O show de lançamento do novo disco acontece nos dias 02 e 03 de outubro no Sesc Pompeia com participação especial de Denise Assunção. O novo álbum está em pré-lançamento no site Kickante. A Revista Brasileiros bateu um papo rápido com a cantora para falar sobre a música nova:
Brasileiros – A música tem uma letra super sucinta. De onde vem o lance de fazer uma letra tão direta?
Tem ela no livro Desperdiçando Rima (Fábrica 231). Não sei de onde veio isso da letra direta, na verdade nunca pensei nisso de ser uma letra direta. Ela não ia ser letra de música, ia ser uma poesia do livro, só depois fiz a música pra ela.
De onde surgiu a ideia para a letra? Vem de uma história pessoal, de histórias de outras mulheres ou tudo isso junto?
Vem de tudo junto. Não é uma história específica, é sobre muitas histórias de mulheres, que nascem sob um mesmo estigma.
Por que escolher esta faixa para apresentar o álbum?
Tinha que escolher uma delas e acho que ela tem uma agressividade e peso que o disco tem. Achei que ela daria um bom “bom dia” do disco.
O que é “o monstro” da música? Ouvindo a música senti que cabem mil interpretações ali. Você sente isso também ou tem uma interpretação mais definida do que escreveu?
Tenho uma interpretação bem definida. Mas acho maravilhoso que você sentiu que cabem mil interpretações ali. Acho essa a melhor parte de se fazer músicas e letras, cada um que ouve, poder ouvir sua própria versão. Não me sinto bem destrinchando uma letra, explicando tudo. Acho que o mistério é justamente essas mil interpretações. Essa coisa que eu falei sobre ela, que você cita nas aspas, já fiz um esforço grande pra tentar traduzir um pouco a música. Esforço no sentido de achar que tava fazendo uma coisa errada, que não ia dar certo isso de traduzir. E aí tentar mais que isso acho que quebraria o encanto.
(continuando ... ) Você é vista como um ícone feminista pelo público. Você buscou essa posição ou surgiu naturalmente? Qual a importância de
difundir essas ideias atualmente?
Essa posição foi vindo naturalmente, eu não tenho vontade de ficar construindo alguma imagem. Sempre falei sobre essas coisas na vida, mesmo antes de ser artista, mas minha ideia de feminismo é que um dia a gente não precise mais ser feminista. O ideal é que seja tudo tão normal e cotidiano que a gente não precise mais se defender quanto a isso. Vamos ser feministas enquanto for preciso. É um saco bater sempre na mesma tecla? Sim, mas é um saco maior ainda passar pelas coisas que as mulheres passam, então vamos continuar.
Já foi cobrada pela família ou pela sociedade para ser mais feminina? Acredita que rotular comportamentos e características como femininas ou masculinas ainda é um tabu presente na sociedade?
Ainda está muito presente, tanto que é uma luta muito grande a de quem tenta acabar com o preconceito de transfobia, homofobia, pois tudo isso está impregnado no machismo. Desde quando você nasce menina, com tudo rosinha, mesmo que hoje já não seja proibido fazer isso ou aquilo, ainda tem o preconceito de quem pode fazer o quê. Foi isso que vivi na minha vida, as meninas que iam jogar futebol ou ser cientistas, eram as que quebravam todas as barreiras possíveis, porque as condições e direitos não eram iguais. Essa ideia do que é de homem e o que é de mulher é que atrapalha tudo. Existe esse mito de que homem é irresponsável, imaturo e, para as mulheres, têm aquilo de serem maduras, maternais. Qualquer pessoa pode ser as duas coisas.
Você costuma defender suas causas políticas publicamente, acredita que esse seja um dever do artista? De que maneira a arte pode ajudar a propagar seus próprios ideais?
Acaba que como artista, quando você fala das suas questões, seja em uma música ou em um show, e isso acaba se espalhando. Quando escrevo em redes sociais, o tema se espalha mais rápido ainda. Assim, você acaba disseminando o seu trabalho e suas ideias, mas acredito que é de cada um, não precisa de uma regra. Tem gente que faz muito sem falar tanto, tem gente que fala muito mas é superficial, tem gente que faz os dois. Acho que é uma obrigação de todo mundo, não só do artista. Muitas vezes o seu público pode não concordar com suas ideias, mas é importante espalhar.
Quando começou a fazer arte, você pretendia utilizá-la para quebrar padrões? Aconteceu naturalmente?
Eu faço tudo muito naturalmente, não penso antes ‘eu vou quebrar padrões, vou protestar’. Pode ser que eu faça um livro inteiro falando sobre o mar e a lua, a gente tem que ter leveza também, pois existem os dois lados. Desde uma banda como os Racionais, que são incríveis fazendo o que fazem, até um cara como o Jack Johnson que toca violão na praia e também é maravilhoso. É massa ter tudo isso misturado, cada um vai falar melhor de uma coisa. Eu, na vida pessoal, não sou performática, sou mais tímida, muitas vezes ninguém entende nada. Mas é que ali no palco é aquele momento, que estou cantando aquelas músicas, na vida sou mais pra dentro mesmo.
Já te ouvi dizer que era contra expressões como o regionalismo. Por que motivo? Acredita que isso atrapalha em vez de fortalecer?
Na verdade quando se fala de música e cultura regional no Brasil, se está falando do Norte ou do Nordeste, qualquer lugar que não seja o Sudeste, então isso é que é um saco. Quando alguém diz ‘ah, sua música tem uma pegada de música regional’. Regional de que região? De repente um som que tem muito coco, maracatu.. é chamado regional, mas se for um samba, que é do Sudeste, não é. Vira regional porque está fora do núcleo.
Sua música é uma mistura de diferentes estilos e sua personalidade no palco é forte. Leva a sua experiência como atriz do Teatro Oficina para o show ao lado da música? O que mais te marcou em suas experiências com Zé Celso e o que você leva delas na artista que você é hoje?
Acredito que inconsciente eu trouxe, passei sete anos lá. E lá a rotina era cantar, tocar, dar texto, tudo ao mesmo tempo. E eu gosto disso, tudo ao mesmo tempo, então vai para o meu show de alguma maneira. Foi quando eu cheguei lá que entendi o que era o Oficina e o Zé Celso. Não foi difícil, mas foi diferente de tudo o que eu tinha feito. Isso de tirar a roupa no começo me assustou, mas depois virou algo completamente natural e foi muito bom ter se tornado natural.
É difícil para o artista tentar explicar de onde vem a sua inspiração, você acredita que se coloca nas composições e poesias que cria? Ou tenta criar a partir de algo externo? Que tipo de coisas, cheiros, lugares ou pessoas te inspiram mais no processo criativo?
Eu não penso de onde eu tiro inspiração ou criação, acho que se eu pensar muito não sai. É claro que a gente é inspirado por tudo que vê e que ouve, mas quando eu vou fazer, não vou pesquisar ou procurar alguma coisa específica. Pelo contrário, quando vou fazer, tento fazer o meu melhor ali e depois acabo pensando que pode ter tido a ver com algo que vi em outro lugar. É na confusão, no meio de tudo. Até já tentei ir pra outro lugar. Uma vez fui pra uma praia lá perto de Ubatuba, ia passar 15 dias escrevendo. Cheguei lá e passei 15 dias tomando banho de mar, lendo, dormindo, não fiz nada disso. É um processo do dia a dia.
Na grande parte de suas entrevistas, você evita dar respostas muito fechadas, que tenham por base o certo ou errado, sim
ou não. Você acredita no equilíbrio e na existência de múltiplas possibilidades em tudo?
Eu evito sim, porque até pode acontecer de eu dizer que acho algo certo e depois dizer que não, e tudo bem isso. Até porque a opinião pode mudar, posso falar algo com muita certeza agora e depois ser outra coisa. Não têm só dois lados de cada coisa. Isso de todo mundo ter que dar opinião sobre tudo, tem que ter opinião fechada, não precisa. Às vezes você não sabe sobre aquilo, ainda está percebendo ainda o que é. O que me agonia é isso, todo mundo tem que ter uma opinião formada sobre tudo. Tento entender melhor antes de falar, não tachar as opiniões.
Qual a importância da existência de pequenas editoras e gravadoras? Essa presença independente faz diferença no mercado?
Acho isso muito importante, fiz discos independentes, sempre segui esse caminho. Esse caminho independente é muito importante, existe uma liberdade total de tema, de formato, a limitação é só pela grana. A tiragem é menor, mas tem outras coisas boas, outras trocas. Gente que faz fanzine, HQ, isso é muito bom. Se tivesse uma gravadora e chegasse com uma proposta massa, eu faria também, tem muito artista que já fez coisa bacana com gravadoras, não é uma regra. A distribuição de música e as coisas vão mudando e a gente descobre novos caminhos.
(e mais) Socialista Morena – Quando você fez a foto do disco sem blusa, achou que o Facebook fosse censurar?
Karina Buhr – Só pensei no Facebook depois. Mas pensei: claro, tem grandes chances de ele vetar, porque vetam um monte de desenho meu. Achava que isso podia acontecer, sim.
Você já tinha sido bloqueada antes?
Já. Com desenhos, com o Sexo Ágil (revista eletrônica que edita anualmente). Tem uns caderninhos que eu fiz para a Livraria Cultura que tentei divulgar no Facebook e não deixaram. O Sexo Ágil todo ano vetam, tanto quando a capa é desenho quanto quando é foto.
Qual foi a idéia da capa do CD?
A idéia é ser este personagem, Selvática, que conta a história do disco. Desde o começo eu imaginei ela assim, uma guerreira, uma mistura de um monte de coisas. Aquela faca que eu uso, na verdade é uma lança ianomâmi, estou com um punhal cigano… São umas referências misturadas, mas simbolizando uma guerreira. Este nome eu tirei do Gênesis, da Bíblia, que fala de uns animais selváticos, que são os bichos escrotos: ratos, serpentes, escorpiões. E depois quando entra a mulher em cena, comecei a viajar que ela também seria selvática, por tudo que rolou na história até hoje e como elas são representadas também nestes textos todos: sempre que tem mulher é relacionado à traição, à fraqueza.
O que você acha de mamilos serem tão “polêmicos”? Estamos vivendo tempos conservadores demais?
A gente sempre viveu, mas pelo menos na arte isso era uma coisa tranqüila, era um lugar onde dava para respirar. O que não dava na vida real, dava para respirar em foto, escultura, desenho… E agora está cada vez pior e não é só no Facebook. A gente ficou pensando: e loja de disco, será que vão querer botar tarja? Teve a história do disco de Juçara Marçal no Itunes, né?
Qual?
Um desenho do Kiko Dinucci de uma mulher com o peito de fora que foi censurado. Então tem essa história sobrevoando, é horrível. Quando comecei a fazer o Sexo Ágil, o primeiro era falando basicamente disso, da vontade de poder tirar a blusa na rua, onde estiver, porque é a nossa burquinha. Eu chamo de mini-burca e a burca de blusão. Me lembro de quando era pequena, do momento em que tive de botar o sutiã na praia, do momento em que passei a andar de camisa. De como isso foi ruim pra mim, na época, que é também a idade em que as meninas no mundo árabe têm que botar véu, começar a se cobrir… É como se de repente chegasse numa idade em que a gente ficasse muito perigosa e os homens não vão poder resistir e só vai acontecer coisa ruim. Eu ligo isso, essa coisa de não poder ficar com o peito de fora em qualquer lugar, ao momento em que começou essa confusão toda, de você usar uma roupa curta e ser culpada de qualquer coisa ruim que lhe aconteça. Começou ali. Eu lembro muito dessa sensação de estar na praia, com 11 anos…
Quando o peitinho da gente começa a apontar, né?
E o meu demorou, então fiquei lá muito relax. Minha avó, mãe do meu pai, ficava reclamando: ‘parece um menino, parece um menino’. Eu ficava sem nada, só com 11 anos que eu fui botar na praia a parte de cima do biquíni. E aí quando começa isso, começa a agonia na vida da gente, que nem uma blusa transparente pode usar. Tá no frio acende o farol, pronto: bota a bolsa na frente. É insuportável.
Parece uma coisa importada da direita americana.
Isso vai tomando uma força muito louca. Essa coisa do Facebook mesmo, parece uma besteira, dizem: ‘ah, é só sair’. Não, é uma ferramenta muito poderosa de comunicação. Muita gente usa para trabalho, é uma comunicação muito forte. E ela começa a decidir quais vão ser os assuntos, quais vão ser as imagens que a gente vai poder usar. Então cada vez menos aparece peito e cada vez mais fica como natural censurar peito. O maior problema é esse: que quem faz as coisas comece a se censurar antes que venha a censura de fora.
E desde a arte clássica, peitos de fora nunca foram um grande drama…
Pois é. Teve uma charge que recebi de um bando de homem olhando revistas de mulher nua numa banca e do lado deles uma mulher com o símbolo feminista, com o peito de fora, e a polícia levando. É bem isso. Se for uma nudez de mulher dentro daquele universo que é para mostrar para os homens, isso pode. Mas se é em outro contexto, se é uma mulher tirando porque quer tirar, aí não pode, fica proibido. Aí é que é louco.
Vira atentado ao pudor.
É. E engraçado, essa coisa de ficar muito relax de ficar com o peito de fora de novo, depois da infância, eu tive no teatro Oficina. Maravilhoso ver isso lá dentro, como a gente é completamente livre de fazer isso lá dentro. Mesmo. E é uma sensação muito boa, passar duas, três, seis horas de peça sem roupa. E isso ser uma coisa completamente natural. Tem muita gente que vai lá e se choca e são pessoas que não se chocam de estar numa boate de strip. Acham natural este outro tipo de nudez.
Você sempre foi uma pessoa muito engajada. Como está vendo a situação política que a gente está vivendo?
Eu fico me sentindo sabotada o tempo todo, dá vontade de nem ler mais nada do que está rolando, esperar pra ver o que vai acontecer e depois respirar de novo. Porque é uma sensação de impotência muito grande, é uma força muito grande da mídia inteira querendo defender as suas causas. É um cenário fake que se criou e que a gente começa a viver como se fosse realidade e de repente essa realidade é a maior de todas. Essa coisa do impeachment, poucos meses depois de a mulher ser eleita pela maioria das pessoas, começar este boicote e virar o que virou! É uma coisa muito surreal, apesar de ser repetição de histórias que a gente vê no mundo desde sempre. Só que estar presente dentro de uma, quando está acontecendo, é diferente de analisar de longe o que ocorre em outro país. É uma coisa muito esquizofrênica, na verdade, porque a maioria das pessoas que votou em Dilma, eu incluída, acreditou nas coisas que ela sempre defendeu, e de repente ela não só não representa mais muito disso como também não assume que representa o outro lado. A questão indígena, por exemplo, é muito absurdo como é tratada. É um partido que está junto dos latifundiários e os latifundiários odeiam este partido.
Tenho a impressão que ela, no atual momento, não está agradando a ninguém.
Ela não agrada nem quem votou nela nem quem não votou. Fica uma situação desesperadora. O Mato Grosso do Sul está em guerra e não se faz nada. Quando teve aquele movimento dos Guarani-Kaiowá ela nem recebeu eles! Uma coisa muito estranha.
Você iria para a rua defender o governo se houver impeachment?
Eu não quero de jeito nenhum que role impeachment, não pode acontecer, é surreal. Mas, ao mesmo tempo, me falta essa força de ir para a rua defender o governo porque o governo também não está fazendo as coisas que eu acredito. Esse é um problema muito grande. Vejo isso como um problema geral, vejo muita gente nessa situação: não quer que o impeachment aconteça de jeito nenhum, mas falta esse fogo pra ir para a rua porque está vendo um monte de merda que está rolando no governo.
Quem votou na Dilma apostou em uma guinada à esquerda e o que está acontecendo parece uma tentativa de agradar quem não votou nela…
…E não está agradando. Não está agradando e nem vai agradar. Então por mais que eu não queira que aconteça não tenho esse fogo para botar mais uma camiseta.
Acho que muita gente iria para a rua defender a democracia, defender o voto que deu, não exatamente para defender o governo.
Pois é, eu também teria que ir nesse carro de som aí (risos). Ia ter que ir não no “defender o governo”, mas no “defender a democracia”. Isso aí total. Mas essa que é a grande armadilha: você quer defender, mas não isso que está aí rolando. Ao mesmo tempo sou contra o impeachment com unhas e dentes.
Seu disco pode ser baixado ou é vendido também?
Dá para baixar grátis e vendo também. Trabalhamos de todas as formas. Vendo disco, livro, caderno, desenho, copo… Mas eu não sou uma empresária, não sei negociar. Faço e tento colocar junto do meu trabalho, não é uma coisa de ‘tino para negócios’.
Acho que a palavra deste século é independência, né? Artistas estão nessa, jornalistas estão nessa…
Eu gasto uma grana nestes catarses, nestes kickantes da galera… Compro livros, discos de todo mundo. Acho que é o caminho. É muito direto, você não está sendo enganado. Sabe que aquilo ali é uma coisa que você acredita. Agora o grande problema que eu acho é que tem um descompasso entre a música que é feita hoje e o modo como a mídia trata. O jornalismo de música continua agindo como era no passado. Tem essa necessidade do novo, do CD, tem uma necessidade de coisas que não são mais demandas reais de quem faz música. Tem uma mania, por exemplo, de chamar de ‘alternativo’. Chamam de alternativo porque ganha menos dinheiro, isso não diz nada sobre você. Ou ‘nova cena’, né? Eu fico rindo porque ao chegar em São Paulo zerou, né? Porque em Recife a vida inteira eu já ria muito disso lá – ria pra não chorar. E aqui zerou, virei de novo “nova cena”, “nova geração”. Estou com 41 anos e sou ‘nova geração’ para sempre… É muito engraçado. Você faz durante muitos e muitos anos e fica sendo ‘nova geração’, ‘alternativo’ para sempre.
O legal do independente é que a gente coloca nosso grãozinho anticapitalista no mundo também.
Sim, total! E eu falo sempre que não faço música querendo agradar, pensando em agradar aquele público. Mas depois que eu faço fico torcendo para que um número maior possível de gente goste daquilo. Lógico, querer que seu trampo faça sucesso no sentido bom do sucesso. De ficar tranqüila, viver do seu trampo, mas quando se está criando, é liberdade completa. Inclusive assumindo os riscos de saber que aquela coisa não vai agradar um monte de gente e, em vez de ganhar público, vai perder. Então tem sempre esse friozinho na espinha no meio: e aí, será que vai rolar? Puf. Joga. Vamos ver qual é. Este é um risco que escolhi. Se eu não fizer assim, era melhor ter feito outra coisa na vida.
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