quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Ninguém entende um mod.


Amadurecer é doloroso. Para um artista, deixar a zona de conforto das fórmulas estabelecidas é um salto no vazio e um processo nem sempre acompanhado pelos fãs, que se veem forçados a alargar horizontes musicais e narrativos. O consolo para trabalhos subestimados pela crítica ou incompreendidos pelo público é o reconhecimento tardio.

Quadrophenia é um exemplo. O sexto álbum de estúdio da banda inglesa The Who, lançado originalmente em 1973, foi remasterizado e finalmente ganha versões decentes em CD. No Brasil, só aporta a Deluxe Edition, com dois discos trazendo a obra original mais algumas demos, mas no exterior, há a opção de uma caixa – The Director’s Cut –, com cinco discos, livreto e uma série de itens de colecionador.

O nome da caixa – A Versão do Diretor – é mais do que uma brincadeira com o revisionismo. É a tradução da visão dramatúrgica do autor. O compositor e guitarrista Pete Townshend, líder do Who, era um multimídia avant la lettre. Assim como a primeira ópera rock do grupo, Tommy (1969), Quadrophenia foi concebido como uma peça (gerou um elogiado filme em 1979), algo que extrapolava o vinil.

Isso aparece também na concepção de arte do álbum. A capa, em preto e branco, evoca o passado, a juventude de Townshend e de sua geração. Dentro, as letras e um encarte com uma espécie de fotonovela (a trajetória do anti-herói Jimmy, um arruaceiro londrino dos anos 1960). A versão relançada aqui reproduz esse encarte e traz notas explicativas de Townshend sobre 11 demos. Na versão Director’s Cut são 25, mas há dezenas de fotos, documentos e músicas disponíveis no site quadropheniaofficial.com.

Pretensioso e chato? Townshend sempre afirmou sua predileção pelas óperas rock, em geral, e por este disco, em especial. “Uma canção de três minutos é suficiente pra contar uma história, mas não é grande o bastante pra mais de uma ou duas vozes. Eu gosto de reunir mais personagens. Quadrophenia é minha maior realização.” Uma visão não compartilhada por todos.

Quando do lançamento, muitos tacharam o álbum de pretensioso e chato. Uma prova do descompasso entre as enormes expectativas do público e o objetivo artístico de Townshend. A banda vinha do estrondoso sucesso de seus dois álbuns anteriores: Tommy e Who’s Next (1971), este o maior sucesso comercial do Who, apesar de nascido das sobras da abortada ópera rock Lifehouse (em 2001, o guitarrista lançou, por seu selo, quatro CDs retomando a ideia original desse projeto).

Em 1972, Townshend já tinha seu argumento. Abordaria a rivalidade entre duas gangues de jovens ingleses dos anos 1960: os Mods e os Rockers, cujos conflitos chegaram ao ápice na cidade litorânea de Brighton, em 1964, um incidente real. O protagonista seria um jovem com tendências esquizofrênicas e que se espelharia nas quatro personalidades dos integrantes do Who, ídolos do movimento Mod.

Essa multiplicação de personalidades convinha ao objetivo de Townshend de gravar o disco e apresentá-lo no sistema quadrafônico, coisa que o Pink Floyd já vinha fazendo (os shows de Roger Waters no Brasil, em 2002, utilizaram esse sistema). A gravação do disco levou menos de dois meses e o resultado mostra uma banda madura.

As composições de Townshend são mais sofisticadas, há todo o peso que se espera do Who, mas sutileza também. A interpretação do vocalista Roger Daltrey em Love Reign O’er Me é insuperável. O criativo baixo de John Entwistle nunca foi tão marcante como em The Real Me e o caos ordenado do baterista Keith Moon compete o tempo todo com os enérgicos acordes da guitarra de Townshend.

O disco é incensado por muitos fãs, mas as ambientações de Quadrophenia, com sons do mar e da chuva, não caíram no gosto geral. Ainda que tenha estreado em segundo lugar nos Estados Unidos e na Inglaterra, no palco, as canções não decolaram. Além do uso massivo de sintetizadores, as partes pré-gravadas com fitas não funcionaram a contento. Townshend cancelou a turnê com menos de seis meses, em junho de 1974.

O fiasco dos shows relegou o trabalho a um tipo de limbo. Somente em 1996, o grupo – sem Moon, morto em 1978 –, retomaria os shows completos de Quadrophenia, com o relançamento de uma versão sofrível do álbum em CD.

Em 2010, uma apresentação beneficente da obra no Royal Albert Hall recebeu boas críticas e reacendeu em Townshend o projeto de uma nova turnê do disco, prometida para 2012.

Quadrophenia merece. Depois do niilismo da canção My Generation (I hope I die before I get old) e da falsa epifania do disco Tommy, Townshend fez um retrato musical fiel de uma realidade comum a todos: sobreviver à juventude. Crescer é saltar no vazio.

Curiosidades

1. O guitarrista Eric Clapton era figura constante no estúdio durante a gravação do álbum. Townshend foi o mentor do show de retorno de Clapton, em janeiro de 1973, ajudando o amigo, que ficara recluso quase dois anos, na luta contra o vício das drogas e do álcool.

2. Durante a abertura da turnê de Quadrophenia nos EUA, em 1973, o baterista Keith Moon apagou no palco. Um fã, Scott Halpin, assumiu a bateria e terminou o show. A famosa cena aparece no documentário Amazing Journey: The Story of The Who.

3. Prometida há anos, a autobiografia de Pete Townshend, Who He?, deve ser lançada em 2012. O guitarrista prepara também um musical para o teatro, Floss, sobre um roqueiro entrando na velhice.

4. Sistema quadrafônico – A multiplicação de personalidades, tema do álbum, convinha ao objetivo de Townshend de gravar o disco e apresentá-lo no sistema quadrafônico, coisa que o Pink Floyd já fazia. A gravação levou menos de dois meses.

por Douglas Portari

Combate rock

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