quinta-feira, 8 de abril de 2010

Recordar é viver ...

Depoimento do produtor mineiro Jefferson Santos para o projeto Memória Rock BR90.

Fonte: Meus Sons

O produtor Jefferson “Kaspar” Santos fala com propriedade sobre o que foi o BHRIF - BH Rock Independente Fest -, um dos pioneiros e mais importantes festivais de música independente do país. Cuja edição aconteceu na capital mineira em agosto de 1994, reunindo a nata do indie rock brasuca da época e a presença histórica da lenda norte-americana Fugazi. Leia o que Jefferson disse:

“Quando eu fui trabalhar no BHRIF os alicerces do festival já estavam plantados. Na época eu fazia o fanzine Kaspar e tinha lançado uma edição especial só com novas bandas brasileiras. Saiu uma matéria sobre o zine no Hoje em Dia, um jornal daqui, e o Marcos Boffa, que era o responsável pelo evento, me chamou pra fazer parte da equipe. Porque havia um sentimento generalizado na grande imprensa que não existia uma cena de nova música brasileira, que o que tinha era só banda cover. E a gente, que tava envolvido com fanzine, via a história completamente diferente: a cena era gigante, pungente.

O festival fazia parte dos preparativos para a comemoração dos 100 anos de Belo Horizonte. A prefeitura criou uma comissão para cuidar desses eventos, que eram o BHRIF, uma temporada de poesia e um festival de teatro. Desses, só o FIT continuou e ainda existe, ainda veiculado à prefeitura mas gerenciado por iniciativa privada.

Então não sei como o festival surgiu mesmo, como foi a idéia inicial, o estalo de “Ah, vamos fazer um festival de rock independente”. Isso é coisa do Boffa - a idéia do festival foi dele, o responsável foi ele. O meu papel foi mais modesto: eu fazia parte da comissão que escolhia as bandas (ao lado do Marcelo Dolabela, do Arthur G. Couto Duarte e do Alex Antunes, todos uma geração acima da minha, meus ídolos da imprensa musical na época) e cuidava diretamente das mostras paralelas: exposições, palestras, debates. Meu papel mais importante, eu acredito, foi ter sugerido e ficado responsável pelo Off-BHRIF, um evento paralelo ao principal. A prefeitura bancou som e estrutura para esse Off, eu convidei as bandas e ninguém nesse palco ganhou nada, nem passagem, nem hospedagem, nada. E foi, pra muita gente, a melhor parte do BHRIF…

O cenário na cidade era dominado pela Cogumelo, que fez escola e história. Havia um outro selo/loja, chamado Câmbio Negro, que lançou o Último Número. Havia essa santissima trindade alternativa/independente: Ultimo Número, Sexo Explícito, Divergência Socialista. E a turma do metal. E começavam a pipocar umas bandas hardcore, como o VE, Dreadfull, de uma moçada skatista na cidade. Do interior não tinha muita notícia. Particularmente conhecia as cenas de Divinópolis, onde nasci (que tinha Catchup Boys e Lupe) e Juiz de Fora, onde havia morado (que tinha os projetos eletrônicos do Paulo Beto/Anvil FX/Silverblood e mais um monte de coisa e umas bandas de rock). O projeto do BHRIF possibilitou, por exemplo, um festival semelhante em Divinópolis. E nessa época começavam a pipocar outros festivais país a fora, como Juntatribo e o Abril pro Rock (sem dúvida o mais bem administrado desses três).

Esses três festivais são, sem dúvida, responsáveis por muito do que foi feito na música brasileira nos últimos anos. Possibilitou o surgimento de bandas, o intercâmbio, o desenvolvimento de cenas. Foi importante mostrar que era (e hoje, mais que nunca, ainda é) possível criar essas coisas as margens da indústria fonográfica. Do BHRIF, pro exemplo, veio a Motor Music e por causa da Motor o Nobre começou a fazer shows em Goiânia e a cidade é hoje exemplo dessa possibilidade. A cena goiana, a Abrafin, isso tudo é culpa desses tres festivais aí. Se a gente não tivesse inventado de fazer uma coisa dessas talvez, aí sim, teríamos uma cena brasileira ainda dominada pelas bandas cover…”

Clique AQUI para ler uma resenha do BHRIF por Adelvan Kenobi

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Independência S.A.

por Rodrigo Lariú

Idealismo, paixão e teimosia movimentam as engrenagens da prolífica indústria dos festivais independentes brasileiros

Fonte: Rolling Stone

Ao criarem os festivais Juntatribo (em 1993, em Campinas), Abril Pro Rock (Recife), BHRIF (Belo Horizonte) e o Humaitá Pra Peixe (Rio de Janeiro), os três em 1994, seus produtores tinham um objetivo principal bem definido: ajudar as bandas de que gostavam. Hoje, já chegam às dezenas os festivais independentes acontecendo durante todo o ano, do Pará ao Rio Grande do Sul. A explosão recente desta espécie de evento motivou a fundação da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) e o contínuo nascimento de novos projetos. Só em 2006, três novos festivais aconteceram, alguns com verba inicial de R$ 70 mil já na primeira edição.

Um conceito é básico para entender toda a movimentação em torno dos festivais independentes: sem eles, grande parte dos artistas de hoje (independentes ou não) como Nação Zumbi, Los Hermanos, Autoramas e Detonautas, teriam sua carreira profissional dificultada ou atrasada. No começo dos anos 90, várias bandas utilizavam caminhos alternativos para divulgar seus trabalhos e chegar a uma gravadora. Esse caminho havia sido criado por bandas underground do fim da década de 80, como Pin Ups, Killing Chainsaw e Second Come. Elas cantavam em inglês, não eram unanimidade na imprensa e dependiam de seus próprios meios para existir. Faziam shows em locais pequenos, vendiam suas próprias fitas demo e usavam os fanzines como principal meio de divulgação. Este era considerado um "desvio" do esquema do rock brasileiro de então, quando estúdios caros, empresários e muita grana eram o único caminho para se criar uma carreira. Nomes como Raimundos, Pato Fu, Little Quail & The Mad Birds, Chico Science & Nação Zumbi, Concreteness, Planet Hemp, brincando de deus e dezenas de outros pegaram esse "desvio".

Em 1994, com a estabilização econômica do Plano Real, bandas, gravadoras independentes e fanzines aperfeiçoaram o modelo underground de fins dos anos 80, unindo a ideologia do it yourself e contatos país afora. Mais eficiente do que fazer tudo sozinho era unir várias bandas, vários fanzines, várias gravadoras independentes em um único evento: nascia o festival independente.

Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos não se falava de outra coisa que não fosse o Lolapalooza, festival itinerante criado por Perry Farrell (Porno for Pyros e Jane's Addiction), que reunia a nata do mercado independente norte-americano e era o sonho de consumo de amantes de música mundo afora. A impressão que se tinha daqui, pleno período pré-internet, era de que tudo de relevante acontecia durante o Lolapalooza.

No Brasil, o histórico de eventos desse tipo era praticamente nulo. Os festivais da época passavam longe de ser independentes: Rock in Rio e Hollywood Rock eram eventos de marca, atrelados ao mainstream e muito distantes da realidade do nascente mundo independente. É histórica a campanha dos fãs para incluir o Sepultura, no auge do sucesso do disco Arise, no Hollywood Rock de 1993. E isso porque a banda já nem fazia mais parte do cenário independente na época.

Pensando em eventos que reunissem as bandas emergentes, as primeiras edições do Abril Pro Rock, Juntatribo, Humaitá Pra Peixe e BHRIF apresentaram nomes que poucos na época tinham ouvido falar: Tube Screamers, Raimundos, Muzzarellas, Paulinho Moska, Corações e Mentes, Coma, Funk Fuckers, Low Dream, mundo livre s/a., Inhumanoids, Waterball, Mickey Junkies, Skijktl, Serpent Rise; e internacionais, como Fugazi e Swamp Terrorists. A intenção era clara: em vez de reunir dezenas de milhares de assinaturas e implorar para que uma banda entrasse num festival de grande porte, produzia-se um show para as novas bandas tocarem.

A estabilização da economia ajudou o nascimento da cena, mas também impulsionou o mercado musical brasileiro dos "grandes". As gravadoras majors criaram fenômenos de venda como Mamonas Assassinas, a axé music, o pagode e o sertanejo. Turbinada por discos que vendiam centenas de milhares de cópias, por um mercado fonográfico que era o sétimo maior do mundo e por muito dinheiro, instaurou-se uma espécie de "monocultura musical" no país. A saída, mais uma vez, eram os festivais independentes.

Fugindo do período do primeiro trimestre, "quando nada acontecia na cidade, a não ser o axé", o produtor Paulo André montou o Abril Pro Rock no quarto mês de 1993, e assim vem sendo há 14 edições. "Todos achavam loucura, mas percebi que algo de novo acontecia na cidade e que faltava um lugar para as bandas se apresentarem", relembra. Paulo era dono de uma loja de discos em Recife e viu no evento uma saída para divulgar seu negócio e a música de seus amigos e clientes, além de reunir a emergente cena musical local. Há quilômetros de distância, Bruno Levinson, produtor do festival carioca Humaitá Pra Peixe, teve visão semelhante: "Sempre enxerguei no Humaitá uma vitrine para que os artistas se desenvolvessem, para que pudessem criar carreiras a médio e longo prazo", explica. "Era muita gente boa sem espaço para tocar."

Com a devida atenção da imprensa, as grandes gravadoras perceberam a novidade e passaram a enviar "olheiros" aos festivais. Consagrado no primeiro Juntatribo, que teve cobertura ampla da MTV, a banda brasiliense Raimundos foi contratada pelo selo Banguela, uma parceria dos Titãs com o produtor Carlos Eduardo Miranda, distribuída pela Warner Music. A Sony Music já tinha o selo Chaos, onde lançara Skank, Gabriel O Pensador e lançaria Chico Science e Planet Hemp, esta última revelada pela segunda edição do Juntatribo. Ainda na primeira metade da década de 90, quase todas as gravadoras multinacionais tinham selos independentes. A BMG reativou o selo Plug (que nos anos 80 lançara Picassos Falsos, Engenheiros do Hawaii, Replicantes, Violeta de Outono, Obina Shock, entre outros), contratando o Pato Fu. A EMI ativou o selo Rock It!, capitaneado por Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) e André Muller (Plebe Rude), que lançou discos de bandas mais alternativas como Second Come, Pelvs, Gangrena Gasosa, Low Dream e Dungeon. Não por coincidência, todas essas bandas participaram, em algum momento, de festivais independentes.

Atentos a essa movimentação, mais festivais surgiam. No Rio de Janeiro, sede das grandes gravadoras, nasceu o SuperDemo. De Curitiba veio o BiG, uma insanidade com quase 100 bandas. Em Salvador, o Boombahia. Em São Paulo, o Screamadelica. Em Goiânia, surgia o Goiânia Noise Festival, hoje considerado o principal festival independente do país e cuja primeira edição aconteceu em 1995.

Mesmo sendo cria da primeira leva de festivais independentes, o Goiânia Noise só se estabeleceu e tornou-se referência quando optou pelo formato que hoje é usado por quase todos os outros eventos semelhantes: seus shows acontecem em locais de médio porte, sempre com dois palcos, 75% das atrações são independentes, muitas delas originadas na própria região onde o festival se realiza e usando leis de incentivo para alcançar subsídios (mas o evento não deixa de acontecer caso a verba não saia).

"Eu acho que o fato de Goiânia estar longe dos grandes centros, de não ter uma história roqueira e mesmo assim organizar um festival com 20, 30 bandas de rock pesou muito", analisa Fabrício Nobre, um dos produtores. "Eu sempre pirei nos festivais europeus, com mais de um palco, onde você mistura atrações aparentemente díspares como Ratos de Porão e Violins", diz. "O público sempre foi muito receptivo em Goiânia. O simples fato de você tocar guitarra já é contestador e o público do festival assiste a tudo. Isso impressiona as bandas que vêm de fora e a imprensa."

Se durante a segunda metade dos anos 90 os festivais independentes eram vistos apenas como provedores de novos talentos para o mainstream, a cena começou a mudar no começo da década atual. Antes, a principal propaganda dos festivais era ter revelado uma banda para o mercado fonográfico. A história diz que o Abril Pro Rock revelou a cena mangue, a banda baiana Penélope e o Los Hermanos; o festival MADA de Natal lançou o Detonautas; o Humaitá Pra Peixe empurrou a carreira do Planet Hemp e de Marcelo D2.

Atualmente, em um cenário onde a tão falada "crise do mercado fonográfico" e a nova orientação política iniciada com o primeiro mandato do governo Lula dão as cartas, a ordem é seguir uma orientação auto-suficiente voltada para o fomento do mercado independente como fim, e não mais como meio. O discurso mudou: o que mais se lê em jornais são as bandas questionando se vale a pena assinar com uma grande gravadora. Por sua vez, as grandes gravadoras não mandam mais olheiros aos festivais, onde cresce a quantidade de estandes de gravadoras independentes, que vendem seus discos e camisetas diretamente ao seu público. No Goiânia Noise de 2003, o estande da Monstro vendeu, em três dias, R$ 8 mil e quase 100 discos.

A maior função dos festivais continuava sendo gerar o intercâmbio entre bandas, fanzines, selos, produtores e jornalistas, mas agora está ligada principalmente ao próprio mercado independente. Aí mora a grande diferença do modelo atual em relação aos festivais da década passada: o evento passa a ser visto como um amplificador da produção musical e cultural daquela região. Em um país de dimensões continentais, cidades distantes do eixo Rio-São Paulo se espelham neste modelo de evento para entrar no mapa brasileiro. Enquanto fenômenos de massa como É o Tchan ou Banda Calypso se desligam das raízes e tornam-se acontecimentos nacionais, são os festivais independentes que garantem a projeção de cidades, estados ou regiões.

No final de 2005, 14 produtores dos principais festivais nacionais se reuniram em Goiânia para criar a Abrafin (Associação Brasileira de Festivais Independentes). Segundo a associação, para ser independente, um festival deve escalar pelo menos 75% de artistas não ligados às gravadoras multinacionais, não pode ser gerido pelo governo, não pode ser bancado por grandes veículos de comunicação ou por grandes empresas. Pelo estatuto, Tim Festival, Claro que é Rock, Nokia Trends e Skol Beats não são considerados festivais independentes, pois são financiados por grandes marcas. Da mesma forma, eventos como Ceará Music, Planeta Atlântida e Festival de Verão de Salvador não poderiam se associar.

Isso não significa que os independentes não queiram o apoio de marcas. "Não vejo problema em me associar a essas empresas, desde que a parceria seja saudável," diz Bruno Levinson, do Humaitá Pra Peixe, o qual já teve patrocínio da TIM, Pepsi, Sprite, Clearchannel e conta com o apoio da operadora Oi em sua edição 2007. Mesmo com o patrocínio, seu festival foi convidado a se associar à Abrafin. "O fato de eu ter feito a edição de 2005 com patrocínio e a de 2006 sem, para mim só confirma que o meu evento é independente o suficiente para se associar a uma marca ou acontecer sem ela."

Atualmente, parte da verba de um festival independente vem de apoio governamental. A edição 2006 do Abril Pro Rock custou R$ 720 mil, sendo que um quarto do valor veio do apoio que o Governo de Pernambuco fornece desde 1995. Outra parcela saiu da Petrobras. A edição mais recente do Goiânia Noise custou quase R$ 300 mil, dos quais um terço saiu da Lei Goiás de incentivo cultural. "Se não fosse o público, que nesta edição foi de 6 mil pessoas, teríamos perdido dinheiro", lamenta o produtor Fabrício Nobre.

Além dos altos custos, a montagem das programações dos festivais surge como problema, uma vez que contratar nomes de peso como Los Hermanos ou Pato Fu implica em cachês e passagens que às vezes custam mais que o custo total de um festival com bandas menos conhecidas. "Ao não escalar bandas assinadas com grandes gravadoras, o festival abre espaço para a gravadora da sua cidade, que está lançando um disco de uma banda local", explica Pablo Capilé, produtor do Calango e do Grito Rock, ambos de Cuiabá. Outro obstáculo, os altos custos de produção, interessa diretamente ao Governo Federal. Dione Manetti, diretor do Departamento de Fomento à Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, vê nos festivais "uma manifestação de organização coletiva em busca de soluções próprias para questões como emprego". Curiosamente, o Ministério do Trabalho e Emprego se interessou pelos festivais antes que o Ministério da Cultura. "A política do governo atual é conversar com todos, com os 'grandes' e com 'os pequenos' e detectamos nos festivais uma forma organizada de autogestão que interessa ao programa de economia solidária", explica Manetti.

O "viés político" já está no modus operandi de alguns desses festivais, como o Calango, em Cuiabá, "nascido" em 2001 com uma verba de R$ 35 mil da lei de incentivo estadual. Já em sua quarta edição, o festival custou R$ 200 mil, 30% dos quais saíram desta mesma lei. O restante ficou por conta dos rendimentos com bilheteria, bar e do fundo de cultura municipal. "Toda ação é política", define Capilé. "Nossa intenção com o festival é fortalecer o mercado de cultura e toda a cadeia produtiva que gera emprego e educação para o nosso estado. O governo não se intromete no formato e na programação do festival, é uma relação de parceria." Mesmo com um melhor relacionamento com empresas privadas e com o governo, os festivais ainda sofrem para aparecer para o grande público. Dados da Abrafin indicam que a maioria dos 300 mil espectadores dos festivais realizados em 2006 são jovens (16 a 34 anos), das classes A, B e C, com instrução de nível médio a superior.

Contando com bandas novas ou consagradas, com ou sem dinheiro, com verba do governo ou ajuda privada, com milhares de pessoas na platéia ou com apenas uma centena delas, a existência do festival independente é diretamente relacionada à perseverança de seus organizadores. A primeira edição do festival Se Rasgum No Rock, em Belém (PA), contou com Wander Wildner, Cachorro Grande e mundo livre s/a, teve uma média de 2 mil pessoas por noite e, mesmo assim, amargou um prejuízo total de R$ 11 mil. "Mas encaramos isso como lucro, pois para a primeira edição, o retorno que o festival deu em visibilidade nacional para a cena local e para o patrocinador já quase que nos garante para o ano que vem", explica o produtor Marcelo Damaso. A dificuldade de transpor barreiras e atingir um público mais amplo representa um dos grandes obstáculos dos festivais independentes - obstáculo este que os organizadores adoram tentar transpor. "Nós pensamos na possibilidade de trazer a Pitty em 2007", divaga Damaso. "Mas, a princípio, eu prefiro ficar mesmo com os grupos independentes."

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Cidade do rock

Fazendo o dever de casa, Goiânia se transforma num dos principais pólos do rock independente nacional. Matéria de capa da edição número 22 da revista Outracoisa, de agosto de 2007.

por Marcos Bragatto

Fonte: Rock em Geral

Se existe um lugar em que o rock independente está dando certo nesse País, esse lugar se chama Goiânia. Em pouco mais de treze anos a cidade se inseriu fortemente dentro do cenário da música independente e criou aquilo que todo mundo gosta de chamar de cena. Goiânia tem uma das maiores gravadoras independentes do Brasil, muitas bandas, três festivais de projeção nacional, programas de rádio e publicações independentes, e – o melhor – tem formado um público segmentado e fiel à nova música brasileira, numa época em o que o “ser eclético” é que dá o tom. Mais: ajudou a impulsionar a experiência de uma nova lógica de mercado em outras capitais também distantes dos pólos culturais do sul maravilha, que hoje se conhece como Movimento Fora do Eixo, e ainda participou da criação da Abrafin – Associação Brasileira de Festivais Independentes, já que o presidente é um goiano roqueiro.

Uma das premissas da tal lógica de mercado é o trabalho a médio e longo prazo que visa muito mais a consolidação de uma carreira do que estopins cada vez mais esporádicos no mercado fonográfico. Um trabalho de formiguinha que só começa a aparecer depois de contabilizados dez, 13 anos de atividade. Tanto que só agora é possível enxergar como a coisa se deu em Goiânia, que, a bem da verdade, ainda precisa ser mais bem sucedida no quesito rentabilidade. “A situação hoje não é tão profissional, financeiramente os caras continuam tendo que viver de outras coisas, mas é profissional no campo da produção, no realizar. Os discos e as coisas da Monstro são muito bem feitas”, conta Fabrício Nobre, se referindo à Monstro Discos, a principal gravadora/produtora de Goiânia. Há dez anos, Nobre, que hoje é presidente da Abrafin, era apenas um freqüentador do Goiânia Noise Festival, o evento considerado divisor de águas na cidade e que chega agora à décima terceira edição. Insatisfeito por não ver sua banda (MQN) no elenco do festival, ele decidiu arregaçar as mangas e fazer o seu próprio. Assim surgia o Bananada, em 1999, o outro festival que faz a fama da cidade, e acontece no primeiro semestre. O nome é uma referência ao selo de Fabrício, o Me And My Monkey Records, e à forma de dar uma banana para uma certa feira Agropecuária com ênfase na música sertaneja que acontece na mesma época. Pouco tempo depois Fabrício se juntou à Monstro, que hoje é gerida por pelo quarteto de ferro completado por Leo Razuk, que já trabalhava com ele, Leo Bigode e Márcio Jr.

Formando um público rock

Fabrício e o Bananada podem ser chamados de segunda geração do rock de Goiânia. Pioneiros mesmo foram Leo Bigode e Márcio Jr., que, empolgados com a efervescência do rock nacional mostrada na TV via cobertura do histórico Festival Junta Tribo, realizado em Campinas em 93 e 94, decidiram fazer algo parecido em Goiânia. Juntos eles mantinham a loja Sonic, que também era um selo de fitas cassete. Márcio se lembra muito bem: “Eu tinha acabado de montar o Mechanics e havia uma nova leva de bandas que eram muito legais e inspiradoras, tipo um novo rock brasileiro”. O mundo ainda vivia o rescaldo do sucesso das bandas de Seattle. Se um grupelho de uma gravadora de uma cidade do interior como o Nirvana podia dominar o mundo da música pop, por que não fazer isso acontecer aqui? Não por acaso hoje volta e meia Goiânia é chamada de “Seattle brasileira”. E pensar que no início as pretensões eram mínimas. “A gente só queria trazer bandas de fora pra tocar aqui e que as nossas bandas tocassem fora”, lembra Leo Bigode. Queríamos que mais bandas aparecessem, que o cara que tava ali vendo o show no ano seguinte tocasse com a banda dele. Cumpria a função do festival”.

Uma outra função do festival, bem mais interessante, foi a de formar público. Quem costuma ir ao Goiânia Noise vê sempre uma boa quantidade de gente cantando junto com quase todas as bandas na frente do palco. O publicitário Eudenes Romão é um desses. Não só viu a gênese do festival como foi a todas as edições. “É a melhor oportunidade de sacar o que existe no universo independente. O perfil do festival e público permite uma liberdade na escalação que em outra cidade pareceria esquizofrênica, mas aqui rende shows imprevisíveis”, avalia ele, que batiza o movimento local de Grock. Já a estudante Bárbara Junqueira, que tinha 5 anos quando tudo começou, viu o rock nascer para ela através do GNF. “A primeira vez que fui a um festival de rock foi no Noise, fiquei encantada. A evolução foi tão grande quanto meu gosto musical. O primeiro que fui foi o oitavo, e desde então o festival só tem melhorado”, vibra. E vai além: “A cena underground de Goiânia é dividida entre antes e depois da Monstro. Foi quando a cena indie ficou muito forte na cidade e nunca mais foi embora”. Bárbara é o típico exemplo do público formado em Goiânia, que senão é de grandes proporções, mostra uma fidelidade ao jeito independente de ser. “A gente conseguiu formar um público de três, quatro mil pessoas que realmente gosta de música independente. Eles vão pra pirar no show, isso é que é impressiona as bandas que vêm tocar e emociona quem é da cidade”, aponta Fabrício.

Jimmy, o vocalista grandalhão do Matanza, é um que, olhando de cima do palco, sabe do Fabrício está falando. “Graças aos monstros aquilo é uma cidade muito doida. Aqueles caras botaram todo mundo pra ouvir rock, e hoje tem uma juventude que sai de noite de preto pra ouvir rock. Em Goiânia o show do Matanza é muito doido, é foda”, diz ele. Em 12 edições o festival já aconteceu em tudo o que é lugar: ginásio de escola, cinema pornô… E hoje se estabeleceu no Centro Cultural Oscar Niemayer, inaugurado no ano passado. A primeira edição foi cooperativada, cada banda pagou R$ 50 para tocar. Já a desse ano está orçada em R$ 700 mil, tem como patrocinadores/apoiadores a Petrobras, Lojas Novo Mundo, cerveja Sol, Sebrae e Secretaria Estadual de Cultura, entre outros. A expectativa de público é de 15 mil pessoas, nos três dias. Já tocaram no GNF nomes como Psycho Drops, Tequila Baby, Dance Of Days, Relespúbica, Wander Wildner, Ratos de Porão, Los Hermanos, Violeta de Outono, Cachorro Grande e Cólera, entre tantos outros. Em meio a muitos eventos paralelos, nesse ano acontece no GNF a reunião anual da Abrafin. Não por acaso , um edital da Petrobras classificou seis festivais filiados à entidade, isso sem falar no pioneiro Abril Pro Rock , de Recife, e no Porão do Rock, de Brasília, que já tinham o patrocínio da maior empresa da América Latina.

Articulação e ocupação de espaços

Festival implantado, chegava a hora de a dupla criar um selo. A idéia era deixar de lado aquela coisa de fitinha demo e partir para lançar disco. Em plena era do CD, o primeiro lançamento da Monstro foi um vinil azul do Mechanics, única banda que participou de todas as edições do Goiânia Noise. “A Monstro começou como selo, fazemos porque gostamos mesmo, a gente sabe que vender música no Brasil não dá dinheiro”, conta Leo Bigode, mandando a real. “Na época ninguém fazia vinil, tinha um só, do Pin Ups, e o resto eram os punks, mas era preto com negócio xerocado. Eu falava: Vamos gastar 300 paus a mais e fazer uma capa colorida, um vinil lilás, vamos inventar, vamos tirar onda. Já que não vamos ganhar dinheiro, vamos fazer as coisas mais loucas”. As coisas mais loucas foram ficando cada vez mais sérias e freqüentes, e hoje, nove anos depois, a Monstro já contabiliza quase cem lançamentos, sendo 30 de Goiânia, num total de 20 artistas. Entre as 70 de fora da cidade, nomes de destaque como Autoramas, mundo livre s/a e Ratos de Porão, entre outros. E o número cem promete mais loucura. “O ‘Monstro 100’ vai ser vai ser um box com seis CDs compilando uma música de cada lançamento, acompanhado de um libreto com a história da Monstro, dos discos e das bandas. Vai ser um box bonitão, igual aquele da Alternative Tentacles, que junto com a Estrus é referência forte pra gente“, entrega Márcio, citando duas das mais representativas gravadoras independentes americanas.

Hoje a Monstro é uma produtora que realiza os dois festivais, tem um programa numa rádio local e é uma das gravadoras mais requisitadas no meio. “A cada segundo ligam 400 pessoas pra gente querendo lançar um disco pela Monstro, de banda de black metal até música sertaneja”, exagera Márcio, que atribui a procura à estrutura que a equipe desenvolveu. A saída para atender a essa demanda sem alterar o padrão de qualidade definido desde a criação do selo foi a estruturação de um sub selo, o Alvo Discos. “Está cada vez mais difícil vender CD, então a gente trabalha com uma visão articulada de tudo, somos uma gravadora, uma produtora, etc. Existe um tipo de logística que a gente vende pra quem não se enquadra no perfil estético da Monstro, que é o Alvo, que tem mais de 20 discos lançados”, justifica Márcio. Toda essa articulação, no entanto, não seria possível se não houvesse uma atuação no campo político, que tem rendido frutos num âmbito regional (junto à Prefeitura de Goiânia), mas ampliado com o apoio da Abrafin. “A gente atua num campo de política pública para a cultura, porque a nossa produção cultural é tão legítima quanto as coisas regionais daqui. Reduzir Goiânia a um só tipo de manifestação cultural é de uma pobreza que a gente não pode aceitar. Então a gente começou a se articular politicamente para poder ocupar os espaços”, define Márcio, candidato declarado a vereador.

A terceira geração e o desafio de não morrer na praia

Os frutos desses 13 anos de atividades não são colhidos só nos eventos promovidos pela Monstro. Além da formação de um público fiel, as atividades boladas pela produtora agitaram a cena de tal forma que já se pode notar uma terceira geração do rock goiano, mais claramente no festival Vaca Amarela, que acontece desde 2001, e é produzido pela Fósforo, um outro selo independente da cidade. Articulado com o circuito fora do eixo, o festival teve sua grande edição nesse ano, reunindo 32 bandas em dois dias. “Fora isso tivemos 35 eventos realizados (média de um evento a cada 10 dias), quatro EPs e três CDs lançados, além de 22 bandas trazidas de outros estados e uma do exterior”, contabiliza Pablo Kossa, produtor executivo. Ele reconhece a importância do pioneirismo da Monstro na hora de montar sua empreitada. “A Fósforo é fruto do trabalho da Monstro, todos nós nos formamos dentro dos eventos deles. O Vaca Amarela nasceu de uma reação aos festivais deles. Eu tinha uma banda que não tocava nos eventos deles e resolvi fazer meu festival pra tocar na hora em que eu quiser”. Lembram da história de Fabrício e o Bananada? Então… Só que nesse caso, apesar do clima amistoso, não deverá haver uma fusão da Monstro com o Vaca. “Isso tem um papel fundamental para aumentar a cena, eles acabam desafogando a gente, fazendo as coisas que a gente não dá conta de fazer”, acredita Leo Bigode. “Não rola competição alguma, muito pelo contrário. Concorrência é coisa para o mercado de refrigerantes, não para a música independente”, crava Pablo. Se antes a Monstro incentivava a montagem de novas bandas, hoje inspira a formação de produtores e outros profissionais ligados à cadeia produtiva de eventos do rock independente.

A preocupação de Leo Bigode em dar ou não conta de toda a produção ligada o rock em Goiânia traz a questão de para onde aponta o crescimento da cena independente, não só lá no Cerrado, como em todo o Brasil. Afinal, aonde isso tudo vai dar? Pra Fabrício Nobre, “músico é um trabalhador de classe média como qualquer outro. Eu torço para que tenha um monte de mercado médio, cada vez menos popstar. O jeito que a Monstro trabalha pode ajudar algumas bandas a construir carreiras, e o modelo de festival da gente já serve de exemplo para o Brasil inteiro”. O tal mercado médio a que ele se refere é aquele em que um artista não vende milhões, mas o suficiente pra pagar as contas e tocar a vida às custas do rock. “Hoje você não fica refém de uma estrutura que não atendia a mais ninguém, e isso é muito bom porque a coisa vai se descentralizando”, concorda Márcio Jr. “Mesmo que a gente venda menos discos, é melhor, porque é um momento de desestruturação de um formato equivocado. Há 15 anos existia um mercado consolidado da indústria fonográfica e a gente brincando de fazer rock. Agora não é mais brincadeira, é um negócio. E a gente tem uma vantagem que não estamos enclausurados num escritório, mas no dia a dia da produção musical”, acredita. Já Leo Bigode enxerga um grande desafio pela frente. “A música tá vinculada à mídia. Eu tenho certeza que se alguma banda nossa tocasse na grande mídia venderia. Eu queria que o público do Charlie Brown comprasse o disco do MQN ou do Carbona, mas a massa nem sabe que a gente existe. Há cinco anos o grande desafio era a distribuição, hoje o disco chega nas lojas. A questão agora é o cara saber que existe, senão vai todo mundo morrer na praia”, prevê.

Raio X

O que faz de Goiânia a Meca do rock independente nacional

1.093.000 habitantes

35 shows de bandas de fora da cidade em 2007

Principais bandas
Hang the Superstars
Mechanics
MQN
Barfly
Violins
Valentina
The Rockefellers

Selos
Monstro
Alvo Discos
Fósforo
One Voice
Two Beers or Not Two Beers
Anti Records
Allegro Discos

Festivais
Goiânia Noise Festival (15 mil pessoas)
Bananada (5 mil pessoas)
Vaca Amarela (2 mil pessoas)
Rock In Sopa (mil pessoas)
Marmelada (mil pessoas)
Miscelânea (mil pessoas)

Mídia
Revista Decibélica
Zine Dr. Gore
Rádio Venenosa FM
97 Noise (Rádio 97 FM)
Rádio Universitária
Rádio on line: www.radiomidia.com

Locais de show
Centro Cultural Martin Cererê
Capim Pub
Horda Sex Rock
Vai Tomar no Kuka Bar
Woodstock
Estúdio República
Ambiente Skate Shop
Bolshoi Pub

Principais shows internacionais
Man or Astroman?
Superchunk
Marillion
Mudhoney
Nebula
Deep Purple
Lemonheads
Guitar Wolf
Cake
The Tormentos
Nashville Pussy
Aha

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