quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Amor verdadeiro pra caralho ...


Damn Laser Vampires, um dos "favoritos da casa" (Hail Reverendo Fabio Massari), acaba de disponibilizar um cover do Cramps para download gratuito. Abaixo, o texto que eles fizeram para acompanhá-lo - uma emocionane declaração de amor a "esse tal de rock and roll".

Enjoy.


“A mulher vestia púrpura e escarlate, adornada de ouro e jóias. Tinha na mão uma taça dourada, cheia de abominação e imundície de sua prostituição.

E na sua fronte estava escrito: STAY SICK”

-- Apocalipse, 17: 4 (dos pergaminhos originais)


O destino de muita gente na Terra foi traçado naquele dia quente de 1972 numa estrada de Sacramento, quando a jovem colecionadora de vinis Kristy M. Wallace estendeu o polegar e parou o carro guiado por Erick Lee Purkhiser. Ou pelo menos é assim que gostamos de imaginar que foi.

Nascia a imagem mítica que até hoje povoa nossas mentes – a porta batendo, o motor arrancando e o veículo indo embora na poeira ao som de um velho clássico de Link Wray. Nascia a semente do lendário The Cramps.

Como se uma fenda dimensional se rasgasse revelando a visão de uma realidade bizarra, o surgimento da banda, em 1976 (line up: Lux Interior, Poison Ivy Rorschach, Bryan Gregory & Nick Knox) criou na história do rock um capítulo sem igual. O Cramps era um enigma vindo do espaço, torto, sujo e absurdamente ofensivo, e por cima de tudo transbordando uma sensualidade festiva carregada de humor. A banda era por excelência o “Plano Nove” imaginado por Ed Wood. Ninguém, antes ou depois, sintetizou tão bem e tão generosamente como o Cramps o universo da ficção científica trash, das matinês de terror, da sexploitation (algumas tags pra vocês: Russ Meyer, Jesús Franco, Tura Luna Pascual Yamaguchi). O termo “esdrúxulo” é frequentemente usado na eterna tentativa de definir o som e o conceito da banda, e a dimensão paralela em que ela existe. E, é claro, “esdrúxulo” não é suficiente.

Em tempos de Wikipedia e afins, não vai ser preciso dar uma biografia resumida do Cramps, já que vocês mesmos podem levantar qualquer informação que quiserem sem largar o mouse (não é só uma impressão sua, o ciberespaço ficou mesmo sem graça), por isso vamos pular essa parte. Em vez disso vou falar sobre o que nos trouxe até o texto que você está lendo, nossa relação “espiritual” com o Cramps e a versão dos Damn Laser Vampires para “It Thing Hard-On”.

A história curta: Fomos convidados em 2009 a participar de uma coletânea de homenagem ao Cramps, recheada de boas bandas brasileiras; escolhemos “It Thing Hard-On”, enviamos a música e nunca mais tivemos notícia alguma. Fim.

Fim? Não. Agora a história um pouco mais longa, o director’s cut: Nosso amigo Joe Strume nos chamou recentemente a escrever algumas palavras sobre The Cramps para o Blog Rock de Plástico, já que nosso amor pela banda é conhecido e nos une a outros admiradores numa confraria de gente torta da cabeça – o que muito nos orgulha. Curtimos a idéia e prometemos atender assim que tivéssemos tempo, e enquanto isso aguardávamos resposta dos organizadores da compilação. Bem, a resposta nunca veio, então propusemos ao Joe presentearmos os leitores do blog com a música pra download e, agora sim, nossa história ganhou um belo final.

“It Thing Hard-On” saiu de um dos discos menos celebrados do Cramps e um dos nossos favoritos (Big Beat From Badsville, 1997). Foi produzida em dezembro de 2009 pelo grande Alex Cichoski juntamente com a nossa versão de “Boom Shack-a-Lak”, que mais tarde ganharia um bem-sucedido clipe. Já havíamos gravado uma versão para “Human Fly” alguns anos atrás, quando o Cramps ainda estava na ativa. A faixa ficou disponível pra download durante a semana do Natal de 2007, e hoje deve estar por aí, na web. Tanto “Human Fly” quanto “It Thing Hard-On” estavam no setlist dos três shows em honra ao Cramps que fizemos em São Paulo, Porto Alegre e Belém do Pará (e que, apesar de terem sido um sucesso, não serão repetidos).

Desde que os Vampires surgiram, a associação que as pessoas fizeram ao Cramps (para o bem e para o mal) foi automática, embora a gente negue a comparação por mais lisonjeira que seja. As diferenças são muito claras, não só pelas gigantescas proporções que nos distanciam da banda, mas simplesmente porque nada pode ser comparado a The Cramps. Como temos dito desde sempre, as semelhanças são muito mais visuais e “orgânicas” (a presença da Francis na guitarra, a formação duas guitarras e bateria, etc). Mas posso garantir que entendemos e recebemos a menção sempre como um elogio.

Eles não eram santos – bem pelo contrário; souberam como poucos se apropriar de muito do repertório de seus ídolos a ponto de recriar canções como se fossem suas e ainda por cima convertê-las em clássicos da banda, caso de “Goo Goo Muck” (Ronnie Cook), “I Can Hardly Stand It” (Charlie Feathers), “Sunglasses After Dark” (que é uma canção do Cramps, mas cujo célebre riff foi desavergonhadamente chupado de “Ace Of Spades”, do mentor Link Wray). A pergunta que mata essa charada é: quantas bandas lhe ocorrem neste instante capazes de imprimir esse nível de originalidade ao que comumente se chamaria de “cover”?

Com a morte inesperada de Lux Interior em fevereiro de 2009, e o subseqüente buraco que ela abriu nos nossos corações atrofiados, tivemos que abandonar o sonho de ver nossos ídolos ao vivo. E nem vamos descrever o impacto de tristeza que nos fez calar por uma semana, como se um abalo de repente partisse em dois alguma coisa adorada e até então intocável.

Mas hoje, observada de uma distância mais segura, a trajetória da banda se revela um caminho completo, impecável do começo ao fim, imune a qualquer tentativa de descrevê-la (o que inclui o meu falatório apaixonado) e imensamente influente. O legado infinito de imagens que fervilha na memória de um fã de Cramps é único. A garota pelada caindo da escada, a mulher-diabo espreitando atrás da moita, a patética e genial mosca humana, o “raio sexual hipnótico”, o jantar com Drácula, a criatura de couro negro, a inquietante dúvida sobre o que há dentro de uma menina (“tem coisas, baby, que eu não consigo engolir; minha mãe falou que as garotas são ocas”), o “meu pai pilota um UFO”, as garotas de biquíni com metralhadoras, o fim de semana em Marte, e por aí vai.

Havia muito mais do que um simples gesto na mão de Poison Ivy Rorschach naquela rodovia, quase quarenta anos atrás. O futuro estava ali, preparado, como uma mola comprimida prestes a pular. Estávamos todos ali dentro daquele gesto como num óvulo recém fecundado, todos nós que hoje temos o privilégio de conhecer e amar o Cramps, e que sabemos que essas coisas de amor incondicional não existem pra serem explicadas ou compreendidas.

The Cramps é um lugar onde se refugiar quando tudo fica entediante. É um carregador de energia quando as reservas estão no fim. E principalmente um lembrete do quanto é bom arrancar o cérebro do crânio, arremessá-lo, pingando, na parede, se desfazer de tudo que é pesado e incômodo – como a necessidade de fazer sentido – e assumir que não passamos de uma raça retardada e rastejante que devia, de uma vez por todas, aprender a se divertir.

Porto Alegre, Agosto 2010

Ron Selistre

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