quarta-feira, 28 de setembro de 2011

# 199 - 24/09/2011

Verão carioca de 1993, sol queimando na tarde de cimento do Sambódromo, e a multidão de adolescentes vestia camisas de flanela xadrez - imitando o visual desleixado do Nirvana e de seus colegas grunge de Seattle, atração principal daquela noite de janeiro no Hollywood Rock. O figurino, tão absurdo quanto pertinente, repetido em vários pontos do mundo, era apenas a face mais superficial do impacto que a banda havia causado com seu segundo disco, "Nevermind". O álbum trazia por baixo do tecido grosso a música que redefiniria os rumos do rock (e da música pop como um todo) dali para a frente. Naquele momento, o mundo queria vestir camisa de flanela e ser "Nevermind", efeito provocado antes por álbuns como "A hard day's night" (Beatles) e "Thriller" (Michael Jackson). Extrapolando fronteiras de geração, canções do álbum foram gravadas por artistas como Paul Anka e Caetano Veloso, que escreveu recentemente em sua coluna no Segundo Caderno: "'Nevermind' é um dos discos que mais amei na vida."

Mas o que o álbum - que teve uma tiragem inicial de 40 mil cópias, ambiciosa então para uma banda alternativa, mas ridícula frente aos 30 milhões que ele venderia - trazia para justificar o sucesso? Ou, mais que isso, sua condição de marco histórico? O jornalista americano Michael Azerrad, autor do livro "Come as you are: a história do Nirvana", aponta algumas razões:

- Parte da explosão do Nirvana se deve a razões clássicas. A banda veio com um álbum bem produzido, de canções de impecável carpintaria, grudentas. Quase todo mundo percebia que a música do Nirvana era poderosa e cheia de alma. O primeiro single do álbum ("Smells like teen spirit") imediatamente soou como uma das grandes canções da história do rock.

Angústia sob melodias pop

Talvez já fosse o suficiente, mas a chave da questão era maior do que a mera qualidade inegável da banda, nota Azerrad.

- Havia muito mais do que isso. Depois de anos de dance-pop vazio, como Milli Vanilli, e hair bands igualmente vazias, como o Warrant, os garotos queriam rock que falasse para eles e sobre eles, em vez de lixo aprovado por um punhado de executivos grisalhos. A música do Nirvana tinha um ponto crucial por trazer muito do underground que os garotos provavelmente conheciam, mas pelo qual não conseguiram se interessar tanto porque era muito cru e pobre em termos de melodia, até então. E não prejudicava o fato de o vocalista ser bonitinho - diz, referindo-se a Kurt Cobain.

O tal vocalista - que se suicidou três anos depois do lançamento do CD - estava no centro da potência da banda, que tinha ainda o baterista Dave Grohl, hoje vocalista dos Foo Fighters, e o baixista Krist Novoselic. E não só por ser "bonitinho", mas sobretudo pela angústia que, sob melodias pop, conseguiu imprimir na voz, na guitarra e nos versos niilistas, cheios de "I don't mind" ("eu não ligo") e "I don't care" ("eu não me importo") e momentos como "Eu estou tão feliz/ Porque hoje encontrei meus amigos/ Eles estão na minha cabeça" e "Eu juro que não tenho uma arma", que completam o romântico chamado "Venha como estiver" ("Come as you are").

- É um disco pop. Todas as melodias ficam na cabeça. Ao mesmo tempo, é bem cru e violento - afirma o baterista Marcelo Callado (Do Amor, BandaCê), que tinha 12 anos quando "Nevermind" foi lançado e aprendeu a tocar guitarra tirando de ouvido as canções do CD, um dos primeiros de sua coleção. - Talvez o alcance da doce porradaria seja seu legado.

Um legado que deixou marcas mesmo em campos insuspeitos da música contemporânea:

- "Nevermind" está em quase toda parte, do ponto de vista musical - diz o jornalista Arthur Dapieve, colunista do GLOBO. - A tensão e a distensão entre refrão e estrofes viraram lugar-comum. A música vem relativamente calma e explode no refrão. Isso é Nirvana, isso é Kurt Cobain esgarçando suas cordas vocais, isso é "Nevermind". O disco nos apresentou a uma alternativa mais visceral aos deprimidos anos 1980. Depois, mesmo bandas emo, que não têm um pingo de angústia existencial sincera, copiaram a fórmula.

Muito mais do que Kurt esperava. Sua ambição - nada modesta - era ser maior do que os Pixies, banda-referência da cena alternativa. Acabou, ainda em 1991, ultrapassando as vendagens do Guns N' Roses e destronando Michael Jackson e seu "Dangerous" do topo da lista de mais vendidos. E teve, mesmo sobre a geração estabelecida de artistas do rock, um impacto definidor.

- Foi digno de uma bomba nuclear - resume o baterista João Barone, falando sobre como o disco bateu sobre ele e seus colegas de Paralamas do Sucesso. - Ficamos muito impressionados e até aliviados pelo surgimento de um novo trio para realinhar o rock.

Como uma pedra caindo numa piscina, a influência do disco se espalha em ondas.- Muita gente foi filho do "Nevermind", como os Arctic Monkeys - cita o compositor Marcelo Yuka, que lança um olhar político sobre o fenômeno. - Eu fui pego pela sonoridade, mas as letras e a atitude foram o que mais me interessou depois. A atitude de entender o momento que aquela juventude estava vivendo. Na verdade, a juventude americana sofria por ser americana, e isso é um efeito colateral de todo sonho americano. Havia ali uma rebeldia com fundamento, a música expressando um trauma através da guitarra. É de arrepiar!

O guitarrista Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana (que teve influências declaradas de Nirvana em alguns momentos do CD "O descobrimento do Brasil", segundo entrevistas do vocalista Renato Russo na época), é mais abstrato ao falar do disco:

- Energia melódica, eletricidade, intensidade 4x4 e algo a dizer da aldeia para o mundo.

Músicos da atual geração do rock brasileiro também louvam "Nevermind", como Fernando Catatau (para o guitarrista do Cidadão Instigado, Kurt é "um dos grandes nomes da música"), Helio Flanders, do Vanguart, que conheceu o álbum alguns anos depois do lançamento ("Eu me lembro de ouvir 'Lithium' pela primeira vez e ter vontade de quebrar a casa toda, me jogar no sofá"), e Pitty:

- Era um disco resgatando a simplicidade e as raízes do punk rock: uma galera meio ensebada, poucos acordes e berros primais. Me identifiquei imediatamente - diz a cantora.

Novoselic tocará em Seattle

Pitty está num dos tributos a "Nevermind", a coletânea americana "Come as you are". Outro projeto do tipo foi lançado pela revista "Spin", com artistas como Meat Puppets e Vaselines, bandas das quais Kurt era fã. Novoselic, ex-baixista do Nirvana, participará de um show em Seattle no dia 20 de setembro no qual o álbum será tocado na íntegra.

"Nevermind" foi relançado pela gravadora Universal em diferentes formatos, do CD simples remasterizado à edição Super Deluxe (com quatro CDs e um DVD), passando pela Deluxe (dupla, com o disco original e outro de raridades e inéditas). O DVD e Blu-ray "Live at the Paramount", com um show gravado em 1991, também chega às prateleiras. Uma forma de manter a influência da banda viva, o legado que ecoa o ensinamento punk de que ter verdade é mais importante do que ter técnica, como destaca Flanders.

- Absurdamente intuitivo, Cobain deixou a arte de que mais gosto: arte bruta. Ele mesmo bradou: "Venha como você é".

E jurava, em seguida, que não tinha uma arma.

por Leonardo Lichote

O Globo

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Dia 24, “Nevermind” completa 20 anos. Quem quiser saber tudo – mas tudo mesmo – sobre a gravação do disco, com detalhes técnicos e análises das letras misteriosas e criptografadas de Kurt Cobain, deve correr à livraria mais próxima e comprar “Kurt Cobain – Fragmentos de uma Autobiografia”, do chapa Marcelo Orozco, livro que já recomendei diversas vezes.

O que me interessa, hoje, é tentar entender as conseqüências do disco. O que ele mudou em nossas vidas?

Costuma-se dizer que “Nevermind” foi um divisor de águas. E foi mesmo.

Para entender o impacto do disco, é preciso pôr em perspectiva a cena musical da época.

Há 20 anos, havia uma barreira gigante entre o alternativo e o comercial. Eram dois mundos distintos.

Quem gostava de bandas independentes comprava discos em certas lojas, lia certas revistas, ouvia certas rádios e se correspondia com pessoas de gosto semelhante.

Era um clubinho fechado, que nasceu, cresceu e se multiplicou por muitos anos, sem ser incomodado e sem perturbar o “mainstream”.

Bandas como o Nirvana, que nasceram no meio independente, nem sonhavam em ter uma música nas paradas de sucesso ou um clipe na MTV. Isso era para os outros.

No entanto, lá pelo fim dos anos 80, uma série de fatores começou a mudar esse panorama.

Em primeiro lugar, a venda de discos independentes começou a crescer em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os artistas pop mais famosos passavam por uma crise comercial e artística.

Grupos oriundos da cena alternativa, como REM, Red Hot Chili Peppers e Metallica, tornaram-se gigantes da indústria.

Em 1991, Perry Farrell lançou o Lollapalooza, festival que provou o potencial mercadológico da cena mais alternativa.

As grandes gravadoras, percebendo a maré favorável, começaram a contratar diversas bandas antes consideradas indesejáveis e sem potencial de mercado.

Daí veio “Nevermind”.

O que rolou imediatamente após o lançamento do disco foi um fenômeno semelhante ao que aconteceria, dez anos depois, com a bolha da Internet: megacorporações jogado dólares para o alto e comprando, a peso de ouro, qualquer bandinha – especialmente as de cabelo comprido e camisa xadrez.

Era insano: bastava Kurt Cobain elogiar uma banda para, minutos depois, ela ser contratada a peso de ouro. Aconteceu com Shonen Knife, Flipper, Eugenius, Flaming Lips, Redd Kross e TAD.

Até o Melvins, uma das bandas mais anticomerciais da história, ganhou uma bolada da Atlantic Records para gravar “Houdini”, disco em que Cobain tocou guitarra e, supostamente, produziu. Digo “supostamente” porque o próprio Buzz Osbourne me disse que Kurt só colocou o nome nos créditos para ajudá-los: “Kurt não era capaz de produzir nem um bolo instantâneo, quanto mais um disco.”

As grandes gravadoras compraram também diversos selos independentes.

Essa corrida ao ouro durou por uns dois ou três anos. Lá por 1995, a bolha indie estourou. E o resultado foi uma cena alternativa completamente esfacelada. Parecia o fim de uma guerra.

Algumas bandas – pouquíssimas, na verdade – sobreviveram. A grande maioria sumiu, levando junto bilhões de dólares em adiantamentos e contratos.

Selos alternativos que, por anos e anos, haviam formado bases sólidas de fãs, foram abandonados por seus novos donos.

Kurt, claro, já não estava vivo para testemunhar. E seu “Nevermind”, o disco que ele chegou a renegar, virou o símbolo dessa época que, paradoxalmente, marcou o apogeu e o início do declínio da cena alternativa.

“Nevermind” foi como o topo de uma montanha, que bandas, selos e fãs levaram anos para atingir, só para despencar lá de cima, abraçados, numa avalanche que soterrou todo mundo.

por André Barcinski

Do Blog

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Não deixa de ser simpático que o fator coxinha do Rock In Rio ainda provoque estranhamento. Que ainda cause certa indignação um suposto desvirtuamento estético do Rock In Rio com as Claudia Leittes da vida. Que ainda se procure no rock algum traço de rebeldia e contestação anti-corporativa.

Essas reações são simpáticas porque mostram que sobrevive a crença de que o rock tem algo a ver com valores contraculturais e transgressores. Infelizmente não tem. Isso está em outro lugar.

Como foi bem lembrado nas últimas semanas, já se vão 20 anos desde a última vez em que o rock encarnou esses valores de verdade. Nome e endereço: Nirvana e seu álbum Nevermind.

Este álbum e a legião grunge/alternativa que navegou no seu vento provocaram uma reviravolta autêntica na juventude e no cenário musical dos EUA (com paralelo no punk inglês de 15 anos antes, como bem lembrou o Sonic Youth no título de seu clássico documentário 1991: The Year That Punk Broke – O ano em que o punk estourou)

Mas, mesmo nesse momento tão intenso e transformador, a capitulação e assimilação pela indústria foi rápida e impiedosa.

(A onda rave/eletrônica, apesar de ter começado antes, levou mais tempo para ser domesticada, graças a sua propagação difusa e falta de estrelas e “produtos” óbvios, como álbuns e turnês. Na Inglaterra, em exemplo repetido depois em muitos países, o enorme setor “informal” do movimento rave só foi freado, ainda que não totalmente, com a introdução de leis draconianas e policialescas)

Kurt Cobain, sempre disposto a atitudes extremas para provar que não iria se entregar tão facilmente, suportou o tranco por três anos. Acabou como bem sabemos. Um mártir que serviu à causa, sim, mas também mais um ícone para ajudar a girar a milionária indústria de tributos, homenagens e lançamentos post mortem do rock.

Eu assisti ao incrível show que o Nirvana deu no Brasil em 93, no Hollywood Rock. É claro que hoje eu penso nele como sendo incrível por causa de sua importância histórica. Mas, na época, me lembro de ter gostado mais do seu significado do que da música em si. Foi um show reconhecidamente instável e caótico. Mas foi um puta show de rock, no sentido transgressor do termo.

Além do show “normal”, com músicas difíceis de serem reconhecidas e a gloriosa cuspida de Kurt na câmera da Globo, veio depois a “jam”, com covers, divagações e uma sensação de anarquia e descontrole. Quando acabou, tinha sobrado um punhado de gente na plateia. Noventa por cento do povo, certamente decepcionado por não ter sido “levado ao delírio” pela banda do momento, não teve saco e não entendeu aquela trip do “foda-se”, aquela auto-imolação em praça pública.

No Rock In Rio 2011 entende-se tudinho: João Gordo sendo chamado de “traidor do movimento”; a máscara de Hannibal Lecter do cara do Slipknot; os urros do Lemmy; o beijo que a Katy Perry deu num desconhecido; a peruca da “tia” Elton; a “atitude” do NX Zero; as tatuagens “iradas” do Dinho Ouro Preto; os solos de guitarra, baquetas voando, distorção, pauleira, pulos, palavrões, caretas, cabelos ao vento, dentes cerrados, roupas pretas, meninas de sutiã, bandeiras do Brasil, flertes satanistas, reboladas sexy, o vídeo anti-drogas, a cerveja oficial, “rock’n'roll”, espetáculo, showbiz, circo…

“Here we are now, entertain us!”

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