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Damn Laser Vampires, um dos "favoritos da casa" (Hail Reverendo Fabio Massari), acaba de disponibilizar um cover do Cramps para download gratuito. Abaixo, o texto que eles fizeram para acompanhá-lo - uma emocionane declaração de amor a "esse tal de rock and roll".
Enjoy.
“A mulher vestia púrpura e escarlate, adornada de ouro e jóias. Tinha na mão uma taça dourada, cheia de abominação e imundície de sua prostituição.
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-- Apocalipse, 17: 4 (dos pergaminhos originais)
O destino de muita gente na Terra foi traçado naquele dia quente de 1972 numa estrada de Sacramento, quando a jovem colecionadora de vinis Kristy M. Wallace estendeu o polegar e parou o carro guiado por Erick Lee Purkhiser. Ou pelo menos é assim que gostamos de imaginar que foi.
Nascia a imagem mítica que até hoje povoa nossas mentes – a porta batendo, o motor arrancando e o veículo indo embora na poeira ao som de um velho clássico de Link Wray. Nascia a semente do lendário The Cramps.
Como se uma fenda dimensional se rasgasse revelando a visão de uma realidade bizarra, o surgimento da banda, em 1976 (line up: Lux Interior, Poison Ivy Rorschach, Bryan Gregory & Nick Knox) criou na história do rock um capítulo sem igual. O Cramps era um enigma vindo do espaço, torto, sujo e absurdamente ofensivo, e por cima de tudo transbordando uma sensualidade festiva carregada de humor. A banda era por excelência o “Plano Nove” imaginado por Ed Wood. Ninguém, antes ou depois, sintetizou tão bem e tão generosamente como o Cramps o universo da ficção científica trash, das matinês de terror, da sexploitation (algumas tags pra vocês: Russ Meyer, Jesús Franco, Tura Luna Pascual Yamaguchi). O termo “esdrúxulo” é frequentemente usado na eterna tentativa de definir o som e o conceito da banda, e a dimensão paralela em que ela existe. E, é claro, “esdrúxulo” não é suficiente.
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A história curta: Fomos convidados em 2009 a participar de uma coletânea de homenagem ao Cramps, recheada de boas bandas brasileiras; escolhemos “It Thing Hard-On”, enviamos a música e nunca mais tivemos notícia alguma. Fim.
Fim? Não. Agora a história um pouco mais longa, o director’s cut: Nosso amigo Joe Strume nos chamou recentemente a escrever algumas palavras sobre The Cramps para o Blog Rock de Plástico, já que nosso amor pela banda é conhecido e nos une a outros admiradores numa confraria de gente torta da cabeça – o que muito nos orgulha. Curtimos a idéia e prometemos atender assim que tivéssemos tempo, e enquanto isso aguardávamos resposta dos organizadores da compilação. Bem, a resposta nunca veio, então propusemos ao Joe presentearmos os leitores do blog com a música pra download e, agora sim, nossa história ganhou um belo final.
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Desde que os Vampires surgiram, a associação que as pessoas fizeram ao Cramps (para o bem e para o mal) foi automática, embora a gente negue a comparação por mais lisonjeira que seja. As diferenças são muito claras, não só pelas gigantescas proporções que nos distanciam da banda, mas simplesmente porque nada pode ser comparado a The Cramps. Como temos dito desde sempre, as semelhanças são muito mais visuais e “orgânicas” (a presença da Francis na guitarra, a formação duas guitarras e bateria, etc). Mas posso garantir que entendemos e recebemos a menção sempre como um elogio.
Eles não eram santos – bem pelo contrário; souberam como poucos se apropriar de muito do repertório de seus ídolos a ponto de recriar canções como se fossem suas e ainda por cima convertê-las em clássicos da banda, caso de “Goo Goo Muck” (Ronnie Cook), “I Can Hardly Stand It” (Charlie Feathers), “Sunglasses After Dark” (que é uma canção do Cramps, mas cujo célebre riff foi desavergonhadamente chupado de “Ace Of Spades”, do mentor Link Wray). A pergunta que mata essa charada é: quantas bandas lhe ocorrem neste instante capazes de imprimir esse nível de originalidade ao que comumente se chamaria de “cover”?
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Mas hoje, observada de uma distância mais segura, a trajetória da banda se revela um caminho completo, impecável do começo ao fim, imune a qualquer tentativa de descrevê-la (o que inclui o meu falatório apaixonado) e imensamente influente. O legado infinito de imagens que fervilha na memória de um fã de Cramps é único. A garota pelada caindo da escada, a mulher-diabo espreitando atrás da moita, a patética e genial mosca humana, o “raio sexual hipnótico”, o jantar com Drácula, a criatura de couro negro, a inquietante dúvida sobre o que há dentro de uma menina (“tem coisas, baby, que eu não consigo engolir; minha mãe falou que as garotas são ocas”), o “meu pai pilota um UFO”, as garotas de biquíni com metralhadoras, o fim de semana em Marte, e por aí vai.
Havia muito mais do que um simples gesto na mão de Poison Ivy Rorschach naquela rodovia, quase quarenta anos atrás. O futuro estava ali, preparado, como uma mola comprimida prestes a pular. Estávamos todos ali dentro daquele gesto como num óvulo recém fecundado, todos nós que hoje temos o privilégio de conhecer e amar o Cramps, e que sabemos que essas coisas de amor incondicional não existem pra serem explicadas ou compreendidas.
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Porto Alegre, Agosto 2010
Ron Selistre
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