Ele foi usado na recente campanha presidencial pela propaganda governista, mas está longe de ser um petralha, ou mesmo tucano, ou mesmo qualquer coisa. Seu regresso ao Brasil foi citado para dizer que nunca dantes na história deste país um beatle havia nos visitado tantas vezes – um meme de sucesso que depois inspirou outros com artistas menores, como Madonna, Pearl Jam, Iron Maiden e outros.
Sir Paul McCartney, o melhor compositor dos quatro, o galãzinho da banda, o arrumadinho, o vegetariano, o que fuma mas não traga, o que se casou com uma loira milionária, o que toca todos os anos no aniversário da rainha, o que só pensava no dinheiro, segundo seus ex-colegas. Uma enorme fama feita de várias pequenas famas, e se usarmos um termo mais simples e atual, poderíamos dizer que ele é… o beatle coxinha.
Seria injusto chamá-lo de reacionário, e convenhamos que esses tempos de polarização vêm magnificando o significado do termo. Coxinha é coxinha. Coxinha não é sinônimo de fascista, embora um fascista possa se identificar com a lógica e o estilo de vida de um coxinha. O fato é que o perfil de Paul McCartney é o que mais identifica a classe média entre os quatro rapazes de Liverpool, assim como já foi mostrado sobre Pelé em comparação a Maradona.
Apesar de aparentar ser o almofadinha do grupo, McCartney foi, junto com Ringo Starr, quem teve a vida mais dura antes do estrelato. O pai dele não era um vagabundo –seu desemprego era fruto dos tempos econômicos bicudos que o país enfrentava após a guerra, algo que os brasileiros podiam entender melhor quando comentam sobre os beneficiários do Bolsa-Família–, mas a família vivia do salário de sua mãe, que era enfermeira. A morte dela em 1956 (quando ele tinha apenas 14 anos), iniciou um período de aperto financeiro para os McCartney, que só terminaria na década seguinte, com o sucesso do músico e sua banda.
As mesmas dificuldades financeiras seguidas de uma repentina e vertiginosa ascensão social marcaram a vida de Pelé e Paul, e talvez explique porque eles são defensores e ícones da defesa da meritocracia. Quem pensa que o pobre de direita é um fenômeno exclusivamente brasileiro se engana, tem gente assim no mundo inteiro, inclusive na Inglaterra pós-Segunda Guerra, quando a grande maioria da classe trabalhadora era bastante pobre e muitos, como os McCartney, eram admiradores do conservador Winston Churchill.
Aliás, essa é uma das grandes ironias dos Beatles, pois McCartney era sim um filho da classe trabalhadora, enquanto John Lennon foi criado pela tia ultra-conservadora e educado dentro de padrões de classe média tão estritos que talvez tenham provocado seus anseios de rebeldia, que ele libertou através da música.
Até nisso, Lennon e McCartney foram os antagonistas perfeitos, e só se fizeram amigos porque calharam de se conhecer quando ambos estavam chorando a recente perda de suas mães –a de John morreu atropelada quando ele tinha 17 anos. Dez anos depois, quando Ringo cantava Try With a Little Help From My Friends, as diferenças já vinham à tona e a amizade submergia como um submarino.
Um parêntese: se estamos, pelo menos no Brasil, em tempos de amizades desfeitas por causa de política, nada melhor do que aproveitar o tema para abordar um dos grandes clássicos do machismo universal. Depois de 44 anos, várias hipóteses sobre o fim do Beatles já foram provadas e reprovadas, mas a que ficou no imaginário popular é a mesma indicada pela Bíblia para o fim do paraíso. A culpa foi da mulher. No caso do quarteto inglês, da pobre Yoko Ono.
Como quase tudo no mundo das fofocas do showbiz, não foi bem assim. John Lennon realmente obrigou a banda a aceitar a presença de Yoko em todas as reuniões, mas essa foi uma decisão dele, baseado em sua própria mudança de conceitos. Ele queria que a mulher, a quem passou a ver como o negro do mundo, passasse a ser parte importante da sua vida e não um apêndice, o que foi uma mudança evidentemente política –e que depois se percebeu muito claramente em sua carreira solo, em suas ideias de não-discriminação, que o marcaram como o mais político dos quatro. Recordemos que George Harrison também obrigou os companheiros a acompanhá-lo em sua viagem hindu, com a qual nem todos os demais estavam de acordo, e nem por isso as pessoas culpam o Maharishi pelo fim da banda. E quem foi o responsável por fazer desse ciúme por Yoko o argumento oficial para o fim da banda, nas primeiras entrevistas dadas após a separação? Sim, foi o Macca, que depois mudou de versão diversas vezes, mas a opinião pública já havia comprado a ideia.
Os dois beatles já falecidos foram os únicos que nunca mudaram de postura sobre a separação do grupo. Mesmo George, que retomou sua amizade com Paul para gravar Free as a Bird, manteve sua opinião sobre ele ser o mais preocupado com os negócios. Claro que John se referia a isso de forma mais sarcástica, o acusou de corroer a unidade do grupo com sua ganância, entre outras coisas.
A biografia de Paul McCartney escrita pelo jornalista escocês Ross Benson –um dos melhores livros que se pode ler sobre os Beatles, justamente porque não se faz de advogado do biografado ao narrar seus conflitos com os companheiros– confirma o caráter ambicioso de McCartney em diversos momentos de sua vida.
Nos últimos anos da banda, quando o desgaste já era evidente, inclusive antes de John e Yoko se conhecerem, foi Paul o responsável por forçar a manutenção da banda, por medo de que a separação significasse uma carreira solo de sucesso somente para Lennon e não para os demais –e usava exatamente esse argumento para que George e Ringo estivessem do seu lado. Também teria sido ele o único a apoiar Harrison na ideia de viajar à Índia, pensando que poderia recuperar a relação.
E teria sido Macca o que mais se esmerou em recuperar os direitos autorais das canções dos Beatles, segundo relato de Ross Benson no livro-biografia. Teria sido uma sugestão dele ao então amigo Michael Jackson o que levou a perder suas últimas esperanças. Na época do Say Say Say, Paul e Michael eram bastante próximos, tanto que o roqueiro britânico se permitiu dar conselhos ao jovem músico estadunidense: “o importante é ser dono dos direitos autorais, é onde realmente se ganha dinheiro, imagina quanto dinheiro eu perdi nesses anos todos”. Dias depois, Michael encontrou Paul para lhe contar que havia seguido sua sugestão. “Comprou seus direitos autorais?”, perguntou o beatle. “Não, comprei os teus!”
Uma traição que ele aceitou, mas não perdoou, apesar de sua última colaboração juntos ser num álbum chamado Pipes of Peace (“cachimbos da paz”). A canção-título do disco era uma tentativa de ser mais político, mas acabou mostrando que seu lado político era insosso e coxinha, produzindo um dos clipes mais bocós de todos os tempos. Nessa época, ele tentava tomar o lugar do já falecido Lennon como o beatle pacifista. No fim das contas, as carreiras solo dos dois foram brilhantes, mas enquanto Paul era apenas um extraordinário e talentosíssimo músico multi-instrumentista, John se tornou um ícone da paz mundial e fez até canção para os heróis da classe trabalhadora – retomando a ironia que ambos carregaram desde a juventude.
Enfim, Paul McCartney não é um reacionário. Pode ser ganancioso, mas nunca expôs sua consciência vegetariana em propagandas da Friboi. Talvez pense, como Lobão, que as monarquias são charmosas, e por isso canta para a rainha em seus aniversários, mas certamente não tem uma boa opinião das ditaduras desde a desastrosa viagem às Filipinas, e não apoiaria um grupo de malucos pedindo intervenção militar em lugar nenhum do mundo.
E se você, comunista, socialista, anarquista, libertário ou coisa que o valha, resolver deixar de ouvir esse gênio canhoto da música porque ele só usa a esquerda para tocar seus instrumentos, pense bem se não é você quem está defendendo a política do Live and Let Die.
por Victor Farinelli
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