A lama em Chico tem um sentido preciso, localizável: os manguezais dos rios de Recife. João Cabral já se referia a essa lama em Morte e Vida Severina. Essa lama é a base do Mangue Beat: é denuncia, mas é também inserção: “A ciência conseguiu juntar/o mangue com o mundo/e de lá saiu um malungo boy malungo/Antenado, camarada, malungo./Sangue bom. Francisco de Assis. Malungo sempre bom.” in "Malungo".
O mesmo não se pode falar em relação a Damião Experiença. Caso limite, passou ao largo da nossa “Inteligenzia”. Nenhum disco seu, dos tantos que produziu (alguns chutam o número de 36), consta de alguma lista dos dez mais. É uma sombra na música popular brasileira, quando não é motivo de chacota. O programa Ronca Ronca, que me fez conhecê-lo, certa ocasião entrevistava o músico Frejat e este fez menção a uma gravação de Damião no estúdio de Torquato Mariano:
- o técnico de som estava preparando os equipamentos e quando informou a Damião que podia começar, este lhe disse que já havia terminado (risos).
Em Damião, seja por uma insuficiência técnica ou mental, o reguea não é reguea, a música é quase sempre a mesma, o seu violão de poucas cordas só faz barulho e a gaita não toca lá coisa com coisa. Daí, a primeira diferença em relação a Chico, que, quando ouvimos, distinguimos o maracatu, a embolada, a ciranda e outros ritmos pernambucanos. Em Chico existe a idéia de uma restauração agregada a novas tecnologias. Já em Damião não existe restauração nenhuma, é tudo impreciso, inacabado, precário, e daí, por mais paradoxal que seja, a sua força.
O mundo de Damião é tão subjetivo, que está longe de qualquer inserção ao mundo moderno. Em seu livro, que se repete em suas músicas, suas afirmações contra o aborto e contra a nova igreja (teologia da libertação) estão na contramão da história. Poderia-se mesmo, diante desse anacronismo, construir-se um mundo reacionário, anti-moderno, não fosse a sua linguagem de bas-fond, cheia de palavrões e sexo. Impossível um discurso lógico em sua fala, ao contrário do Mangue Beat. É aí que talvez pudéssemos aproximá-lo a Bispo do Rosário com sua técnica de assemblage e seu amor à taxonomia. Psicótico e também marinheiro, como havia sido Damião, Bispo retirava do lixo os seus materiais, o que dava a seu trabalho uma conformação ao tempo. Ambos foram contemporâneos. Se o discurso de Bispo esvaziava-se de uma lógica narrativa, uma vez que a idéia de coleção retira o privilégio de determinados materiais em relação a outros, o discurso de Damião também o fazia. “Todos são iguais, homem ou mulher, preto ou branco, todos são iguais”. E aí, creio, está a base de seu trabalho e o sentido que toma a palavra lama: “ Porque todos nós iremos para a lama. Porque depois que nós morremos, a gente vai para o chão, se a gente é queimado, depois as cinzas, a gente põe no chão e elas viram lama. Então eu digo: Planeta Lamma. É o planeta mais certo que existe no universo. Porque todos ali são iguais, um não pode falar do outro porque todos vão para ali, para serem eles mesmos, podem ser brancos, amarelos, pode ser encardido. Pode estar lindo, pode estar bem pintado, pode ter a maior mansão, tudo de confortável, de repente bateu o coração, e vamos todos nós para o Planeta Lamma” .
Não é à toa o nome “Damião Experiença”. A palavra “experiência” tem em Damião um status tal e qual a palavra “lama”. E se pensarmos bem, ambas se equivalem. Aliás, sua biografia está quase toda nas canções. Não nego que ao me remeter a “Jimmy Hendrix and Experience”, e mesmo “Fátima Bernardes Experiência”, fui levado inicialmente a pensar a “experiência” no sentido científico do termo: um laboratório de experiência, experimentações científicas como o skylab americano. A questão é que, dessa forma, pode-se mergulhar numa determinada prática, em detrimento a outras do senso comum, e então instaurar-se um processo de hierarquização. Os movimentos vanguardistas do século passado caíram nessa armadilha e acabaram apenas invertendo o platonismo, o que os impediram de uma alternativa real à Metafísica.
Mergulhar no seio da experiência, desarticulando qualquer possibilidade de discurso, é aonde nos leva as canções de Damião, alguém de olhos e ouvidos bem abertos ao seu tempo. E lá vai a sucessão de suas imagens:
“o erro foi meu, casar com mulher furada, que outro comeu”; “a mulher que faz aborto não tem pena do seu próprio corpo... para evitar, deve tomar no ânu o ano inteiro”; “vamos deixar de lado a TV – máquina doida”; “a música é pátria do universo, não tem fronteira”; “planeta lamma – 27 palmo debaixo da terra, pode ser barões, ladrões”; “a droga é a história do universo, a língua das pessoas é mais suja do que as drogas”; “o mundo é minha pátria – eu abro a janela, uma aquarela”; “não gosto de ditadura, tem fingimento com abertura”; “sou a favor da natalidade, de tudo que é vida”; “a camisinha é pra pegar dinheiro”; “gurilões, bichos da cara preta”; “minha mina me largou por outra mulher, eu só gosto de mulher sapatão”; “Adeus, Adolfo Hitler, Eva Brown”; “Volta Getúlio Vargas para se encontrar com Fidel Castro”; “Vamos fazer açúcar para exportar para a Rússia”; “os homens estão virando mulher”; “os bichos da cara preta matando de escopeta, não têm medo de careta”; “Rastafari é ser livre”; “vim lá do sertão em busca de solução”; no xadrez – lá mesmo me tornei um vagabundo mesmo sem querer”; “estou desempregado, sem comer e sem dormir”; “você é negra, seu irmão também era negro, quem matou ele? Você sabe muito bem”; “a lida do morro, a vida do morro, os homi desceram, deixando atrás o ódio e a dor”; “o povo da América Central é tudo raçudo”; “morro do galo, era tudo natural, agora não é mais, é tudo artificial, pão com doce pra dar gosto na erva natural”; “só os mendigos salvam o planeta”; “mamãe não quer que eu seja homem não, que homem tem que trabalhar, metido a machão, usa chifre na cabeça pra dizer que é machão”; “o mundo foi bem feito, todo mundo tem defeito, ninguém é direito, não adianta prender, bater, matar, vocês só sabem criticar as mulheres da rua, os travestis, as mariposas”; “eu quero uma mulher livre, que seja humilde pra casar com Damião Experiença, uma mulher bonita pra me sustentar, que saiba passar, que saiba gozar, eu não ando com mulher de graça”; “eu vou para a praia de Havana plantar banana, Havana – cidade maravilhosa de América Central”; “eu não me sinto envergonhado de dizer que nunca trabalhei”; “eu sou peixe, sai do meu pé... mas eu estou aqui na terra, eu não gosto de mar”; “eu não nasci no Brasil, eu nasci na União Soviética, minha mãe é cubana, meu pai é revolucionário, militar da União Soviética, minha mãe é abolicionária”; “eu vejo com olho aberto a chuva levando barraco da favela”; “amor de mulher é dinheiro”; “o que está acontecendo eu já previa, rei de espada, dama de ouro... faria um jogo melhor se eu fosse um rei de ouro”; “eu gosto de apanhar de mulher, eu sou masoquista, ela pode bater, dá na minha cara, dá na minha boca, eu quero gozar a vida. Desde que ela me pague, ela pode fazer o que quiser comigo, eu quero uma mulher, me bate, me dê um bolachão”; “tenho raiva de quem trabalha, sempre fui sustentado por mulher”; “é livre ser Rastafari, eu sou é Rastafari lá do sertão”; “o mundo é dos inteligentes, dos espertos”; “o mundo é dos inteligentes, está dividido em duas potências”; “eu sou fã dos Estados Unidos e da Rússia”; “o papa visita a favela e não faz nada por ela, Papa papão, ta papando o meu próprio pão”; por que a razão de nós americanos da América do Sul não viajamos pra Cuba, para tirar as dúvidas dos jornais americanos que tanto criticam Cuba, falando de Fidel Castro; “homens da lei ficam fazendo certas maldades com essas pobres mulheres (prostitutas), dentro de suas casas vaidade, tanta coisa incubada, eles ficam com tanta raiva, pegam os travestis, mulheres das enxurradas, dando tanta porrada”; “marinheiro João Cândido foi um revolucionário da marinha brasileira... pqgou um navio, saiu baia a fora e gritou – ou liberta a chibata ou aumenta o fogo. Os Homi gritaram bem alto – a chibata ta libertada”; “qual o homem ou mulher que não faz o 1999? Eu não faço porque não gosto”; “meu pai e minha mãe batendo com cipó de caboclo, fui obrigado a fugir, assim mesmo agradeço o que ele fez comigo, quebrou minha boca, minha cabeça”; “Viajando pra Cuba e pra Cortina de Ferro, perturbado da cabeça, mamando as meninas mais novas. Não valho nada mas as mulheres ficam tudo em cima de mim, gostam da minha língua”; “os bichos da cara preta estão acabando o Brasil”; não tem nenhuma gravadora, eu financio o meu próprio acústico... é tudo de graça, não precisa comprar”; “eu quero casar com essa vagabunda, essa cadela arrombada. Estou brocha, já fui o maior cafetão do mangue”; “ eu nasci na Colômbia, Bogotá, vou fumar a pretinha de lá, vou navegar a branquinha de cá”; “ sábados, domingos e feriados, dias de cornudo ficar em casa”; “prostitutas enlatadas, casadas, tanto faz da zona, tanto faz da família”; “diabo tem chifre, demônio bota chifre no homem”; “eu sou a favor da vida, sou contra o aborto, toma no cuzão pra não fazer aborto”; “lésbicas, gays, mulheres que eu amo, elas trazem mulheres pra vocês e pra elas”; “mulher casada quer ser vaca de boi”; “eu casei e virei gay, todo gay é casado”; “neném, vai dormir que papai vai ser mamãe e mamãe vai ser papai”; “botei sua mãe na zona pra me alimentar”; “a mulher é a galinha, o homem é viado, ela fala pra ele – dá em cima de mim, viado!”; “eu só gosto de mulher que só gosta de mulher e toda vez que chegar em casa só encontro mulher”; “só gozar com aquela merda lá que tem em casa?”; “gayzão quer ficar casado pra disfarçar que é gay”; “eu sou casado, eu sou cornão, cornão casado, mas já estou velho, brocha, vou dar no pé”.
Esse é o vocabulário de Damião Experiença. E assim posto, parece mais uma bricolagem, juntando coisas incompossíveis, mas retiradas da experiência. Tara, vagabundagem, comunismo. Materiais retirados do lixo histórico e, ainda que antagônicos, postos lado a lado, como uma coleção de objetos. Qual dentre eles tem a primazia? Aí é que está. Pra quem viveu o ápice da guerra fria, deve mesmo ficar atônito ao ouvir Damião declarar-se fã da Rússia e dos Estados Unidos. “ E eu digo que a terra é um ser vivente, porque ela nos constrói e depôs nos destrói. É por isso que esse livro se chama “Planeta Lamma”, o planeta da verdade, da realidade, é a coisa mais certa que existe, não adianta, o ser humano como homem e mulher são todos iguais”.
A lama ou terra é a base, o fundamento mesmo de um discurso pragmático, anti-lamentação, ao contrário de Chico Science que vê a lama como negação humana e motivo para insurreições. A lama em Damião iguala, em Chico Science é luta de classes e estopim. A lama em Damião induz a transformação pelo trabalho, em Chico Science induz a revolução e a luta armada. A lama em Damião é um apelo a união dos diferentes, em Chico um convite a porrada. E se o instrumento dessa luta em Chico integra a tecnologia, Damião, se não a nega, ao menos não a endeusa.
Daí porque em Chico existe sempre dois mundos: “Pernambuco em baixo do pé, e minha mente na imensidão”; a lama e o caos; o passado e o moderno. "Com as roupas sujas de lama/porque o barro arrudeia o mundo/eu sou como aquele boneco/controla seu próprio satélite./Andando por cima da terra,conquistando o seu próprio espaço. in “Um Satélite na Cabeça”, de Chico Science
Em Damião, ao contrário, o mundo é um só: “e é aqui que termina as minhas histórias e meus versos, as minhas músicas. É o mundo, é o Planeta Lamma”.
O programa MATADOR DE PASSARINHO, que venho apresentando toda segunda-feira, à meia-noite, no Canal Brasil, foi programado para ter vinte e seis entrevistas. Até o momento foram ao ar oito entrevistas, mas já gravamos vinte e três. Na reta final de concluirmos as gravações, fui à campo na tentativa de fecharmos uma das últimas entrevistas e, provavelmente, a mais difícil: Damião Experiença.
Foi assim que
desembarquei na estação terminal do metrô: Praça General Osório. É ali
que o nosso personagem procurado habita.
O seu endereço é
desconhecido. Sabemos que reside na comunidade do Cantagalo, mas não sabemos
exatamente onde. O produtor do programa, Heitor Zanatta, em contato com pessoas
que já tiveram acesso à Damião, deu-me as piores notícias. Mesmo assim, fui a
seu encalço com uma leve e vã esperança.
Rondei as
imediações e fui até o elevador que dá acesso à comunidade. Desisti de subir e
voltei na direção da praça. Chegando à avenida principal, ou ia na direção de
Copacabana, ou ia na direção do Leblon. Decidi então pela segunda opção e,
quando me pus a atravessar a rua, dei de cara com ele.
O próprio. Era
Damião. Menos espalhafatoso, camisa abotoada até o pescoço, chinelo de dedo.
Parece inverossímil, tamanha a coincidência. Mas era ele mesmo, setenta e sete
anos, o baiano arretado que gosta de mulher lésbica.
E a gente ali em
meio a avenida. Me pagou um café no bar da esquina. À certa altura, um mendigo
bêbado se aproximou, o conhecia. Pediu-lhe cinquenta centavos. Fiz questão de
dar para que se afastasse e pudéssemos continuar a conversa. Depois, Damião me
informou que o mendigo era um turco rico que se perdeu nas drogas.
Conversamos
muito. Muita gente das imediações conhece Damião. Me informou que estava quase
cego : um dia amanheceu assim ; mas queria distância de médico.
Não me
reconheceu. Porém, depois de dizer-lhe meu nome, soltou essa : você
continua no Banco do Brasil ?
A conversa se
desenvolveu em meio a delírios e lucidez. Disse-me que sua mãe era judia e seu
pai, russo. Depois me falou que viajou recentemente para a Colômbia.
Falei-lhe do meu
programa e que tencionava entrevistá-lo. Pediu-me que desistisse, que até o Jô
Soares tentou levá-lo e não conseguiu.
Eu o fiz ver que
ele era a minha principal referência. Lembrei-lhe do disco que fiz em sua
homenagem, o SKYLAB III. Cheguei a dizer-lhe que era um gênio, mas ele fez
pouco das minhas palavras.
À certa altura,
perguntei-lhe se era boato o que cheguei a escutar várias vezes:
atribuíam-se aos Novos Baianos o arranjo e a execução de alguns de seus discos.
Ele prontamente negou, chegando inclusive a informar que os Novos Baianos nem o
conheciam. Depois, me garantiu que ele próprio tocou todos os instrumentos.
Falamos de muita
gente, desde André Midani, que, segundo Damião, chegou a convidá-lo várias
vezes a assinar contrato, até Caetano Veloso que, para ele, é música de viado.
Quando perguntei
se tinha muitas mulheres, me falou que atualmente estava broxa.
Em seguida, me
perguntou se eu era casado. Eu quis negar. Percebi que sua pergunta era uma afirmação,
assim como também percebi a distância imensa que nos separava. Eram seus
momentos de extrema lucidez : nada lhe escapava.
Não sei se por
vergonha, por piedade, ou mesmo por algum estranho senso de realidade, respondi
que era fodido. Ele não compreendeu. Eu repeti : eu sou
fodido. E ele replicou : eu sou mendigo.
Num dado momento,
um rapazinho me reconheceu e quis tirar uma foto. Mas nesse instante, Damião
desapareceu.
Cheguei a avistá-lo
em seguida, um pouco à frente, num ponto de ônibus (gosta de andar de ônibus pra desanuviar a cabeça).
Alcancei-o e o agradeci por tudo.
- obrigado por que ?
por Rogério Skylab
AQUI
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