quarta-feira, 24 de junho de 2015

Marcelo Nova, uma entrevista (sobre a volta - mais uma - do Camisa de Vênus)

Hoje é difícil imaginar, mas uma música que - à maneira do antigo apresentador televisivo Gil Gomes - falava de um estupro seguido de assassinato já foi hit nas FMs e aposta de gravadora. Era o Camisa de Vênus com Bete Morreu.

Se uma banda hoje em dia lança um som desses, vai tomar pedrada. E muita. Era coisa dos psicodélicos anos 80, em que a liberdade de expressão era muito levada em conta, mesmo que se confundisse às vezes com liberdade de chocar ou de ofender. E em que talvez as pessoas não se assustassem tanto com as coisas, mesmo porque retratar uma realidade (coisa que o jornal faz todo dia) é bem diferente de gostar dela ou querer fazer parte dela. O Camisa também falou sobre playboys imbecis que batiam nas namoradas (Ana Beatriz Jackson), transformou uma piada machista digna de Costinha em música (Sílvia, cuja letra foi inspirada pela peça Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, e cuja melodia chupava Sorrow, rockinho gravado pelos McCoys e por David Bowie). E fez uma espécie de Ouro de tolo (a do Raul Seixas) punk dos anos 80, O adventista, pregando que nem Freud aguentaria mais uma sessão de psicanálise, entre outros temas.

O grupo volta para uma turnê de 35 anos em condições discutíveis. No palco, da formação original, tem só Marcelo Nova (vocal) e Robério Santana (baixo). Karl Hummel (guitarra) e Gustavo Mullem (guitarra solo) andavam envolvidos com uma turnê do grupo sem Nova e foram impedidos pelo vocalista de continuar. O que a volta da banda tem a oferecer (junto com a execução de canções cáusticas e eternamente criticadas pela turma politicamente correta) talvez seja mais a colocação de pulgas em orelhas estratégicas do que o retorno a tempos musicais que não têm mais como voltar.


Como surgiu a possibilidade dessa turnê? Bom, tudo começou com o Airton Valadão (empresário, responsável também pelo retorno do Ira!). Ele me ligou e me disse: "São 35 anos do Camisa de Vênus! Vamos fazer uma turnê?" Cara, eu estava tão desligado dessa data que falei "porra, você tem razão, são 35 anos! Cacete, como eu tô velho!". E aí nós tivemos algumas reuniões. O Robério foi a primeira pessoa que convidei para montar o Camisa de Vênus lá em 1980 e ele achou interessante o convite do Valadão. Tem uma boa parte dessas canções que não canto há muito tempo, até mesmo nos meus shows solo. Eu penso que com 63 anos me dou ao direito de revisitar minha obra, Tenho 18 álbuns gravados de 1983 para cá. Eu e Robério nos divertimos muito ensaiando as músicas, relembrando coisas. Acho que o ideal é que esse show seja uma festa e que a gente se divirta..

Na época você e Robério trabalhavam juntos numa rádio, certo? Não, eu é que trabalhava na rádio Aratu, e ele na TV Aratu. Mas nos conhecemos e descobrimos que rock era algo que tínhamos em comum...O que não é comum é minha formação. Eu fui um menino deslocado, cresci sozinho, sem irmãos para dividir as brincadeiras (em entrevistas, Marcelo disse que tinha só uma irmã 12 anos mais velha, que na época era fã de bossa nova). Eu gostava de ler  e os outros meninos gostavam de jogar bola. Eles gostavam de ir à praia e eu gostava de ficar em casa ouvindo Animals, Rolling Stones, Beatles, e aquelas bandas inglesas dos anos 60. Por outro lado essa relativa introspecção me conduziu para a literatura. Só que isso só veio tomar uma forma consciente quando comecei a escrever meus primeiros textos. Quando comecei a colocar o que tinha para dizer em letras de música. É importante falar que até o Camisa eu não tinha nenhuma experiência musical. 

Nada? Lembro que uma vez vi um documentário antigo sobre o Camisa, disponível no YouTube, em que você dizia mesmo que o critério para escolher gente para tocar no grupo era que não fossem "músicos" na acepção da palavra... Eu não sabia nenhum acorde de guitarra, não sabia tocar guitarra. Isso às vezes era interessante, porque começamos a pegar referências de outras coisas e fui aprendendo a compor. Eu nunca nem tinha subido num palco na vida! A primeira vez foi com o Camisa, numa casa de shows na qual cabiam 800 pessoas e tinha gente do lado de fora que não conseguiu entrar. Essa foi nossa estreia na cena musical. E o nome chamou muita atenção de cara. Me parecia realmente inadequada essa coisa de me cercar de músicos que tivessem uma trajetória formal, ou de me cercar do que havia de melhor tecnologicamente e virtuosisticamente, ainda mais para uma banda chamada Camisa de Vênus. O idealizador da banda não sabia um acorde! E a ideia da música baiana era na época - e é até hoje - exaltar os valores místicos da Bahia, como se tudo tivesse o toque de Midas, de transformar tudo em ouro. Sempre me ressenti de nunca ouvir alguém que viesse antes de mim e dissesse "não, isso não é verdade".

Daí veio Controle total, que só está no primeiro compacto da banda. Isso! E acho que até hoje é o único texto de um artista baiano depreciando a cidade de Salvador do ponto de vista cultural, estético e musical. Isso nos deu uma independência em relação ao modismo, em relação ao que estava sendo feito na época. As coisas começaram a acontecer muito rapidamente em Salvador, porque a banda destoava de tudo que estava sendo feito lá. Ficou uma cisão entre quem adorava e odiava a banda. Para mim foi muito gratificante saber que uma canção de três minutos que eu escrevia era capaz de levar artistas e críticos a discutirem veementemente através das páginas de um jornal. Na época não tinha nem internet, né?

Não tinha nem uma cena punk na Bahia na época, ou de bandas parecidas? Não, nada. O Camisa tinha algumas peculiaridades... Além dessa limitação de não sermos músicos, que no fim das contas virou uma característica, de não ter muito fru-fru. As músicas, a coisa da performance, o grito do "bota pra fuder" que me acompanha até hoje. As pessoas gritam isso pra mim quando eu estou atravessando a rua. E na época tinha as bandas de São Paulo, de Brasília, o rock meio pop do Rio e os "baianos do Camisa de Vênus", que de baianos não tinham nada no sentido literal. Nós éramos sempre os azarões, não tínhamos um grande aparato de produção, de investimento. Ainda por cima, quando lançamos Viva! (1986), ele virou disco de ouro com praticamente todas as músicas censuradas.

Não teve uma história de que você ficou vendo o disco ser apreendido nas lojas e se ofereceu para ser preso? Eu estava numa loja chamada Hi Fi e os censores chegaram na loja e apreenderam os discos do Camisa. Cara, eu só fiquei olhando, né? Eu sendo preso sem ir para a jaula. Mas teve uma hora que cheguei pro cara e falei, em tom irônico: "Não seria mais lógico você me prender? Quem tá no disco sou eu, as coisas que estão dando problemas foram ditas por mim!"

Vi um show do Camisa de Vênus no Circo Voador por volta de 2008 em que você cantou O Adventista e mudou um verso para "eu acredito/no Big Brother Brasil". Atualizou outras letras? Não, não tenho nem esse objetivo. Gosto muito de improvisar e às vezes essas coisas surgem. Em algumas músicas funciona bem e em outras não. E ter que ficar atualizando, revendo... Eu tenho 18 discos gravados. Em 2011 lancei um DVD e um álbum duplo gravado ao vivo. Em 2012 lancei um Blu-Ray. Em 2013 lancei o 12 fêmeas, um disco de músicas inéditas. Nos últimos anos tenho trabalhado incessantemente. Essa possibilidade de voltar a um passado muito distante, se for uma nostalgia, melhor que a gente faça disso uma diversão. Eu já sou avô, cara, tenho uma netinha. Quero é me divertir. Pra você ver: fiz uma turnê ano passado de 25 anos do disco A panela do diabo (gravado em 1989 com Raul Seixas). Não fiz nada quando o disco tinha dez anos, nada com 15, com 20... De repente, 25! Pensei: "Ou eu faço agora, ou só no crematório!". Prefiro agora!

Tem muita coisa que o Camisa fez, como Bete morreu, que soam politicamente incorreta. Não falta um botão de ironia para as pessoas entenderem certas coisas? Bom, a internet trouxe alguns elementos à tona, alguns elementos interessantes... Mas por outro lado virou um tribunal do semianalfabetismo. Com toda essa história de interação de classes tão distintas, de repente você tá é cercado por uma avalanche de frases e de afirmações de gente que possui a verdade na mão e quer enfiá-la pela sua garganta adentro a qualquer custo, com uma virulência impressionante. Esse tipo de atitude, onde porque você tem computador você tem voz, e sua opinião é de importância vital para a sobrevivência do país, sabe? Paralelo a isso, estamos pouco a pouco perdendo o sentido da ironia, o sabor do sarcasmo. Isso desapareceu do convívio social. Ficou uma tacanhice.


E as origens do Camisa. Você é fã do Mott The Hoople. O glam rock foi inspiração da banda? Não, não, minhas influências vieram mais da tradição do rock (nem tanto, já que o Camisa chupou um título de disco do Roxy Music, Viva!, e copiou descaradamente Sorrow, dos MacCoys, gravada por David Bowie, para Silvia). Adoro o Mott, Ian Hunter é um grande compositor, subestimado. Depois me interessou a coisa dos Sex Pistols, do Clash, tinha um imediatismo ali que me interessava. Vi que podia aprender a tocar guitarra, a dar o recado. Nunca fui punk de carteirinha, nos discos do Camisa tinha piano, sax, baladas... Mas parti dali. Ao mesmo tempo que nosso som tinha Johnny Rotten, tinha Walter Franco e Jards Macalé, ou Adelino Moreira, um compositor do qual gosto bastante pelo teor de dramaticidade que ele empregava nas composições.

Aliás, em algum momento o Adelino comentou a versão que vocês fizeram de Negue? Olha, nunca nem soube.


Como está sendo tocar com seu filho no Camisa? Olha, é ótimo. Quando a herança é apenas genética não tem significado. Mas o Drake já demonstrava interesse aos 15, 16 anos, por timbres de guitarra, diferentes formas de abordar um instrumento musical. Essa preocupação que ele demonstrava já me surpreendeu de cara, porque um garoto nessa idade quer é tocar como o Joe Satriani. E aí ele foi evoluindo e aos 17 anos já tocava comigo profissionalmente. Ele até fala: "Porra, pai, tô fodido. Daqui a 20 anos só vou ouvir artista que já morreu!". Ele se interessa por guitarristas como Rory Gallagher, Leslie West e Robin Trower! São nomes que nem fazem parte do panteão, não estamos falando de Jimmy Page e Toni Iommi, que já são mais comuns, entende? E isso vem deixando o papaizinho aqui bem orgulhoso...

Dizem por aí que está vindo uma biografia sua, escrita pelo André Barcinski. É verdade? Eu e Barcinski conversamos sobre isso há bastante tempo. Somos amigos, conversamos até não só sobre essa biografia ou sobre a possibilidade de fazer uma biografia, temos vários outros assuntos... Sempre falamos e sempre adiamos! Nunca foi um trabalho, vamos dizer, prioritário, "vamos agora trabalhar na biografia"...

por Ricardo Schott

aqui, 

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