myspace.com/camaronesorquestraguitarristica
Associação Cultural Dosol
www.dosol.com.br
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