Em 1973, os editores do 
New Musical Express puseram Keith 
Richards, principal guitarrista e alma musical dos Rolling Stones, no 
topo de sua lista anual de “estrelas do rock com maior probabilidade de 
morrer” naquele ano. Mesmo para um roqueiro, Richards consumia 
quantidades hercúleas de heroína, cocaína, mescalina, LSD, peiote, 
Mandrax, Tuinal, maconha, 
bourbon e demais refrescos, e todos 
os observadores achavam que ele estava com os dias contados. Àquela 
altura, a lista de baixas do rock era longa e agourenta: Jimi Hendrix, 
Jim Morrison e Janis Joplin eram apenas os nomes mais célebres a 
encabeçar o obituário. Em 1969, Richards e seus colegas dos Stones 
haviam perdido Brian Jones, que se afogara numa piscina poucas semanas 
depois de ser demitido da banda. Em vez de preservar sua mortalidade, 
Richards preferia exibi-la de forma acintosa. Registrou para a 
posteridade seu quase constante torpor dando livre acesso a Robert 
Frank, Annie Leibovitz e outros fotógrafos, que o captaram nos camarins 
ou em quartos de hotel, seminu e completamente doidão. Ao ver aquelas 
imagens de Richards, largado, chapado e leso, imaginava-se que era uma 
questão de dias para que a imprensa anunciasse que ele havia morrido 
sufocado em seu próprio vômito.
Na realidade, Richards foi em frente, tropeçando pelos concertos numa 
névoa narcótica, dormindo durante os ensaios, sempre à beira do olvido 
e, mesmo assim, produzindo junto com Mick Jagger parte da música pop 
mais memorável da época. Entre 1968 e 1972, os Stones gravaram 
Beggars Banquet,
 Let it Bleed,
 Sticky Fingers e 
Exile on Main St., a essência do repertório deles. Continuaram a tocar essas músicas por tanto tempo quanto Sinatra cantou 
Love and Marriage.
 A peculiaridade dos Stones se devia menos aos vocais de Jagger do que à
 capacidade de Richards de absorver o estilo blues das guitarras de 
Chuck Berry e Jimmy Reed, criando algo novo. Havia músicos muito mais 
técnicos, solistas muito melhores, mas a noção de ritmo e de 
riff
 dele, o seu bom gosto, seus acordes sustentados e espaços abertos 
marcaram o som dos Stones. E, ao longo de tudo isso, a Indesejada não 
conseguiu entrar no camarim. Depois de deixar Keith Richards no topo da 
lista de seu observatório da morte por dez anos, o 
New Musical Express finalmente jogou a toalha e admitiu que ele era imortal.
Faz trinta anos que os Stones não compõem uma canção importante, mas 
eles sobreviveram quatro décadas além dos seus grandes contemporâneos, 
os Beatles. E mesmo que a originalidade deles tenha se esvaído, suas 
máquinas empresarial e de produção de espetáculos foram afinadas à 
perfeição. Desde 1989, os Stones arrecadaram mais de 2 bilhões de 
dólares em receita bruta, ajudados por acordos de patrocínio com 
Microsoft, Anheuser-Busch e E*Trade. As firmas Promotour, Promopub, 
Promotone e Musidor – todas com sede na Holanda por motivos fiscais – 
cuidam dos vários ramos das atividades empresariais dos Stones. Tudo é 
supervisionado por equipes de contadores, advogados de imigração, 
especialistas em segurança e, até muito recentemente, um aristocrático 
consultor de negócios chamado príncipe Rupert zu 
Loewenstein-Wertheim-Freudenberg. Mesmo nos anos sem excursões ou 
discos, os Stones dão um jeito de ganhar algum. Licenciaram 
Start Me Up para a Microsoft, quando a companhia lançou o Windows 95, e 
She’s a Rainbow para a Apple, quando uma linha de iMacs precisou de promoção. De acordo com a 
Fortune,
 os Stones estão por trás da comercialização de cerca de cinquenta 
produtos, inclusive roupas de baixo vendidas pela cadeia de lingerie 
Agent Provocateur. A logomarca deles – uma linguona lasciva para fora de
 uma boca que sorri – é tão reconhecível na paisagem dos negócios quanto
 os arcos dourados do McDonald’s.
“Essa coisa de negócios depende muito das leis fiscais”, Keith Richards contou à 
Fortune.
 “É por isso que ensaiamos no Canadá e não nos Estados Unidos. Muitas 
das nossas manobras espertas têm a ver fundamentalmente com a natureza 
das leis fiscais: aonde ir, onde não pôr nosso dinheiro. Botar debaixo 
do colchão ou não. Saímos da Inglaterra porque pagaríamos 98 centavos 
por cada dólar ganho. Fomos embora e eles é que perderam. Não vão 
receber um tostão de impostos. Não quero ferrar ninguém, muito menos os 
governos com quem trabalho. Deixamos 30% numa conta parada até resolver 
tudo.” Keith pode imaginar que é um símbolo de 68, mas emprega a 
política fiscal do mais radical dos conservadores.
No último tour que fizeram, entre 2005 e 2007, os Stones faturaram mais 
de meio bilhão de dólares – foi a mais lucrativa excursão da história. 
Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, tocaram para mais de 1 milhão
 de pessoas. Poucos espetáculos da vida moderna são tão sublimemente 
ridículos quanto os integrantes geriátricos dos Stones tocando os 
acordes iniciais de 
Street Fighting Man. A plateia costuma 
ficar lotada de fãs de meia-idade que, ao sair do escritório, vestiram 
um jeans largão, deixaram as crianças com a babá e desembolsaram 200 ou 
300 dólares para rebolar junto com Mick Jagger. Este, por sua vez, tendo
 treinado para as excursões como se fosse uma final de campeonato, 
saracoteia sem parar durante as duas horas de show; nos melhores 
momentos, lembra um epígono de James Brown; nos piores, a tia bêbada 
decidida a estragar o casamento da irmã mais bonita com uma performance 
patética na pista de dança. Desde 1975, “a excursão do pau inflável 
gigante”, como gosta de dizer Richards, os Stones tentam se superar com 
lances espetaculares. Às vezes, vão longe demais. “Teve aquela coisa de 
pôr elefantes no palco em Memphis”, diz Richards, “mas eles destruíram 
as rampas e cagaram o palco todo nos ensaios. A ideia não foi pra 
frente.” Noves fora os micos, o que acabamos por admirar é a improvável 
persistência dos Stones, uma entidade de quase meio século, que, aos 
trancos e barrancos, segue cômica e persistentemente adiante. Os rapazes
 estão chegando perto dos 70 anos. Enrugados, tingidos e esqueléticos, 
eles trovejam um repertório que a esta altura é tão augusto e imutável 
quanto as Variações Diabelli, de Beethoven. “De vez em quando, você olha
 para os próprios pés e pensa ‘é a mesma merda de sempre todas as 
noites’”, disse Richards. No entanto, ele continua a tocar e as 
multidões continuam pagando, relutantes em abandonar o último elo com 
seus anos dourados.
O mais novo artefato da longevidade da banda é a animada autobiografia de Keith Richards, cujo título desafiador é simplesmente 
Vida,
 lançada no Brasil pela editora Globo. Parte livro, parte extensão da 
marca, trata-se de um monólogo divertido e divagante, uma viagem leve 
pela vida de um homem que conheceu todos os prazeres, se permitiu tudo e
 nunca pagou o preço. “Você talvez não consiga sempre o que quer”, canta
 Jagger em 
You Can’t Always Get What You Want. Mas essa regra não se aplica a Keith.
Uma advertência óbvia: as memórias de um homem cuja memória está 
enevoada por incontáveis anos de obliteração narcótica são memórias de 
um gênero bem particular. Em 1978, quando lhe perguntaram por que os 
Stones haviam chamado seu último disco de 
Some Girls, Richards 
respondeu: “Porque a gente não se lembrava do nome de nenhuma delas.” 
Não obstante, a editora americana Little, Brown pagou 7 milhões de 
dólares a Richards para produzir o livro. Ele, por sua vez, escolheu um 
ghost-writer de talento – James Fox, o autor de 
White Mischief,
 uma história bem contada do assassinato de Josslyn Hay, o 22º conde de 
Erroll, um dos muitos expatriados dissolutos que viveram em Happy 
Valley, nos arredores de Nairóbi, no Quênia. Para Fox, escrever sobre as
 drogas, as aventuras sexuais e o tédio requintado de Happy Valley foi 
uma boa preparação para 
Vida.
Richards e Fox sabem por que o leitor desembolsou o dinheiro do livro: 
pelo mesmo motivo que, ainda hoje, trinta anos depois de largar a 
heroína, Keith cambaleia pelo palco com um sorriso maníaco e diz para a 
multidão em delírio: “É um prazer estar aqui! Aliás, é um prazer 
simplesmente estar!” É o excitamento de ouvir alguém que jamais passou 
um dia entre as quatro paredes de uma fábrica ou de um escritório, 
consumiu o que havia para ser consumido e sobreviveu para contar a 
história. Esse é o homem que inventou o refrão de (
I Can’t Get No)
 Satisfaction enquanto dormia e, no entanto, teve mais satisfações do que jamais imaginou Giacomo Casanova. Assim, 
Vida tem
 urgência em realçar o Mito de Keef e nos oferecer o que desejamos. O 
livro começa com uma longa cena da excursão dos Stones pelo Sul dos 
Estados Unidos em 1975, os carros lotados de narcóticos de primeira 
classe – “cocaína pura da Merck, o pó farmacêutico fino”. Mas na 
cidadezinha de Fordyce, Arkansas, população de 4 237 habitantes, 
Richards arranja confusão com a polícia. Segue-se uma narrativa grotesca
 de mau comportamento dos Stones diante da Justiça sulista. Richards, 
que acabou de se vangloriar para o leitor da posse e ingestão de vastas 
quantidades de droga, se faz de desentendido quando lhe dizem que 
enfrentará uma possível condenação à prisão. Da qual, como de costume, 
ele se esquiva.
Richards se gaba do seu metabolismo. Não somente narra sua “viagem 
movida a ácido com John Lennon”, como faz questão de nos dizer que 
Lennon “não conseguia acompanhar”. E relembra: “Ele tentava tomar tudo o
 que eu tomava, mas eu treinava duro. Um pouco disso, um pouco daquilo, 
uns tranquilizantes, umas bolinhas, coca e pó, e depois eu ia trabalhar.
 Eu era alucinado. E John acabava invariavelmente no meu banheiro, 
abraçado ao vaso.”
Às vezes, o livro parece uma versão sem consequências de 
Junky, de William Burroughs. Num trecho longo, Richards descreve sua dieta diária:
 Eu tomava um barbitúrico para acordar, de efeito recreativo em 
comparação com a heroína, mas nem por isso menos perigoso. Isso era o 
café da manhã. Um Tuinal, fazia um furinho com uma agulha, para fazer 
efeito mais rápido. Depois tomava uma xícara de chá, e então matutava 
sobre levantar ou não da cama. E mais tarde, quem sabe um Mandrax ou 
Quaalude. Senão eu ficava com energia demais para queimar. Desse jeito, 
você acorda devagar, já que tem tempo. E quando o efeito passa, depois 
de umas duas horas, você se sente relaxado, come alguma coisa de café da
 manhã e está pronto para o trabalho.
Richards se orgulha de muitas coisas, inclusive de sua capacidade de 
ficar acordado durante dias. Seu recorde de todos os tempos foi uma 
sequência de nove dias sem dormir à base de cocaína, ao final da qual 
ele simplesmente desabou e bateu com a cabeça num alto-falante: “Saiu 
uma cortina de sangue.”
Esse aspecto do livro, a narrativa do viciado, é o capítulo mais recente
 de uma tradição que data do romantismo e de Thomas de Quincey, com suas
 visões causadas pelo ópio, povoadas de crocodilos e outros “monstros 
indizíveis”, de 
Crabbe, Coleridge, Byron, Baudelaire – uma lista infindável. Mais especificamente, 
Vida pertence à subcategoria das memórias de músicos viciados: 
Straight Life, de Art Pepper, 
High Times Hard Times, de Anita O’Day, 
Raise Up Off Me, de Hampton Hawes, e a colaboração fantasticamente obscena de Miles Davis com Quincy Troupe.
Quando terminei o livro de Richards, li várias dessas memórias do jazz, 
bem como biografias de outros gênios viciados, como Billie Holiday e 
Charlie Parker. Depois de revisitar o desespero, as drogas vagabundas, 
as condenações à prisão, as vidas encurtadas, achei que havia algo quase
 repugnante no ego e no espírito jovial do sortudo Keith. Ele tem muitos
 conselhos disparatados para o candidato a 
junkie e 
voyeur:
 nada de drogas injetáveis, tome apenas as drogas mais puras e de melhor
 qualidade e, por favor, nunca exagere. (“Olha, eu não devia dizer 
nunca; eu às vezes ficava totalmente cataplético.”)
Richards admira a música de seus predecessores e superiores, mas não 
sente a dor deles. Está protegido dos dramas normais dos drogados por 
camadas e camadas de advogados, dinheiro, e privilégios. Charlie Parker 
compôs 
Relaxin’ at Camarillo depois de sair de um manicômio na cidade homônima da Califórnia. Richards fez 
Exile on Main St.
 quando era um exilado do fisco morando numa propriedade rural em 
Villefranche-sur-Mer. Nos intervalos entre picos e ensaios, ele cruzava o
 Mediterrâneo numa lancha de corrida atrás de 
socialites europeus:
 “Dávamos uma parada em Monte Carlo para almoçar. Batíamos papo com a 
turma do Onassis ou do Niarchos, que atracavam iates imensos por lá.”
Outro aspecto inevitável das memórias ou biografias do rock é o catálogo
 de conquistas sexuais e, sobre esse assunto, Richards é quase tímido. 
Ele nos conta que seus colegas Jagger e Bill Wyman tabulavam friamente 
suas conquistas. Keith é do tipo passivo. São as mulheres que o 
procuram. “Nunca dei uma cantada numa mulher em toda a minha vida”, diz.
 E, no entanto, descreve com prazer como roubou a modelo e artista 
teutônica Anita Pallenberg de Brian Jones enquanto desciam para o 
Marrocos num Bentley:
 Anita e eu nos olhamos e a tensão no banco de trás ficou tão alta 
que, quando vejo, ela está me pagando um boquete. Aí a tensão se rompeu.
 Ufa. E de repente, estávamos juntos. [...] Durante mais ou menos uma 
semana é fuque-fuque-fuque lá na Kasbah, nós dois com um tesão de 
coelho, se perguntando como tudo isso ia acabar.
No fim das contas, Richards e Pallenberg resolveram morar juntos. Formam um casal e tanto, jovens 
junkies apaixonados,
 constantemente driblando a prisão. Mas não conseguem driblar a 
tragédia. Em 1976, enquanto Keith estava em excursão, o terceiro filho 
dele com Pallenberg, um bebê chamado Tara, morreu no berço. Eis a 
maneira ponderada como Richards exprime o seu pesar: “Nunca conheci o 
filho da puta, ou mal o conheci. Troquei as fraldas dele duas vezes, 
acho. [...] Até hoje, Anita e eu não falamos a respeito.” Isso vai muito
 além dos limites normais da reserva.
O vício e o mau comportamento de Pallenberg são demais até para 
Richards. O problema não é tanto ele estar convencido de que ela teve um
 caso com Jagger – seu terceiro Stone! – mas o fato de ela superar os 
limites de Keith no departamento “decadência”. “Ela era 
incontrolavelmente autodestrutiva”, escreve ele. “Era como Hitler; 
queria que todos afundassem com ela.” Por fim, Richards encontra a 
felicidade e uma existência muito mais estável com uma modelo americana 
chamada Patti Hansen.
Richards é grosseiro com muita gente nesse livro, assim como foi em 
numerosas entrevistas dadas ao longo do tempo. Ele acha que isso faz 
parte do seu charme de malandro. Diz que os punks não têm talento. 
Elogia o U2 uma ou duas vezes, mas desconsidera todo mundo, de Prince 
(“um anão supervalorizado”) a Elton John (“uma puta velha”) e Bruce 
Springsteen (“Se houvesse coisa melhor por aí, ele ainda estaria tocando
 nos bares de Nova Jersey”). Os que não acompanham essas coisas de perto
 podem se surpreender ao ver como Richards pode ser duro com Mick 
Jagger, ao qual se refere às vezes como “Brenda” ou “Sua Majestade”. Ele
 não suporta as pretensões de Jagger, seus “cálculos”, seu excesso de 
atenção aos negócios, sua ânsia pela aprovação do 
establishment e
 sua tendência ocasional de tratar Richards e os outros membros da banda
 como empregados. Ele o retrata como cheio de frescuras, triste, alguém 
que só pensa em si mesmo: “É quase como se Mick Jagger aspirasse a ser 
Mick Jagger, correndo atrás de seu próprio fantasma. Com a ajuda de 
consultores de estilo. [...] Eu adorava andar com Mick, mas não entro em
 seu camarim acho que faz uns vinte anos. Às vezes, sinto saudades do 
meu amigo.” Richards, que vive como um fidalgo em propriedades rurais 
muradas na Inglaterra e em Connecticut, concede que Jagger é seu “irmão”
 e terá sempre seu apoio, mas claramente se considera mais original como
 homem e como músico.
Há leitores que se deliciarão com a autoimagem de Richards como o 
espertalhão que sempre se dá bem, mas, para mim, as seções mais 
fascinantes do livro são as histórias de sua evolução, o modo como sua 
amizade de adolescência com Jagger e o amor que os dois tinham por seus 
heróis do blues levaram rapidamente à formação da Maior Banda de Rock do
 Mundo. É uma história já narrada muitas vezes, mas Richards e Fox a 
contam muito bem.
Keith Richards e Mick Jagger eram crianças na Londres do pós-guerra e 
colegas de escola na Wentworth Primary School, em Dartford. Keith era 
filho único de pais de classe operária. Seu pai, Bert, era chefe de 
seção numa fábrica da General Electric. Criado ouvindo jazz, blues e os 
sons emergentes da música pop americana, ele cantava no coro da escola. 
Depois que sua voz mudou, perdeu interesse pela escola e começou a 
frequentar a sorveteria Dimashio, onde ficava ouvindo o 
jukebox.
 “Era o único pedacinho de América em Dartford”, escreve ele. “A vida 
era em branco e preto; o tecnicolor estava para chegar, mas em 1959 
ainda não.” À noite, ele ouvia Buddy Holly, Eddie Cochran, Little 
Richard e seu ídolo, Elvis Presley, na Rádio Luxemburgo. Esses foram os 
anos do “Despertar”, a recepção entusiástica da música americana na 
Grã-Bretanha. Músico iniciante, Richards interessou-se pelos 
acompanhantes: o guitarrista de Elvis, Scotty Moore; o arranjador e 
trompetista de Fats Domino, Dave Bartholomew. No Sidcup Art College, 
escola que preparava gente atrás de um emprego na agência de publicidade
 J. Walter Thompson, Richards passava o tempo vadiando e escutando 
discos de blues. Então, em 1961, na estação ferroviária de Dartford, ele
 topou com Jagger, que, como ele descobriu, era fanático por blues e 
colecionador de discos. Jagger tinha todos os discos da Chess Records: 
Muddy Waters, Chuck Berry, Howlin’ Wolf, Willie Dixon. Os dois garotos 
ouviam os discos sem parar.
Jagger e Richards criaram uma banda chamada, no começo, Little Boy Blue 
and the Blue Boys. Na primavera de 1962, eles já tinham incorporado 
outro guitarrista maluco por blues, Brian Jones. No mês de janeiro 
seguinte, ganharam a companhia de um baterista com gosto por jazz, 
Charlie Watts, e um baixista, Bill Wyman, cuja principal qualificação 
era ser dono de um amplificador Vox. Esses eram os Rolling Stones.
Enquanto a banda tomava forma, Richards aprendia a copiar a simplicidade
 de uma nota só de B. B. King e os solos de corda dupla de T-Bone Walker
 – técnica que economizou dinheiro para a banda, porque podia “eliminar a
 necessidade de uma seção de sopros”. Richards e Jagger tinham uma 
ambição simples: só queriam ser “a melhor banda de blues de Londres e 
mostrar àquela gente o que era tocar de verdade”. Com devoção de monge, 
moravam em apartamentos baratos e ensaiavam a noite inteira. “Quem saía 
do ninho para transar, ou tentar transar, era um traidor”, relembra 
Richards.
A banda tocou em clubes nos arredores de Londres com nomes como 
Flamingo, Ealing, Crawdaddy, Marquee e Red Lion; e, nos fluidos dias de 
1963 – enquanto os Beatles, uma banda relativamente veterana, estava em 
ascendência – os Stones lançaram seu primeiro 
single, um 
cover de 
Come On,
 de
 Chuck Berry. O disco disparou nas paradas e em uma semana os Stones 
eram estrelas. Foi o que bastou. “De repente, estavam botando a gente 
nuns puta ternos xadrez 
pied-de-poule e fomos levados pela maré”, diz Richards. Mas os garotos logo se livraram do 
look pseudo-Beatles.
 Se deram bem do seu jeito. No início, se apresentaram na abertura de 
shows de Little Richard e Bo Diddley (com quem aprenderam incontáveis 
lições de ritmo e teatralidade), e depois como atração principal, 
causavam tumultos onde quer que fossem.
“Na Inglaterra, acho que durante dezoito meses, nunca conseguimos 
terminar um show”, lembra Richards. O repertório curto deles tinha 
covers de 
Not Fade Away, 
I’m a King Bee e 
Around and Around, mas a gritaria era tão intensa que em algumas noites a banda tocava 
O Marinheiro Popeye
 só para ver se alguém notava. Os garotos jogavam tampinhas de garrafa e
 moedas; as garotas queriam despedaçar os Stones, tão profundo era o 
frenesi erótico. Ainda hoje, Richards parece assustado:
 Jamais me esqueci do poder das adolescentes de 13, 14, 15 anos, 
quando estão em bando. Elas quase me mataram. Nunca temi mais por minha 
vida do que diante daquelas adolescentes – as que me asfixiaram me 
deixaram em frangalhos. Se você era apanhado por uma multidão frenética 
de adolescentes,  é difícil expressar o medo que elas provocam. Seria 
preferível estar numa trincheira lutando contra o inimigo do que encarar
 aquela onda assassina e irrefreável de luxúria e desejo, ou seja lá o 
que for aquilo – uma força desconhecida até por elas.
Depois de um show no norte da Inglaterra, a banda ficou no teatro,  
esperando que a multidão fosse embora. Um velho zelador que havia 
ajudado na limpeza disse a Richards: “Show muito bom. Nenhum assento 
seco na casa.”
Quando os Stones foram pela primeira vez aos Estados Unidos, no verão de
 1964, tocaram em shows depois de Bobby Goldsboro e dos Chiffons, e 
sofreram os insultos de Dean Martin, que os chamou de cabeludos 
primitivos. Chegaram até a dividir o programa com um contorcionista 
chamado “Incrível Homem-Borracha”, o qual, pensando bem, talvez tenha 
exercido uma influência decisiva nas momices de Jagger no palco. Foi 
somente quando, naquele mesmo ano, Jagger e Richards passaram a compor 
que os Stones começaram de fato a competir com os Beatles. Em 1965 
lançaram 
Satisfaction. Num padrão que seria típico da colaboração entre os dois nas décadas seguintes, Richards criou o 
riff e Jagger entrou com a letra.
Na imaginação adolescente, a vantagem de ser membro de uma banda é que 
você acaba o dia na cama com a parceira, ou parceiras, que quiser. Não é
 bem assim, diz Richards: “Você pode estar nadando, ou comendo sua 
mulher, mas lá no fundo você está pensando sobre uma sequência de 
acordes ou algo relacionado a uma canção. Independente do que estiver 
acontecendo.”
Richards demonstra mais prazer quando descreve a sensação de tocar seu 
instrumento, em particular a guitarra elétrica que, diz ele, é “como se 
agarrar numa enguia-elétrica”. O momento de revelação em 
Vida é
 puramente musical e ocorre “no final de 1968 ou início de 1969”, depois
 que Richards descobre um dos segredos do blues. As seis cordas da 
guitarra são normalmente afinadas em mi-lá-ré-sol-si-mi. Depois de 
colaborar com o grande instrumentista e arranjador Ry Cooder, Richards 
pegou a afinação “em sol aberto”, em que a guitarra é afinada num acorde
 em sol: ré-sol-ré-sol-si-ré. 
Bluesmen do Mississipi como Robert Johnson, Son House e Charley Patton usavam essa afinação; Don Everly também, em
 Bye Bye Love. Richards retirou a corda mais baixa de uma Fender Telecaster afinada em sol-ré-sol-si-ré e produziu os 
riffs de 
Tumbling Dice, 
Brown Sugar, 
Honky Tonk Women, 
All Down the Line, 
Can’t You Hear Me Knocking,
 entre outros. Qualquer pessoa que tenha tocado numa banda de garagem 
nos anos 60 e 70 lembra da experiência de tentar tocar essas músicas e 
descobrir que elas não tinham o ronco, o som ressoante que Keith 
Richards produz em, digamos, 
Get Yer Ya-Ya’s Out!, o melhor disco ao vivo dos Stones. Agora, evidentemente, é possível ir ao You Tube, escrever, digamos, 
Brown Sugar, aula,
 e aparece um garoto de 14 anos com uma câmera de vídeo e uma guitarra, 
ensinando a usar a afinação em sol aberto e “tocar como Keith”. O 
próprio Keith explica melhor: “Se você está tocando o acorde da maneira 
certa, consegue ouvir um outro acorde soando por trás, que você não está
 tocando, mas que existe. Isso desafia a lógica. O acorde está lá 
dizendo: ‘Vem.’”
Keith Richards está com 66 anos. É avô. Fez uma cirurgia de emergência 
no crânio, embora por um motivo muito Keith Richards: caiu de uma árvore
 em Fiji. Ele diz que leva uma “vida de cavalheiro”. Gosta bastante das 
aventuras marítimas de Patrick O’Brian e dos romances de George 
MacDonald Fraser em que o protagonista tem 90 anos e se chama Flashman. 
Cabe informar que ele também caiu da escada de sua biblioteca. Antes, 
tinha um cachorro 
wolfhound chamado Sífilis, hoje tem um 
labrador amarelo chamado Abóbora. Ele e sua mulher põem Abóbora num 
jatinho particular e vão espairecer na propriedade que eles têm nas 
ilhas Turks e Caicos, no Caribe.
 Gimme Shelter para valer. Ele vive como um pirata do 
private equity.
A idade deu a Richards um pouco de compreensão a respeito de suas 
próprias contradições. Ele vibra com sua vida, mas também está 
consciente da natureza oca de sua imagem de fora da lei: “Não há como 
desatar os nós do quanto representei o papel que foi escrito para mim. O
 anel de caveira, o dente quebrado e o lápis de olho”, escreve. “De 
certo modo, a persona, a imagem de como eu era antes acaba sendo um 
grilhão. As pessoas ainda acham que eu sou um 
junkie. Faz 
trinta anos que larguei a droga! A imagem é como uma sombra comprida. 
Mesmo quando o sol se põe, ainda dá para ver. Acho que em parte é porque
 há tanta pressão para ser daquele jeito que você acaba se 
transformando, pelo menos até onde dá. É impossível não acabar sendo uma
 paródia do que você achava que era.”
Um dos momentos mais tocantes do livro é quando os jovens Rolling Stones
 chegam aos estúdios de gravação da Chess, em Chicago, a Meca do blues. 
Um operário está pintando o teto. O nome do operário é McKinley 
Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters. Os Stones estavam a 
caminho de uma vida de milionários e o mínimo que poderiam fazer era 
render homenagem aos seus heróis. Batizaram a banda com o título de uma 
música de Morganfield e cantaram louvores a ele e a todos os outros 
antepassados mais talentosos do que eles.
Richards havia escapado da Indesejada, mas não da dívida mais importante
 que tinha, a qual nunca deixou de reconhecer com lealdade: “Eu?”, disse
 Keith certa vez. “Eu só quero ser Muddy Waters. Embora eu jamais vá ser
 tão bom ou tão preto.”
"Curtindo adoidado"
A vida e as tentações de Keith Richards
por 
David Remnick
piauí
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