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Do site Scream & Yell
por Marcelo Costa
Nas ruas de Londres, um fã (aparentemente) britânico pára Arnaldo Baptista e começa um discurso emocionado que enaltece a grandiosidade do’s Mutantes, grupo que Arnaldo formou com seu irmão Sérgio e aquela que viria a ser sua primeira namorada e mulher, Rita Lee. Na seqüência, um brasileiro passa por Arnaldo, caminha uns dez passos e volta gritando: “Mutantes, porra, você é foda demais”. A palavra é exatamente essa: Arnaldo Baptista é foda demais.
“Loki”, documentário emocional de Paulo Henrique Fontenelle, lança luz com devoção sobre a carreira do homem responsável por uma das maiores – se não a maior – e mais geniais formações de rock do lado debaixo do Equador. Fontenelle busca amigos, parceiros e produtores que abrem o coração para a câmera detalhando histórias e causos da vida de Arnaldo Baptista. Mais: resgata imagens raríssimas de época, trechos de entrevistas e aparições em TV que soam como pepitas de ouro visuais que dão um colorido especial ao passado.
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Em um dos trechos mais tocantes da película, Arnaldo comenta sobre a relação com Rita Lee, o casamento e a separação, pede desculpas e assume que não pôde dar a atenção que ela merecia naquele momento. Dinho (baterista) e Liminha (baixo) relembram – emocionados – o dia em que Rita avisou que estava pulando fora do barco. “Eu sai para fora da casa do Arnaldo e comecei a chorar”, conta Liminha. “Era o fim”, sentencia Dinho (de olhos marejados). Não foi ao menos por um tempo, enquanto Arnaldo segurou a formação ao lado de Sérgio.
O irmão é outro que dá a cara a bater no filme. “Ele saiu e eu fiquei com os Mutantes, e eu não sabia o que fazer. Eu estava perdido e segui com a banda porque era o que eu achava que tinha que fazer”, desabafa o guitarrista, que em um dos momentos mais intensos do documentário culpa a imprensa, os amigos e a si mesmo pela falta de tato com o irmão. “Ele é um gênio e a imprensa… e as pessoas ficavam falando coisas que confundiram e atrapalharam ele. São todos uns cretinos. E eu também sou um cretino por não conseguir entende-lo e quero pedir desculpas publicamente por isso”, diz Sérgio.
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O resultado do vôo: sete costelas fraturadas, várias lesões pelo corpo e dois edemas: um cerebral – seríssimo – e um pulmonar. O músico ficou quase dois meses em estado de coma, e quando retornou a si, precisou de mais dois meses para se recuperar (a traqueotomia a que fora submetido afetara suas cordas vocais alterando seu timbre de voz). Amparado por Lucinha Barbosa, Arnaldo renasceu e foi morar em Juiz de Fora, em Minas Gerais, afastado da mídia e do público em busca de paz. De lá pra cá aparições esporádicas em pequenos shows em São Paulo e no Free Jazz Festival, ao lado de Sean Lennon, fã confesso do’s Mutantes, até o álbum “Let It Bed” em 2004 e a reunião consagradora do grupo em 2007.
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LOKI - por Abelardo de Carvalho *, no espaço para comentários da postagem acima.
Para compreender o que ocorreu no Cine Odeon, neste último sábado, 4 de outubro, durante o Festival do Rio 2008, precisamos recorrer ao conceito aristotélico de catarse. Ou seja, por intermináveis minutos, purificamos as nossas almas por meio de descargas emocionais provocadas por um certo senhor sessentão chamado Arnaldo Baptista. Como poucas vezes visto numa pré-estréia de filme, a platéia ovacionou exaustivamente o principal músico d’Os Mutantes, objeto do documentário “Loki”.
O filme do jovem cineasta Paulo Henrique Fontenelle (autor do premiado curta Mauro Shampoo), é sem dúvida o documentário mais impressionante dos últimos anos, afirmavam os mais entusiasmados. Após a sessão, ninguém parecia querer deixar o cinema. Estávamos todos meio que entopercidos por aquela personagem, tragados pela estória tão bem destrinchada, contada de forma simples, direta, sem malabarismos ou pirotecnia na montagem; com narrativa cronológica, intercalando depoimentos, muito material de arquivo (filmes e fotos) e cenas de shows recentes. Detalhe: tudo regado com muita, muita música de primeira.
Temos percebido que o cinema brasileiro atual cumpre o papel de resgatar a nossa expressão artística mais autêntica: a música. Documentários sobre Cartola, Valdick Soriano, Humberto Teixeira, Simonal, Vinícius de Morais, Tom Zé, Caetano Veloso, Titãs, Bethânia, Paulinho da Viola, Tati Quebra-Barraco, Nelson Freire, fankeiros da Lapa e agora Arnaldo Baptista saem fresquinhos do forno e ganham as telas de todo o País. Em contrapartida, o mundo da música parece não dar muita bola pra este fenômeno, pois poucos foram os músicos que compareceram no Odeon para prestigiar “Loki”. Rita Lee, ex-esposa do mutante, era a ausência mais sentida.
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Abrindo e fechando o documentário, vemos Arnaldo pintando um quadro, o qual, em muitos aspectos, faz lembrar trabalhos do Museu do Inconsciente. Algo infantil e profundo. A tela surge branca, mas logo um ser amputado, pernas e braços, paira sobre uma grande cabeça feminina com longos cabelos dourados. Na ponta do pincel surgem as palavras “mutantes”, “sinto muito”, “psicodelismo”, etc. No alto, mãos e teclados, labaredas de fogo também compoem o quadro.
A primeira parte do documentário foca mais a formação da banda, a relação entre Arnaldo e Rita Lee, o sucesso imediato, a alegria de viver e a imersão de todos na busca dos paraísos artificiais. Depoimentos de Liminha, Sérgio Dias e do baterista Dinho Leme são testemunhais. E assim como no caso dos Beatles (assumidamente a única influência), o sonho também acabou para os rapazes dos Mutantes quando Rita disse bye bye. A segunda parte, portanto, é regida pela melancolia. Sem Rita, musa e, ao que parece, única referência feminina ao longo da vida do artista, Arnaldo se entrega à depressão. O limite entre a vida e a morte, a experiência suicida, o coma e o recolhimento posterior são tratados por ele como uma espécie de poda, que no outono se faz nas árvores para que dali em diante nasçam folhas novas. Esta imagem poética, inclusive, é uma das partes mais tocantes do documentário, pois soa como uma confissão de alguém que retornava do inferno.
*Abelardo de Carvalho é produtor e diretor da Cavídeo Produções
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Numa das últimas cenas de Lóki Sérgio Dias, confortavelmente esparramado numa poltrona e metido num impecável terno branco, sintetiza em poucas e contundentes palavras a imagem comumente atribuída ao irmão: “Ele estava vinte anos à frente. Agora, só porque os cretinos não entendiam o que ele falava, eu inclusive, quem somos nós pra julgar? Quem é louco, a gente ou o Van Gogh?” questiona coberto de razão.
Os cretinos, claro, sempre dão um jeito de aparecer. E aí vem toda aquela discussão chata sobre arte e loucura, que a bem da verdade, não leva a lugar nenhum. Depois da sessão do documentário sobre Arnaldo Baptista, os cretinos certamente sairão da mesma maneira que entraram, cultuando a imagem do doidão, do louco, do sujeito perturbado que pôs tudo a perder por uma viagem de LSD. Poucos “deles” vão notar o que o filme de Paulo Henrique Fontenelle realmente pretende: descobrir ou, pelo menos, proporcionar um vislumbre sólido do artista criador encoberto pela personalidade de gênio louco.
A maior dificuldade certamente deve ter sido separar esses dois lados. Histórias sobre acessos de loucura de Arnaldo estão aí aos borbotões, enquanto pouco se fala sobre o comportamento perfeccionista do multi-instrumentista obcecado por amplificadores valvulados, o band-leader que puxava jam-sessions siderais no palco, o pianista alucinado e personal à frente da Patrulha do Espaço, o compositor intuitivo de Lóki e Singin’ Alone. A solução encontrada por Fontenelle foi simples e acertada. Ao invés de desmitificar, corrobora-se o mito e, de quebra, o consumidor leva um gênio criador de primeira grandeza no mesmo pacote. Afinal, os dois Arnaldos existem e são muitos reais: trata-se, sem dúvida, de um artista ímpar na história da música brasileira (e além), mas ignorar ou negar a influência que seu estado mental teve sobre sua obra é estupidez, para dizer o mínimo. O Arnaldo “maluco” é o alicerce do artista e vice-versa.
Mas, atenção, não há exploração gratuita da fragilidade aqui. Pelo contrário: Lóki é um tour de force compatível com um universo paralelo onde confusão mental e emocional se mistura à criação (olha esse papo aí de novo). Um dos (poucos, diga-se) problemas do filme é justamente a falta de fôlego para suportar a viagem. Por falta de tempo, muito pouco ou quase nada é dito sobre a feitura dos discos dos Mutantes ou da carreira posterior de Arnaldo e alguns personagens chave são passados em vista apenas de raspão, sem identificação clara. Luiz Calanca, por exemplo, dono da loja e selo Baratos Afins, que lançou dois discos solos de Arnaldo (Singin’ Alone e o “terapêutico” Disco Voador) é identificado apenas como “produtor musical”.
Embora tecnicamente desleixado, o filme faz da crueza uma forma de aproximar os depoimentos de gente como Rogério Duprat, Gilberto Gil, Liminha, Rafael Villardi (guitarrista original do O’Seis, embrião dos Mutantes) Sean Lennon, Kurt Cobain, Antônio Peticov (artista plástico, o homem que assumidamente apresentou o ácido aos Mutantes), entre outros. A isso some-se um porrilhão de fotos, imagens raras e uma trilha sonora impecável e aí está um retrato sincero, pungente e visceral de um capítulo vivo da música brasileira, tão contundente que por si só já daria um romance dos mais complexos.
A única ausente na festa, como era de se esperar, é Ms. Rita Lee. Mesmo resistindo a tentação de demonizá-la, o filme não absolve nem acusa ninguém. Ainda que o próprio Arnaldo se refira a ela sem sombra de rancor e até admita, com um carinho saudosista na voz, que na época não soube lidar bem com a separação, pois “não tinha muita experiência com seres femininos”, há uma área escura em volta do que realmente aconteceu entre os dois e, por conseguinte, com a banda. Mas isso é assunto para outro filme, outro texto, outras histórias. O consenso geral entre os entrevistados é de que sim, Arnaldo era o cérebro, o coração, o pulmão dos Mutantes. E que assim que as drogas entraram na jogada, houve falência múltipla dos órgãos.
O final da saga, com os shows da reunião no Barbican e no aniversário de São Paulo, em 2006, acaba saindo desatualizado. De Zélia Duncan à Sergio Dias, todos esperavam que a reunião fosse “o combustível para o Arnaldo continuar”. Isso, como todo mundo hoje sabe, não aconteceu. O mutante maior foi o primeiro a pular fora e de volta a tranquilidade de seu sítio em Juiz de Fora vive muito bem, numa boa, numa tranquila, enquanto o irmão prossegue junto ao baterista Dinho com o duvidoso projeto de um disco de inéditas (previsto para setembro pelo selo -ANTI, casa atual de Tom Waits, Nick Cave e Antibalas, entre outros). Arnaldo continua, à sua maneira, vivendo o personagem da “Balada do Louco”, recluso e sob os cuidados da esposa. E, certamente, curtindo isso pacas.
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