quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O Fim.

Quando entramos no palco para o nosso último show, a noite era toda dos rapazes. Por fora, todos pareciam mais ou menos os mesmos, como nos últimos trinta anos. Por dentro era outra história.

Thurston deu dois tapinhas no ombro do nosso baixista Mark Ibold e correu para a frente do palco, seguido por Lee Ranaldo, nosso guitarrista, e em seguida Steve Shelley, nosso baterista. Achei aquele gesto tão falso, tão infantil, tão fantasioso. Thurston tem muitos conhecidos, mas, com os poucos amigos homens que tinha, nunca foi de falar coisas pessoais, e nunca foi do tipo de dar tapinhas no ombro. Foi um gesto que anunciava: Estou de volta. Estou livre. Estou solo.

Fui a última a entrar, e tive o cuidado de deixar uma distância entre Thurston e mim. Eu estava exausta e cautelosa. Steve tomou seu lugar atrás de sua bateria como um pai atrás de uma escrivaninha. O resto de nós nos armamos com nossos instrumentos, como um batalhão, um exército que só queria que o bombardeio terminasse.

Chovia torrencialmente, formando cortinas de água. A chuva sul-americana é como a chuva em qualquer outro lugar, e faz você se sentir igual também.

Dizem que quando um casamento termina as pequenas coisas que você nunca percebeu antes praticamente fazem o seu cérebro se partir ao meio. Durante toda a semana isso tinha sido verdade para mim sempre que Thurston estava por perto. Talvez ele sentisse o mesmo, ou talvez sua cabeça estivesse em outro lugar. Eu realmente não queria saber, para ser honesta. Fora do palco, ele estava sempre escrevendo no celular e andando em volta do resto de nós como um garoto culpado e obsessivo.

Depois de trinta anos, aquela noite era o último show do Sonic Youth. O Festival de Música e Artes SWU acontecia em Itu, nos arredores de São Paulo, Brasil, a oito mil quilômetros da nossa casa na Nova Inglaterra. Era um evento de três dias, transmitido pela televisão latino-americana e também pela internet, com grandes empresas patrocinadoras, como Coca-Cola e Heineken. As atrações principais eram Faith No More, Kanye West, Black Eyed Peas, Peter Gabriel, Stone Temple Pilots, Snoop Dogg, Soundgarden, gente assim. Éramos provavelmente os menores artistas da escalação. Era um lugar estranho para as coisas chegarem ao fim.

Ao longo dos anos, nós tínhamos tocado em um monte de festivais de rock. A banda os via como um mal necessário, embora o aspecto tudo ou nada de não se ter passagem de som antes de tocar fazia com que eles fossem emocionantes também. Festivais significam trailers e tendas nos bastidores, equipamentos e cabos de alimentação em todo lugar, banheiros químicos fedorentos, e algumas vezes encontrar músicos dos quais você gosta pessoalmente ou profissionalmente, mas nunca consegue ver ou encontrar ou conversar. Equipamentos podem quebrar, atrasos acontecem, o tempo é imprevisível. Há momentos em que você não consegue ouvir nada nos monitores, mas você continua e tenta fazer a música chegar a um mar de gente.

Festivais também significam um set mais curto. Esta noite nós iriamos encerrar tudo com setenta minutos de adrenalina, assim como tínhamos feito nos últimos dias em festivais no Peru, Uruguai, Buenos Aires e Chile.

O que havia de diferente das turnês e festivais anteriores era que Thurston e eu não estávamos falando um com o outro. Nós tínhamos trocado talvez quinze palavras durante toda a semana. Após vinte e sete anos de casamento, as coisas tinham desmoronado entre nós. Em agosto eu tive que pedir a ele para sair da nossa casa em Massachusetts, e ele saiu. Ele estava alugando um apartamento a um quilômetro de distância e indo e voltando sempre para Nova York.

O casal que todos acreditavam que era de ouro e normal e eternamente intacto, que deu a jovens músicos a esperança de que eles poderiam sobreviver no mundo louco do rock-and-roll, agora era apenas mais um clichê de um relacionamento maduro fracassado – uma crise de meia-idade masculina, outra mulher, uma vida dupla.

Thurston fingiu uma reação surpresa quando um técnico lhe passou sua guitarra. Aos cinquenta e três anos, ele ainda era o garoto magro e desgrenhado de Connecticut que conheci em um clube no centro de Nova York quando ele tinha vinte e dois e eu, vinte e sete anos. Ele me disse depois que tinha gostado dos meus óculos de sol com lentes que levantavam. Em seus jeans, tênis Puma antigo, e camisa branca de manga comprida para fora da calça, ele parecia um menino de dezessete anos congelado em um diorama, que não queria ser visto na companhia de sua mãe, ou de qualquer outra mulher, para falar a verdade. Ele tinha os lábios do Mick Jagger, e braços e pernas finas que parecia não saber como usar, e a cautela que você vê em homens altos que não querem dominar outras pessoas com sua altura. Seus longos cabelos castanhos camuflavam seu rosto, e ele parecia gostar assim.

Aquela semana foi como se ele tivesse voltado no tempo, apagado nossos quase trinta anos juntos. “Nossa vida” tinha voltado a ser “minha vida” para ele. Ele era um adolescente perdido em fantasias de novo, e o exibicionismo de rockstar que ele fazia no palco me irritava profundamente.

O Sonic Youth sempre tinha sido uma democracia, mas todos nós tínhamos nossos papéis também. Fui para meu lugar no centro do palco. Não tinha começado dessa forma e eu não tenho certeza de quando isso mudou. Era uma coreografia que datava de vinte anos atrás, quando o Sonic Youth assinou com a Geffen Records pela primeira vez. Foi então que soubemos que, para as grandes gravadoras, a música importa, mas muito se resume ao visual da garota. A garota ancora o palco, suga o olhar masculino, e, dependendo de quem ela é, lança seu próprio olhar de volta para a plateia.

Como a nossa música pode ser estranha e dissonante, minha presença no centro do palco também torna muito mais fácil vender a banda. Olha, é uma menina, ela está usando um vestido, e ela está com esses caras, então deve estar tudo bem. Mas não era assim que a gente funcionava como uma banda indie, por isso eu estava sempre preocupada em não ficar muito na frente.

Eu mal consegui me segurar durante a primeira música, “Brave Men Run”. Em um ponto a minha voz parecia que estava raspando contra o seu próprio fundo, e aí o fundo caiu. Era uma música velha, bem do começo, do nosso disco Bad Moon Rising. Eu escrevi a letra na Rua Eldridge, em Nova York, em um apartamento onde Thurston e eu morávamos na época. Essa música sempre me faz pensar nas mulheres pioneiras da família da minha mãe ralando para chegar na Califórnia através do Panamá, e minha avó sendo mãe solteira durante a Depressão, sem nenhuma renda de verdade. Poeticamente, ela me lembrava de como eu juntei pela primeira vez minhas influências artísticas na minha música. Eu tirei o título de uma pintura de Ed Ruscha que mostra um veleiro deslizando através de ondas e cristas espumosas.

Mas isso foi há três décadas. Esta noite Thurston e eu não olhamos um para o outro nem uma vez, e quando a música acabou, virei meus ombros para o público para que ninguém na plateia ou a banda pudesse ver meu rosto, embora isso tivesse pouco efeito. Tudo o que fazia e dizia era transmitido de uma das duas telas de vídeo de quarenta metros de altura no palco.

Por algum motivo – simpatia, ou tristeza, ou as manchetes e matérias em espanhol, português e inglês sobre a minha separação de Thurston que nos seguiram por todos os lugares que fomos naquela semana – tivemos o apoio apaixonado dos públicos da América do Sul. A multidão desta noite se espalhava na nossa frente e se misturava com as nuvens escuras ao redor do estádio – milhares de jovens encharcados de chuva, cabelos molhados, costas nuas, camisetas regata, levantavam as mãos segurando celulares e meninas nos ombros escuros dos rapazes.

O mau tempo tinha nos seguido pela América do Sul, de Lima para o Uruguai, para o Chile e agora para São Paulo – um filme-espelho cafona do estranhamento entre Thurston e eu. Os palcos dos festivais eram como versões musicais de estranhas cenas domésticas – uma sala de estar, ou uma cozinha, ou uma sala de jantar, onde o marido e a esposa se cruzam pela manhã e preparam xícaras de café para si mesmos sem nenhum se importar com o outro, ou com qualquer passado em comum.

Depois desta noite, era o fim do Sonic Youth. A nossa vida como um casal, e como uma família, já tinha acabado. Nós ainda tínhamos nosso apartamento na rua Lafayette, em Nova York – embora não por muito tempo – e eu ia continuar morando com a nossa filha, Coco, na nossa casa no oeste de Massachusetts que compramos em 1999 de uma escola local.

“Olá!” Thurston gritou alegremente para a multidão pouco antes de a banda começar com “Death Valley '69”. Duas noites antes, no Uruguai, Thurston e eu tivemos que cantar juntos outra música antiga, “Cotton Crown”. A letra era sobre amor, e mistério, e química, e sonhos, e sobre ficar juntos. Era basicamente uma ode à cidade de Nova York. No Uruguai eu estava muito chateada para cantá-la, e Thurston teve que terminar sozinho.

Mas eu ia conseguir cantar “Death Valley”. Lee, Thurston e eu, e depois só nós dois, ficamos lá. Meu futuro-ex-marido e eu enfrentamos aquela massa de brasileiros molhados pulando, nossas vozes juntas corrigindo as palavras antigas, e para mim foi uma trilha sonora em staccato de energia crua e surreal, de raiva e dor: Hit it. Hit it. Hit it. Bater. Bater. Bater. Acho que nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida.

O comunicado para a imprensa emitido um mês antes por nossa gravadora, a Matador, não dizia muito:

Os músicos Kim Gordon e Thurston Moore, casados em 1984, anunciam sua separação. O Sonic Youth, com a presença de Kim e Thurston, irá manter as datas da sua turnê sul-americana em novembro. Planos para além dessa turnê são incertos. O casal pediu respeito por sua privacidade pessoal e não pretende comentar o assunto.

“Brave Men Run”, “Death Valley '69”, “Sacred Trickster”, “Calming the Snake”, “Mote”, “Cross the Breeze”, “Schizofrenia”, “Drunken Butterfly”, “Starfield Road”, “Flower”, “Sugar Kane”, e encerrando com “Teen Age Riot”. O set list de São Paulo nos levava de volta para quando começamos, letras que Thurston e eu tínhamos escrito separados ou em conjunto, músicas que fizeram o Sonic Youth atravessar os anos oitenta e noventa, e os nossos álbuns mais recentes.

O setlist podia parecer uma compilação de nossas melhores músicas, mas foi cuidadosamente pensado. Durante o ensaio e toda aquela semana, eu me lembro de Thurston fazer questão de dizer à banda que não queria tocar esta ou aquela música do Sonic Youth. Em um certo momento eu me toquei que algumas músicas que ele queria deixar de fora eram sobre ela.

Nós podíamos ter cancelado a turnê, mas tínhamos assinado um contrato. É tocando ao vivo que as bandas ganham a vida, e todos nós tínhamos famílias e contas para pagar, e no caso de Thurston e eu, a mensalidade da faculdade de Coco para pensar. Ao mesmo tempo, eu não tinha certeza se seria bom fazer esses shows. Eu não queria que as pessoas presumissem o que quer que tivesse acontecido entre Thurston e mim, eu estava fazendo o papel da mulher que aguenta tudo do marido, oferecendo apoio a ele. Eu não estava. E fora do nosso círculo mais próximo ninguém realmente sabia o que tinha acontecido.

Antes de irmos para a América do Sul, o Sonic Youth ensaiou por uma semana em um estúdio em Nova York. De alguma forma, eu consegui passar por aquilo, com a ajuda de um Xanax, a primeira vez que tomei um durante o dia. Em vez de ficar em nosso apartamento, que agora parecia contaminado para mim, os outros concordaram em me deixar em um hotel.

Fiéis à banda, todo mundo fingiu que tudo estava igual. Eu sabia que os outros estavam muito nervosos sobre como as coisas estavam entre mim e Thurston para interagirem comigo, considerando que todos sabiam as circunstâncias da nossa separação, e até mesmo conheciam a mulher em questão. Eu não queria que ninguém se sentisse desconfortável, e além de tudo, eu tinha concordado em continuar com a turnê. Eu sabia que todos tinham suas próprias opiniões e eram solidários, mas fiquei surpresa com a forma jovial com que todos estavam agindo. Talvez todo mundo estivesse muito chocado pela irrealidade. O mesmo aconteceu na América do Sul.

[...]

Alguém me disse que o show inteiro de São Paulo está online, mas eu nunca vi e não quero ver.

Naquele último show, eu me lembro de querer saber o que o público estava notando ou pensando sobre esta pornografia crua e estranha de tensão e distância. O que eles viram e o que eu vi foram provavelmente duas coisas distintas.

Durante “Sugar Kane”, a penúltima música, um globo azul da cor do oceano apareceu no telão atrás da banda. Ele girava muito lentamente, como se exprimisse toda a indiferença do mundo em relação às suas próprias voltas e giros. Tudo passa, o mundo dizia, como o gelo derrete, e os postes de luz mudam de cor quando nenhum carro está por perto, e o mato cresce em paredes e calçadas rachadas, e as coisas nascem e depois as coisas se vão.

Quando a música terminou, Thurston agradeceu ao público. “Eu mal posso esperar para ver vocês de novo”, ele disse.

A banda fechou com “Teen Age Riot” do nosso álbum Daydream Nation. Eu cantei, ou cantei pela metade, as primeiras frases: “Spirit desire. Face me. Spirit desire. We will fall. Miss me. Don’t dismiss me."

Casamento é uma longa conversa, alguém disse uma vez, e talvez a vida de uma banda de rock também seja. Poucos minutos depois, ambos tinham acabado.

Nos bastidores, como sempre, ninguém falou nada sobre este ser o nosso último show, ou sobre qualquer coisa, na verdade. Todos nós – Lee, Steve, Mark, nossos técnicos de som – morávamos em diferentes cidades e regiões do país, de qualquer maneira. Eu estava muito triste e preocupada que eu fosse explodir em lágrimas se fosse me despedir de qualquer um, embora eu quisesse. Em seguida, cada um seguiu o seu próprio caminho, e eu voltei para casa, também.

Thurston já havia anunciado vários shows solo que começariam em janeiro. Ele iria para a Europa e, em seguida, voltaria para a Costa Leste dos Estados Unidos. Lee Ranaldo estava planejando lançar seu próprio álbum solo. Steve Shelley estava tocando direto com a banda Disappears, de Chicago. Eu faria alguns shows com um amigo músico chamado Bill Nace, e trabalharia em obras de arte para uma futura exposição em Berlim, mas ficaria principalmente em casa com a Coco, ajudando-a em seu último ano do ensino médio e no processo de candidatura para a faculdade. Na primavera, Thurston e eu tínhamos colocado à venda nosso apartamento da Rua Lafayette, em Nova York, e ele fora finalmente vendido seis meses depois. Fora isso, assim como o comunicado para a imprensa dizia, o Sonic Youth não tinha planos para o futuro.

[...]

Sempre foi difícil para mim criar um espaço emocional próprio perto de outras pessoas. É alguma coisa de infância, uma sensação de nunca me sentir protegida por meus pais ou do meu irmão mais velho, Keller, que costumava me provocar implacavelmente quando éramos pequenos – a sensação de que ninguém ali estava realmente prestando atenção. Talvez para um artista é isso o que um palco se torna: um espaço que você pode encher com o que não pode ser expresso ou obtido em qualquer outro lugar. No palco, já me disseram, eu sou opaca ou misteriosa ou enigmática ou mesmo fria. Mas mais do que qualquer uma dessas coisas, eu sou extremamente tímida e sensível, como se eu pudesse sentir todas as emoções se agitando em um ambiente. E acredite quando eu digo que, uma vez que você ultrapassa essa minha personagem, não existem mais quaisquer defesas ali.


Kim Gordon, a autora do texto - primeiro capítulo de sua autobiografia, "A Garota da Banda", recém lançada no Brasil pela Editora Rocco - é instrumentista, vocalista, artista visual, produtora musical, diretora e atriz. Ganhou notoriedade como baixista da banda pós-punk Sonic Youth, que ela formou com Thurston Moore e Lee Ranaldo em 1981. Em 1990, dirigiu o videoclipe de “Cannonball”, do Breeders, em colaboração com Spike Jonze. Anos mais tarde, lançou sua própria marca de moda, a X-Girl. Atuou no filme Últimos dias, de Gus Van Sant, e participou de episódios das séries Gossip Girl e Girls. Em 2012, após a dissolução do Sonic Youth, Kim formou o Body/Head com seu amigo Bill Nace. Em junho de 2015, a 303 Gallery, de Nova York, inaugurou uma mostra com seu trabalho.

A garota da banda

Autor: Kim Gordon
ISBN: 978-85-68432-35-8
Assuntos: BIOGRAFIA/MEMÓRIAS/DIÁRIOS, MÚSICA

Tradução: Alexandre Matias E Mariana Moreira Matias
Preço: R$ 34,50

15x22 cm
288 pp. |

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