O que faz o conceito de “álbum” tão caro à cultura pop é o
fato de que o projeto é geralmente pensado como um todo, desde a concepção da
arte da capa, do lay-out do encarte, da contracapa e do selo, até a posição em
que as músicas são dispostas ao longo do disco. O novo disco da Karne Krua,
“Bem-vidos ao fim do mundo”, é um álbum, na melhor acepção da palavra, com
conceitos, no geral – há apenas uma exceção, sobre a qual discorreremos mais
detalhadamente adiante - muito bem desenvolvidos e definidos. E o que é melhor:
tudo realizado pelos próprios componentes da banda, como manda a tradição do
“faça você mesmo”. “With a
little help from their friends”, na produção – musical e executiva.
A capa é belíssima. Obra de Alexandre Gandhi, o guitarrista
– que é também artista plástico. Nela, num círculo em que o centro é a morte,
gravitam os males do mundo, das crianças famintas à repressão dos “pigs”, das
favelas aos horrores da guerra. A capa é dupla, e dentro temos uma bela foto de
Silvio, vocalista e único membro fundador remanescente. No encarte, uma foto
tirada nos corredores da Aperipê FM na noite antológica – para mim, pelo menos
– em que eles lançaram o disco anterior, “Inanição”, ao vivo no programa de
rock. Tudo perfeitamente organizado numa diagramação elegante e de muito bom
gosto, cortesia de Ivo Delmondes, o baixista.
Aí partimos para o que realmente importa – mentira, tudo é
importante. Mas a música é a razão de tudo, então é nela que devemos nos ater.
Começa de sopetão, numa “vibe” “Tudo ao mesmo tempo agora”, assim que os sulcos
encontram as primeiras freqüências gravadas: é “Horrores humanos”, curtinha,
simples e direta, perfeita como faixa de abertura. Na seqüência temos “Por
enquanto sem coisas belas”, e aí já nos deparamos com outra característica
marcante da Karne Krua: a construção coletiva. Letra e música de Alexandre
Gandhi.
Na faixa seguimos quem dá as caras de forma vigorosa, com
uma marcação poderosa e perfeitamente integrada ao arranjo, é o baixo de Ivo
Delmondes. Segue assim em “Usinas de mortos”. A esta altura fica evidente o
entrosamento dos músicos e a qualidade da gravação. Tudo feito aqui mesmo, em
Aracaju. Gravado nos estúdios Rikeza e mixado e masterizado por Alex Prado, com
o auxílio da própria banda. Impossível não comparar com o primeiro disco, de
1994, que teve que ser gravado em Recife, com um resultado infinitamente
inferior. Outros tempos ...
Seguindo a audição chegamos à faixa título, que, a exemplo
do que aconteceu com o álbum anterior, é uma pequena obra-prima! Tem uma estrutura
muito bem pensada, com a letra perfeitamente encaixada na melodia nos levando
por um cenário apocalíptico com imagens mais aterrorizantes que as que constam
no último livro da Bíblia. Porque são reais! Estão lá, no dia a dia, pairando ao
nosso redor e estampadas nas manchetes dos jornais. Terremotos, tsunamis,
meteoros e “grandes balas de aço e pólvora com urânio enriquecido” causando
morte e destruição generalizada – Sejam bem-vindos ao fim do mundo! O lado A
poderia terminar alí, mas ainda tem mais: “O anti-herói”, de Ivo Delmondes
(letra e música) e, fechando com chave de ouro, outra pequena pepita, já
bastante executada ao vivo: “Terrorismo XXI”, de Alexandre Gandhi – letra e
música – que nos alerta para o perigo real e imediato de que um desses grupos
de fanáticos ensandecidos ponha as mãos num artefato atômico. Assustador, para
dizer o mínimo ...
O inventário de desgraças prossegue de forma catártica já na
abertura do lado B com outro grande momento: “Quando o homem vira um animal”.
Perfeita. Hard Core na veia! A pancadaria prossegue sem descanso com “Grandes
corporações”, dá uma pequena tropeçada na fraca “Direito à vida” – que, por sua
letra, merecerá um parágrafo à parte – e volta a tomar fôlego com “Auto
destruição” e “Pequena Sofia”, já conhecida do split 7 polegadas com a
Besthoven. O disco se encerra com um belíssimo poema de Charles Bukowski
musicado de forma primorosa, com destaque especial para os arranjos de
guitarra, nos quais Alexandre Gandhi viaja nas melodias – ainda distorcidas –
depois de nos bombardear com uma seqüência memorável de riffs matadores ao
longo de todo o play ...
Mas peraí, não acaba não! Temos ainda três “bônus tracks”,
com regravações músicas de fases distintas da banda. Dos primórdios temos
“Rumors of wars”, na versão em inglês – não gosto, prefiro a original em
português mesmo -, depois “Manchas de sangue”, um clássico de uma fase
intermediária, início dos anos 1990, gravada no primeiro disco, e encerrando
tudo, de vez, “As Crianças da usina nuclear”.
Mencionei bastante o primeiro disco, lançado, também em
vinil – numa época em que o formato digital, em CD, começava a dominar o
mercado – há exatos 20 anos, em 1994. Não foi por acaso. Muito bom terminar a audição deste verdadeiro petardo e poder guardá-lo em minha coleção, ao lado do primeiro. Com “Bem-Vindos ao fim
do mundo” a Karne Krua fecha um ciclo, voltando às origens com um som cru,
curto e grosso, registrado nos bons e velhos – e ravalorizados! - sulcos negros
de um bolachão. A banda já está com uma nova formação – trocaram de baterista –
e pronta para o futuro. Aos 30 anos, parece estar apenas começando ...
Dito isto, para encerrar, preciso falar sobre o “tropeço”:
“Direito à vida” é uma música fraca, perfeitamente dispensável. Especialmente
pela letra: ouvi a primeira vez com um assombro! Custava a acreditar no que
estava sendo dito pelo meu velho camarada Silvio! Tanto que, a princípio, achei
que se tratava de uma crítica ao nosso combalido sistema de saúde, de uma forma
geral. Até que veio a terceira estrofe, que soou como um verdadeiro tapa na
cara da luta pela emancipação feminina: “Vidas humanas em perfeita condição/Condenadas
ao extermínio/Sentem dor e rejeição/E têm suas vidas decepadas/pelos médicos e
suas mães”. Era uma música contra o aborto, não tinha mais dúvidas! E pior: dá
a impressão de culpar as mulheres que se submetem ao procedimento de forma precária e clandestina, e que na verdade
são vítimas, não apenas de assassinato, mas de um verdadeiro genocídio ...
Sou amigo de Silvio há quase 30 anos e não poderia deixar de
questioná-lo sobre o conteúdo desta letra, agora imortalizada, já que consta de
um disco lançado em vinil! Fui na Freedom e tivemos uma conversa franca na qual
ele me explicou que a intenção não era esta. O que ele queria, na verdade, era
denunciar a ganância de profissionais da medicina que se aproveitam da
fragilidade e da ignorância de mulheres desesperadas para alimentar uma
verdadeiro rede de açougues humanos clandestinos. Argumentei que o problema
está, na verdade, na proibição legal, que alimenta a clandestinidade. Ele
concordou, e se disse a favor da legalização do aborto nos termos propostos
pelo Conselho Federal de Medicina, ou seja, que seja feito o procedimento de
forma assistida e respaldada pela lei até a décima segunda semana de gestação,
quando os riscos para a saúde da mulher são minimizados e o feto ainda não tem
o seu sistema nervoso central formado, ou seja: NÃO SENTE DOR! É ainda, na
verdade, um projeto de ser humano! Virá a se tornar um ser humano caso a
gestação não seja interrompida. A interrupção da gravidez nestas condições não
pode, portanto, ser considerada assassinato, e é cruel acusar de um crime tão
grave as mulheres que passam por este drama.
Ele admitiu que, na busca por um minimalismo primal, típico
dos primórdios do estilo no Brasil – volta às origens, como mencionei acima - deixou
a mensagem muito em aberto e caiu na mesma armadilha de bandas como Ira!, Olho
Seco e Garotos Podres, que têm letras que ainda hoje são questionadas e/ou mal
interpretadas, tendo que se explicar eternamente sobre o seu conteúdo.
Concordou, então, em fazer um texto de próprio punho detalhando melhor o que
quis realmente dizer com esta letra. Reproduzo-os, texto e letra, abaixo ...
por Adelvan
“Eu, Silvio Campos, vocalista da banda Karne Krua, não sou
contra a prática do aborto. Na letra da musica “Direito à Vida”, inserida no
nosso último álbum, “Bem-Vindos ao Fim do Mundo”, o que quis enfatizar e
evidenciar foi a forma fragilizada e os riscos em que as mulheres de forma
geral, sejam elas com um nível de escolaridade alta ou não, se colocam diante
da clandestinidade desse sistema e ato . Quando refiro- me a clinicas
clandestinas não estou me referindo a nenhum centro de saúde com estruturas
corretas e que possa passar segurança e confiança para a pratica do aborto,
refiro-me a salas, quartos, pessoas sem condições estruturais e psicológicas de
apoio às mulheres que buscam essa pratica. Também quando me refiro a médicos
que decepam vidas estou falando de um tipo de profissional que, nesse caso, só
esta interessado nos lucros que a clandestinidade do ato oferece, colocando
sempre a mulher em situação de total vulnerabilidade
em relação a sua saúde. Mesmo que seja uma opção dela passar por isso, esse
tipo de medico ou profissional (às vezes nem medico é) não está preocupado em
salvar vidas, além do fato de ter que matar fetos em estado avançado de
desenvolvimento - o que, às vistas da lei, seria caracterizado como crime,
mesmo que o aborto saísse da clandestinidade, nos termos do que propõe o
Conselho Federal de Medicina. Dai também a frase que digo “Medicina pra matar,
carnificina eficaz, contradiz os princípios dessa profissão que se fez para
salvar”, nesse caso (quando praticado por um medico) não sinto-me culpado pela
frase.
Mais uma vez: quando falo que vidas humanas são decepadas
pelas mães é pela opção que muitas vezes as próprias mulheres tem e cometem o aborto
sem uma informação mais concreta sobre o
que isso pode gerar, algumas presas aos dogmas religiosos. Muitas também se
arrependem, mas insisto no que diz respeito a direito e ética: o direito é das
mulheres sobre seu corpo, o respeito sobre as vidas delas e do que elas podem
ou não querer gerar ou ter, a ética em todo o processo, a regulamentação de
tudo para o avanço na sociedade.
Sou casado há 30 anos e minha mulher passou por isso. Toda
opção da pratica do aborto ficou por decisão dela mesma, naquele momento era o
que ela achava melhor para ela. Ela decidiu pelo aborto, hoje ela não é favor
do aborto (somente em situações diferenciadas é que ela concorda) e eu sou a
favor do aborto. Desejo que os órgãos responsáveis regulamentem essa pratica
para que não tenhamos de presenciar verdadeiros açougues humanos.
Me desculpo pelas falhas e brechas na minha fala que possam
ter dado uma impressão equivocada do meu posicionamento.
Silvio Campos
Direito à vida
Letra: Silvio Campos/Música: Karne Krua
Clínicas clandestinas
Entidades assassinas
Interesses financeiros
Promovem um genocídio
Puro horror e desespero
Direito, respeito e ética
Falta de informação
Controvérsia e discussão
Reforça toda a idéia
Contra essa degradação
Vidas humana em perfeitas condições
Condenadas ao extermínio
Sentem dor e rejeição
E tem suas vidas decepadas
Pelos médicos e suas mães
Medicina pra matar
Carnificina eficaz
Contradiz um dos princípios
Desta velha profissão
Que se fez para salvar
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