quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Roger Daltrey, uma entrevista

Tommy caiu na estrada novamente. Mas dessa vez Pete Townshend ficou em casa, deixando para ROGER DALTREY a tarefa de encarar sozinho sua primeira turnê solo no Reino Unido. Que melhor momento então para Daltrey dar sua própria e descompromissada versão da atribulada história do Who? Depois de todas as lutas por poder, brigas de socos e afastamentos, o que ele acha de Townshend atualmente? "Eu não poderia", disse Daltrey, "me importar menos com o que ele pensa sobre mim".

Assim como a maioria dos roqueiros, Roger Daltrey desaprova programas de televisão como The X Factor e American Idol. Nem tanto por desgostar do dramalhão ou por ressentir o fato de que carreiras são criadas da noite para o dia enquanto a geração dele ainda precisa batalhar pra sobreviver. Com Daltrey, você vai ver, as coisas geralmente giram em torno de um tema central: cantar — como fazê-lo e como não fazê-lo.

"Esses programas sempre acabam escolhendo o tipo errado de cantor", ele protesta, dando um gole em seu café na cozinha ensolarada do escritório de seu empresário. "Eles são chamados de 'astros', mas pra mim soam como vocalistas de apoio. Você ouve Rod Stewart, ouve a mim, ouve Jagger, ouve Bowie — e reconhece nossas vozes com as primeiras três ou quatro notas. Não dá pra diferenciar esses garotos do American Idol um do outro. Um ótimo cantor, pra mim, é aquele que afeta fisicamente a pessoa. No Who, Pete tocava pra primeira fila, e impulsionávamos a música através deles".

Do lado de fora, na recepção, décadas de discos de ouro e capas de álbuns e de revistas emolduradas enfeitam as paredes. Há até mesmo um velho pôster de um show da banda Ox, de John Entwistle. Uma placa no banheiro pede que as pessoas tratem o cômodo com "respeito", como se houvesse a preocupação de que alguém pudesse aniquilá-lo com uma bomba explosiva à la Keith Moon. Daltrey, 67 anos, veio dirigindo de sua casa em Sussex para Londres. Um Harry Redknapp pé-no-chão para o atormentado Arsène Wenger de Townshend, ele descreve a si mesmo como "incrivelmente em forma" para sua idade, mas admite ainda estar sentindo os efeitos colaterais de uma cirurgia recente. "Estou um pouco esgotado hoje. Com um pouco de refluxo. Não é E.coli, espero. Não aqueles pepinos assassinos!".

Neste verão, Daltrey excursiona apresentando Tommy, pela primeira vez como artista solo. Ele e Townshend planejavam levar Quadrophenia para os palcos este ano, o que acabou não acontecendo. No lugar disso, Townshend preferiu se dedicar a um boxset de Quadrophenia, enquanto Daltrey retornará ao garoto cego, surdo e mudo, o messias incompreendido cuja cabeleira ondulada e braços estendidos se transformaram em ícone para ele, além de uma das imagens mais conhecidas do rock. Atualmente, contudo, seu cabelo é curto e grisalho, e quando ele estica os braços é apenas para apalpar os bolsos inconsolavelmente por não se lembrar onde deixou as chaves do carro.

Por que voltar a apresentar Tommy?
Isso começou por acidente, resultado de uma noite vaga no Teenage Cancer Trust desse ano. Eu não consegui encontrar ninguém pra tocar na terça-feira. Sugeri ao promoter, em desespero, "O que acha de nós tocarmos, de apresentarmos Tommy?". Eu nunca fiz um show solo na Inglaterra. Mesmo quando eu costumava gravar discos solo nos anos 70, nunca fazia shows. Mas os ingressos se esgotaram muito rapidamente. Veja você, estou numa situação difícil, porque o Who não toca o suficiente. Se eu parar de cantar por um determinado período de tempo, minha voz vai embora. Vou perdê-la completamente.

Você passou por uma cirurgia na garganta recentemente. O caso foi sério?
É, algumas semanas atrás. É uma coisa a laser, que eu precisei ir aos Estados Unidos pra fazer. Passei por um problema na garganta e agora preciso ficar de olho nisso. É uma coisa pré-cancerosa e eles precisam continuar desgastando-a.

Tommy não vai exigir esforço demais da sua voz?
Não, não. Eu não estou tentando ser o The Who. É muito mais tranquilo. Não me preocupo tanto agora. Porra, o que eu preciso provar? Simplesmente curta o momento, Rog, porque isso pode chegar ao fim amanhã. Quando eu leio os obituários e vejo que algum astro do rock morreu aos 64 ou 62... bem, que diabos, já sou mais velho do que isso.

Você e Townshend têm planos para 2012?
Estamos conversando. Temos muitos problemas pra resolver. A audição de Pete está ruim, e isso é um grande problema. Não consigo mais trabalhar com os antigos sistemas de retorno no palco, são barulhentos demais. São questões que surgem com a idade. Mas não são intransponíveis.

Apresentar Tommy leva você de volta aos anos 60? Te faz lembrar de uma época mais idealística?
Não, vou te dizer pra onde me leva. Pra uma época onde a música era inventiva e desafiadora. Foi preciso colhões pra fazer aquele disco. Era uma peça musical extraordinária. Ouvindo agora é incrivelmente ingênua, mas também tem essa qualidade mágica que a torna muito especial.

Costumam mencionar que Tommy salvou o The Who. O que isso fez por você?
Me deu uma voz no The Who daquele dia em diante. Eu era um cantor bastante confiante até My Generation, mas então eu fui expulso da banda [por algumas semanas em 1965]. Dá pra perceber a mudança em minha voz. Pete começou a compor canções como "I'm A Boy" e "Pictures of Lily", e eu batalhei para encontrar uma voz pra elas. Tommy foi o elemento que me trouxe de volta.

Você também descobriu seu visual clássico — o cabelo comprido, a jaqueta de franjas...
Eu simplesmente fiquei de saco cheio com o Dippity-do [gel de cabelo]. Era uma maldição ser Mod com cabelo encaracolado. Eu costumava alisá-lo. E usava laquês com pó metálico, como tinta dourada ou prateada, para dar a ele um visual legal. O cabelo ficava parecendo esculpido. Mas me cansei daquilo. Consegui encontrar uma mulher em minha vida, com quem eu acordei certa manhã, e que me disse, "Seu cabelo é encaracolado. É maravilhoso!". Foi um estalo.

Você nasceu durante a II Guerra. Quando a Luftwaffe bombardeou sua rua em Shepherd's Bush, é verdade que a única casa a ficar de pé foi a da sua família?
Não, não foi a única casa. Havia aproximadamente seis. A rua não era muito comprida, tinha em torno de 1 quilômetro. Havia um quarteirão de quatro casas que foi derrubado por bombardeiros Stuka, e bem no final da estrada, o conjunto todo se foi. Os alemães estavam atrás da Evershed & Vignoles, a fábrica [de equipamento elétrico] ao sul de Acton, mas eles nunca conseguiam encontrá-la. É por isso que os primeiros V-2 caíram em Chiswick. Eles estavam tentando derrubar aquela fábrica. E por estarmos na margem sul dela, recebemos todas as bombas que erraram o alvo.

Suas lembranças de infância são todas relacionadas à guerra?
Acho que meu pai esteve em Dunquerque. Ele nunca falou sobre isso. A família inteira só falava de toda a diversão que eles tiveram na guerra, mas pequenos sinais davam a entender que não foi nem um pouco assim. Meu avô também participou da Primeira Guerra Mundial. Eu li uma carta dele. Ele esteve em uma das grandes batalhas — acho que foi em Somme — e escreveu pra casa. Não dá pra acreditar no que ele diz: "É maravilhoso aqui. O sol está brilhando. Os pássaros, cantando". E você sabe muito bem que era exatamente o contrário. Ele estava no inferno. Mas tentando mandar alguma esperança de volta a seus entes queridos. Eu chorei quando li aquilo.

Por crescer nos anos 50, você foi um daqueles garotos que se ressentiam pela Inglaterra ser tão conservadora e maçante?
Eu não me ressentia de nada. Tive uma infância muito boa. Tive vários colegas. Fiz parte da Boys' Brigade. Mas daí me envolvi com música. Bill Halley. Elvis Presley. Lonnie Donegan. Elvis me fez querer ser cantor, e é claro que eu queria uma guitarra, mas então eu vi Lonnie Donegan na TV, ele foi um dos que fizeram parecer que aquilo era possível. A maneira como ele cantava me inspirou desde o primeiro dia. Ele cantava do coração. Era tudo ou nada. Pra mim, é isso que cantar quer dizer. Você está lá em cima, nu, e cada fragilidade sua está exposta, e tudo transparece a partir de sua voz.

Você disse certa vez que um jovem com seu histórico tinha quatro opções na vida: tornar-se jogador de futebol, boxeador, pop star ou criminoso.
Ou estar num emprego entediante de nove as cinco, o que jamais aconteceria comigo. Eu sempre acreditei no sonho, por mais engraçado que possa parecer. Eu meio que sabia que conseguiria.

A prisão de Wormwood Scrubs ficava nas vizinhanças. Isso era um sinal do que poderia acontecer caso você não tivesse sucesso?
A maioria dos meus colegas foi naquela direção. Estão todos mortos hoje. Não dava pra mudá-los, se eu for parar pra pensar. Eles eram vilões desde os 10 anos. A família deles era estranha... antigas famílias londrinas. Costumava me dar bem demais com aqueles garotos. Eu poderia muito facilmente ter ido pelo caminho errado, porque eu tinha um temperamento terrível. Eu tinha bastante energia, e quando ficava com raiva, explodia. Isso me envergonha hoje em dia. Quando comecei um grupo de skiffle, arranjei uns malucos e marginais locais pra tocar a tábua de lavar roupa e o contrabaixo. Era uma boa turma, aquela. Tenho certeza que fizeram coisas terríveis, mas não os julgo.

Em certo ponto de sua adolescência, você parou de crescer. Isso te incomodava? Você gostaria de ser mais alto?
Eu gostaria, sim, quando estava sendo zoado e provocado. Mas encontrei uma maneira de contornar isso: dar uma cadeirada na pessoa. Era um susto tão grande que todo mundo me deixava em paz. A surpresa é tudo quando você vai fazer algo desse tipo. Eu provavelmente comecei mais brigas do que deveria.

Você tinha uma banda na escola, o The Detours. Pete Townshend, um ano mais novo que você, te achava uma figura glamorosa. Ele se lembra de você ter várias namoradas...
Ha ha ha! Eu gostava mesmo de uma foda. Isso é que era o melhor de se ter uma guitarra. Não posso negar, era um maravilhoso ímã de garotas. O Detours começou antes de Pete entrar, começou por volta de 61. Todos os integrantes foram saindo, um por um. Então John Entwistle apareceu num ensaio e começou a tocar baixo. Algumas semanas depois ele perguntou, "Posso trazer meu colega pra guitarra rítmica?". Ele apareceu com Pete. Já os havia visto na escola, porque eles se destacavam na multidão. Aquele foi o começo do que se tornou o The Who.

Houve algo de auspicioso em seus primeiros encontros com Townshend? Afinal este se tornaria o principal relacionamento criativo de sua vida.
Não, fazíamos coisas normais, simples, que quaisquer rapazes fariam. Costumávamos rir um bocado. Quando começamos no circuito semi profissional, quantos anos eu tinha mesmo? Dezenove, então isso foi em 63. Costumávamos jogar golfe. Pescar. E depois tocávamos nos pubs. Quando você vê as fotos da época, estavam todos rindo. Mas quando você lê Pete falando sobre aquilo, fica parecendo que era tudo completamente miserável.

Ele está escrevendo uma autobiografia. Obviamente haverá bastante coisa sobre você. Como você pretende lidar com isso? Vai exigir ler uma prévia e fazer alterações?
Não. Pra quê isso? Como posso exigir que ele mude a maneira como se sente a meu respeito? Eu não poderia me importar menos com o que ele pensa sobre mim.

Mas você pode discordar de algumas coisas.
Bom, daí eu escreverei meu próprio livro, não? Muito daquilo tinha a ver com eu ser o mais velho. Eu fui o primeiro a dirigir, e era o único trabalhando [numa oficina de chapas metálicas], então eu não saía tanto assim com eles. Foi três-contra-um várias vezes.

Todos dizem que você foi o líder original da banda.
O que é ser líder? Não existe isso de líder de uma banda. Há líderes no íntimo de uma banda. Naquela época, alguém precisava tomar decisões. Eu era o agente, o empresário, eu carregava a van, eu recebia o pagamento. Nesse sentido, sim, eu era o líder. Mas qualquer um tinha o poder de montar uma banda ou separá-la. Não ligue pra essa coisa de líderes. Ótimas bandas são ótimas bandas devido à química entre os integrantes.

Quando você percebeu que o Who poderia ser uma ótima banda?
Assim que Moon entrou. Ele trouxe um novo ingrediente. Estávamos apenas tocando blues, quase o mesmo blues convencional que os Stones faziam, e Moon era fã do Beach Boys — uma idéia totalmente absurda, especialmente pra um cara de Wembley — e ele tinha uma atitude maravilhosamente desrespeitosa em relação ao blues. Isso tornou nosso blues perigoso. Suas baquetas eram as agulhas que costuravam Townshend e Entwistle juntos. Ele era um gênio.

Com Townshend e seus moinhos-de-vento na guitarra à sua esquerda e Moon provocando caos na bateria atrás de você, era difícil fazer a platéia notar o vocalista?
Eu não fazia nada conscientemente. Comecei a girar o apoio do microfone, mas então Rod Stewart passou a fazer o mesmo. Finalmente, certa noite, comecei a jogar o microfone pra todos os lados. Parecia uma coisa interessante de se fazer. Se você vê de perto, parece um balé. É um complemento ao que Pete faz, não uma distração. Mas é preciso ter cuidado, pois você pode acabar matando alguém. Eu nunca acertei ninguém. Mas acertava bastante a mim mesmo, normalmente nas pernas, e puta merda, como doía. Eles pesam um quilo e meio, e quando estão girando então...

Quando o Who começou a destruir os instrumentos no palco, que papel você representou naquilo?
Nenhum, inicialmente. Fiquei profundamente ofendido. Mas acabei percebendo o valor daquilo. Kit Lambert e Chris Stamp, nossos empresários, estavam muito empolgados em inovar, e perceberam que a música estava se tornando formalista. Eles eram aqueles dizendo, "Essa destruição é maravilhosa!". Eu simplesmente enxergava as guitarras indo pelos ares e tinha vontade de chorar. Era ridículo, uma guitarra sendo destruída a cada noite. Dava pra colar uma Gibson novamente, e ela duraria mais uns dois shows, mas não uma Rickenbacker. E Rickenbackers custam uma fortuna.

Você tinha medo de parar e as pessoas se cansarem de vocês?
Mal podíamos esperar pra parar. Essa é uma das razões pelo qual Tommy nos salvou. Nos permitiu parar com a destruição.

Você era um homem de frente de aparência bastante agressiva e desafiadora nas filmagens do Who de meados dos anos 60. Por vezes você aparece à parte, como se estivesse prestes a dar um soco em alguém.
Nunca subi ao palco com uma atitude de "olhe pra mim". Não vinha daí. Vinha do que estava dentro de mim, e o que estava lá eram as canções. Eu nunca tive a capacidade de jogar com uma platéia como Jagger. Mas tínhamos uma boa relação com nosso público devido às canções de Pete. Ele sempre quis escrever pros caras, e Kit Lambert o encorajava. Kit costumava dizer, "Música pop não é apenas singles de três minutos para garotas, é mais importante que isso".

Quão importante Kit foi para você?
Ele foi maravilhoso pra mim, muito apoiador. Quando fui expulso [em 1965], foram Kit e Chris Stamp que me trouxeram de volta. Os outros fizeram uns seis shows sem mim. Fui expulso por bater em Keith Moon, mas vamos esclarecer as coisas, ele me acertou primeiro — com um pandeiro. Coisa perigosa de se fazer. Veja você, eu joguei todas as drogas deles na privada, porque eles estavam tocando terrivelmente mal. Eu podia suportar a maioria das coisas — bebida, tudo aquilo — mas não aceitaria eles tocando feito merda no palco. Eu detestava. Se fosse pra continuar daquele jeito poderíamos muito bem abandonar tudo e virarmos pedreiros.

Você chegou a se envolver com drogas?
Me envolvi com remédios controlados nos anos 80, pílulas pra dormir. Seu padrão de sono vai pelo ralo quando se está em turnê. Fumei um bocado de maconha nos anos 60. Mas meu grande amigo Owsley Stanley [do Grateful Dead], que popularizou o ácido em São Francisco, disse pra mim em 67, "O que quer que você faça, Roger, não toque nos químicos. Fique na maconha". Ele reconheceu algo em minha energia; sabia que seria ruim pra mim. Só tomei ácido uma vez, em Woodstock, porque batizaram a água e fomos todos contaminados. Mas nunca usei coca. Nunca, nem uma vez. Não me interessa. Já vi gente demais se tornar babaca com ela.

Quando o Who tocava Tommy ao vivo, você se via como um cantor, ou como um ator interpretando um personagem?
Comecei a personificá-lo. Eu precisava passar pela emoção daquilo, a jornada. Narrativamente, não é uma história que vai de A a B. Não é: "Era uma vez... e eles viveram felizes para sempre". Tommy é algo dentro de todos nós. É uma jornada interior. No final, "ouvindo você" significa ouvir quem você é. Somos todos parte da humanidade e estamos todos fodidos, procurando por alguém para "me sentir, me tocar, me curar".

Houve vezes nos anos 70 em que você falou em querer se afastar do "estigma" de Tommy.
Aquilo se tornou um problema quando passaram a esperar que tocássemos a mesma coisa todas as noites. Às vezes, Tommy parecia um estorvo, pois sentíamos que o restante de nosso material estava sendo ignorado.

Tommy foi um trabalho impossível de ser superado? O projeto Lifehouse, de Townshend, soou como uma tentativa obsessiva de sobrepujar Tommy, e eventualmente provou ser ambicioso demais para sair do chão.
Era uma idéia maravilhosa — quando encontrarem a essência da vida, será uma nota musical. Mas tente escrever um roteiro pra isso. [Risos] Ele estava falando sobre uma dimensão espiritual que era impossível de capturar visualmente. Ele sentia que Kit não o estava apoiando. Naquela época as coisas haviam se tornado bastante políticas no Who. Era óbvio que Lifehouse nunca poderia virar um filme. Nenhum de nós conseguia entender, ele mudava a história toda vez que a contava. Mas dava pra perceber que, no fundo de seu cérebro complexo, havia a fagulha de algo verdadeiramente maravilhoso. E é claro que ele tinha todas aquelas músicas incríveis, que acabamos gravando em Who's Next.

Quando Pete encontrou o guru Meher Baba, você se mudou para o campo. Foi lá que você encontrou sua paz?
Eu sempre amei o campo. Me mudei no momento em que tive condições financeiras pra isso. E fui bastante sortudo, pois encontrei uma pequena vila em Berkshire chamada Hurst, onde morei de 68 a 71. Eu costumava sair com pessoas adoráveis, todos aqueles negociantes de ferro-velho e ciganos romenos, que me contavam histórias do passado. Era um mundo totalmente diferente de qualquer coisa que eu tinha conhecido. Eles mantiveram meus pés no chão, bem na época em que Tommy estourou, quando eu poderia ter ficado completamente deslumbrado pela fama. O que me segurou foram todas aquelas pessoas circenses vivendo em trailers.

Foi aí que você se tornou fazendeiro?
Ainda não. Depois daquilo, me mudei para Sussex, mas só comecei a cultivar em 77 ou 78. A economia estava ficando bastante fragilizada e todos os meus camaradas na região estavam batalhando pra conseguir emprego. Você percebe de repente que a zona rural não é um dormitório, é um ambiente de trabalho. O melhor que você pode fazer é dar um emprego a alguém. Então eu me tornei fazendeiro para dar emprego aos outros. Depois me envolvi com pesque-e-pague nos anos 80. Eu havia construído uma área de pesca — cavei todos aqueles lagos, em torno de 20 acres de água — porque meu sonho era ter um lugar pra pescar à noite. Todo garoto tem uma fantasia, e a minha era aquela. Mas então meus conselheiros financeiros de Londres vieram e disseram, "Você não pode manter isso tudo pra si mesmo". Eles estavam certos. Então eu decidi abrir um pesque-e-pague de trutas por volta de 82, e foi quando me interessei por aquicultura. A criação de trutas estava nos primórdios na época. Eu aprendi sobre água, genética, cruzamento. Mas um dia acordei e percebi, "Tenho quatro fazendas com quatro administradores. O que eu faria se eles se demitissem?". Então eu vendi tudo a meus empregados pelo preço de custo. Eu ainda amo pescar. É uma coisa muito Zen de se fazer, especialmente com uma boa taça de vinho. Não tem a ver com pegar o peixe, tem a ver com a água, com o movimento. Se você tem um problema — vá pescar. Você vai resolvê-lo.

Nos anos 70, você via como seu papel manter o Who unido?
Sempre foi meu trabalho manter o Who unido. Na minha cabeça, o Who era minha banda. O que mais eu poderia fazer?

Quadrophenia soa como uma época tensa. Foi quando você brigou com Pete...
Não foi uma briga! Foi só uma discussão estúpida que saiu fora de mão. Ele estava bêbado. Havíamos acabado de gravar Quadrophenia e estávamos ensaiando em Shepperton para nos prepararmos pra cair na estrada. Na época, dois amigos de Pete costumavam nos filmar para uma biografia — o que aconteceu com o filme eu não sei — e deveriam estar gravando a gente tocar Quadrophenia. Bom, no final eu toquei aquela porra toda enquanto eles sentavam em seus traseiros assistindo! Será que eles pensavam que eu ia cantar duas vezes seguidas!? Então eu disse, "Vocês não vão começar a filmar, caralho?". Já então, Pete havia terminado sua primeira garrafa de conhaque do dia. Ele chegou perto e começou a me cutucar: "Não fale assim com eles. Você vai cantar quando eu mandar". Os roadies pularam em cima de mim, porque eles sabiam como eu era. Eles estavam me segurando. Pete começou a cuspir em mim. Ele estava horrivelmente bêbado. Ele disse aos roadies, "Soltem ele que eu vou matá-lo, porra". Então os roadies me soltaram, Pete deu uns socos que nem chegaram a me acertar — muito palerma, praticamente um Gordo e o Magro — e então me golpeou com uma guitarra, e foi quando eu saí de mim. Só acertei ele uma vez. Mas não foi uma briga. Foi só um daqueles momentos estúpidos.

É possível que isso pudesse ter acabado com a banda?
Não. Só se eu o tivesse matado.

O Who parecia como uma família em guerra às vezes. Em entrevistas daquele período, você e Pete realmente esculhambavam um ao outro.
Bom, precisávamos manter as pessoas interessadas, não é? [Risos] Acho que um de nossos problemas é que éramos honestos demais uns com os outros. Mas, sabe, não foram tempos fáceis. Estávamos no palco com um alcoólatra como guitarrista, que depois se envolveu com heroína. Que merda era aquela? Do nada nosso guitarrista saiu e não voltou. Viramos um exército sem general. Ficamos completamente perdidos.

E enquanto isso, você devia estar bastante preocupado com Keith Moon...
O tempo inteiro. No final dos anos 70, todo dia pensávamos que o perderíamos. Ele deu algumas vaciladas, e começamos a ficar de saco cheio. Uma vez que você se compromete com uma turnê e tem shows esgotados, você precisa estar ali. Começamos a discutir a possibilidade de arranjar outro baterista. Era um pesadelo.

Hoje em dia existem as intervenções. Naquela época não havia nada do tipo?
Não, a única intervenção foi quando visitei Pete em 81, quando ele estava viciado em heroína. Eu fui ao estúdio dele e disse, "Você precisa procurar ajuda, amigo", e ele concordou com a cabeça. Para crédito dele, no dia seguinte ele começou tratamento. Eu fiz aquilo porque me importava com ele. Eu não queria perdê-lo. Ele era meu amigo e estava se matando.

Quando você é careta, é difícil simpatizar com alguém próximo que está viciado?
É muito doloroso de se assistir. Mas não, acho que eu fui incrivelmente paciente. Perdemos Moon em 78, aquele tolo. Foi horroroso. Mesmo sendo uma coisa que todos esperavam, ainda assim foi um choque. Só porque você sabe que ele já havia gasto suas oito vidas não torna isso mais fácil.

O The Who deveria ter parado na época?
Não. Acho que não. A música não é pra parar. Você continua até cair. Se a química ainda está ali, você segue em frente. Qual o sentido em ser um músico que fica em casa sentado fazendo nada?

Do jeito que as coisas vão, você acha que Endless Wire será o último álbum do Who?
Eu não sei. Pete é o tipo de compositor que, quando as canções fluem, e se ele quer fazer isso como o Who, vamos e fazemos. Eu ainda acho que o melhor trabalho dele está por vir. Eu não gostei de tudo em Endless Wire, mas há coisas maravilhosas ali.

Que tipo de conversas você tem com Pete hoje em dia?
Muito poucas. A maioria por e-mail, coisa que eu detesto. Eu me recuso a conversar com os outros por e-mail. Isso não é conversar. E nem escutar, a propósito.

Você e Pete já discutiram sobre como o Who deve acabar?
Todo mundo fala sobre terminar com um final maravilhoso. Mas eu não olho pra isso dessa forma. Pra mim, termina quando terminar. Johnny Cash fez seu melhor trabalho nos últimos dois anos de sua vida. É nisso que os músicos devem mirar. A música deve refletir uma vida. É esquisito dizer, "Vamos terminar tudo com um final maravilhoso". O que isso quer dizer — uma turnê caça-níqueis?

Bom, os fãs dos Stones estão se perguntando se eles farão uma turnê de despedida no 50° aniversário da banda, ou se irão simplesmente... esvaecer.
E essa não é a melhor forma de pensar? Quer dizer, a vida se esvai. Você não acha que a música, como uma forma de arte, deve refletir isso?

O que você costuma ouvir atualmente?
Silêncio. Eu descanso meus ouvidos. Todos chegamos num ponto em que entramos num cômodo cheio de gente e precisamos começar a ler lábios. É muito frustrante. A maioria das pessoas na minha idade neste negócio não ouve mais música. Elas adoram a quietude.

É verdade que você foi entrevistado para ser jurado do American Idol, mesmo após dizer que detestava o programa?
Não, o que aconteceu foi que meu agente em Hollywood me levou pra vê-los. Eu não percebi o que era — não a princípio. Quando comecei a conversar com eles foi que tive o estalo. Eu virei pro meu agente e disse, "Eu não quero fazer essa porra, Harry". Mas ele é um agente, então ele tenta vender você, porque ele quer seus 10 por cento. É isso que acontece em Hollywood. Você é levado a encontros com todo tipo de gente.

Caso o Who não tenha mais futuro, você pelo menos vai se sentir como tendo sido o vocalista da melhor banda de rock do mundo?
Foi a melhor banda pra mim. Tive sorte em poder cantar algumas das músicas populares mais importantes do século 20. Era um tipo de música diferente de qualquer outra coisa por aí. Não era pra todo mundo. Apenas para gostos apurados. Muita gente não gosta do The Who. Mas também não há muita gente que tenha nos visto "ao vivo" e que não goste de nós, e eu me orgulho disso. Se acabar, não me importo. Se tiver mais — ótimo. Mas não vamos falar sobre como vai terminar. É hipotético demais pra mim.

Uncut, setembro de 2011
por David Cavanagh | tradução de Vinícius Mattoso

Fonte: The Who Brasil

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