Thurston deu dois tapinhas no ombro do nosso baixista Mark
Ibold e correu para a frente do palco, seguido por Lee Ranaldo, nosso
guitarrista, e em seguida Steve Shelley, nosso baterista. Achei aquele gesto
tão falso, tão infantil, tão fantasioso. Thurston tem muitos conhecidos, mas,
com os poucos amigos homens que tinha, nunca foi de falar coisas pessoais, e
nunca foi do tipo de dar tapinhas no ombro. Foi um gesto que anunciava: Estou
de volta. Estou livre. Estou solo.
Fui a última a entrar, e tive o cuidado de deixar uma
distância entre Thurston e mim. Eu estava exausta e cautelosa. Steve tomou seu
lugar atrás de sua bateria como um pai atrás de uma escrivaninha. O resto de
nós nos armamos com nossos instrumentos, como um batalhão, um exército que só
queria que o bombardeio terminasse.
Dizem que quando um casamento termina as pequenas coisas que
você nunca percebeu antes praticamente fazem o seu cérebro se partir ao meio.
Durante toda a semana isso tinha sido verdade para mim sempre que Thurston
estava por perto. Talvez ele sentisse o mesmo, ou talvez sua cabeça estivesse
em outro lugar. Eu realmente não queria saber, para ser honesta. Fora do palco,
ele estava sempre escrevendo no celular e andando em volta do resto de nós como
um garoto culpado e obsessivo.
Depois de trinta anos, aquela noite era o último show do
Sonic Youth. O Festival de Música e Artes SWU acontecia em Itu, nos arredores
de São Paulo, Brasil, a oito mil quilômetros da nossa casa na Nova Inglaterra.
Era um evento de três dias, transmitido pela televisão latino-americana e
também pela internet, com grandes empresas patrocinadoras, como Coca-Cola e
Heineken. As atrações principais eram Faith No More, Kanye West, Black Eyed
Peas, Peter Gabriel, Stone Temple Pilots, Snoop Dogg, Soundgarden, gente assim.
Éramos provavelmente os menores artistas da escalação. Era um lugar estranho
para as coisas chegarem ao fim.
Ao longo dos anos, nós tínhamos tocado em um monte de
festivais de rock. A banda os via como um mal necessário, embora o aspecto tudo
ou nada de não se ter passagem de som antes de tocar fazia com que eles fossem
emocionantes também. Festivais significam trailers e tendas nos bastidores,
equipamentos e cabos de alimentação em todo lugar, banheiros químicos
fedorentos, e algumas vezes encontrar músicos dos quais você gosta pessoalmente
ou profissionalmente, mas nunca consegue ver ou encontrar ou conversar.
Equipamentos podem quebrar, atrasos acontecem, o tempo é imprevisível. Há
momentos em que você não consegue ouvir nada nos monitores, mas você continua e
tenta fazer a música chegar a um mar de gente.
Festivais também significam um set mais curto. Esta noite
nós iriamos encerrar tudo com setenta minutos de adrenalina, assim como
tínhamos feito nos últimos dias em festivais no Peru, Uruguai, Buenos Aires e
Chile.
O que havia de diferente das turnês e festivais anteriores
era que Thurston e eu não estávamos falando um com o outro. Nós tínhamos
trocado talvez quinze palavras durante toda a semana. Após vinte e sete anos de
casamento, as coisas tinham desmoronado entre nós. Em agosto eu tive que pedir
a ele para sair da nossa casa em Massachusetts, e ele saiu. Ele estava alugando
um apartamento a um quilômetro de distância e indo e voltando sempre para Nova
York.
O casal que todos acreditavam que era de ouro e normal e
eternamente intacto, que deu a jovens músicos a esperança de que eles poderiam
sobreviver no mundo louco do rock-and-roll, agora era apenas mais um clichê de
um relacionamento maduro fracassado – uma crise de meia-idade masculina, outra
mulher, uma vida dupla.
Thurston fingiu uma reação surpresa quando um técnico lhe
passou sua guitarra. Aos cinquenta e três anos, ele ainda era o garoto magro e
desgrenhado de Connecticut que conheci em um clube no centro de Nova York
quando ele tinha vinte e dois e eu, vinte e sete anos. Ele me disse depois que
tinha gostado dos meus óculos de sol com lentes que levantavam. Em seus jeans,
tênis Puma antigo, e camisa branca de manga comprida para fora da calça, ele
parecia um menino de dezessete anos congelado em um diorama, que não queria ser
visto na companhia de sua mãe, ou de qualquer outra mulher, para falar a
verdade. Ele tinha os lábios do Mick Jagger, e braços e pernas finas que
parecia não saber como usar, e a cautela que você vê em homens altos que não
querem dominar outras pessoas com sua altura. Seus longos cabelos castanhos
camuflavam seu rosto, e ele parecia gostar assim.
Aquela semana foi como se ele tivesse voltado no tempo,
apagado nossos quase trinta anos juntos. “Nossa vida” tinha voltado a ser
“minha vida” para ele. Ele era um adolescente perdido em fantasias de novo, e o
exibicionismo de rockstar que ele fazia no palco me irritava profundamente.
O Sonic Youth sempre tinha sido uma democracia, mas todos
nós tínhamos nossos papéis também. Fui para meu lugar no centro do palco. Não
tinha começado dessa forma e eu não tenho certeza de quando isso mudou. Era uma
coreografia que datava de vinte anos atrás, quando o Sonic Youth assinou com a
Geffen Records pela primeira vez. Foi então que soubemos que, para as grandes
gravadoras, a música importa, mas muito se resume ao visual da garota. A garota
ancora o palco, suga o olhar masculino, e, dependendo de quem ela é, lança seu
próprio olhar de volta para a plateia.
Como a nossa música pode ser estranha e dissonante, minha
presença no centro do palco também torna muito mais fácil vender a banda. Olha,
é uma menina, ela está usando um vestido, e ela está com esses caras, então
deve estar tudo bem. Mas não era assim que a gente funcionava como uma banda
indie, por isso eu estava sempre preocupada em não ficar muito na frente.
Eu mal consegui me segurar durante a primeira música, “Brave
Men Run”. Em um ponto a minha voz parecia que estava raspando contra o seu
próprio fundo, e aí o fundo caiu. Era uma música velha, bem do começo, do nosso
disco Bad Moon Rising. Eu escrevi a letra na Rua Eldridge, em Nova York, em um
apartamento onde Thurston e eu morávamos na época. Essa música sempre me faz
pensar nas mulheres pioneiras da família da minha mãe ralando para chegar na
Califórnia através do Panamá, e minha avó sendo mãe solteira durante a
Depressão, sem nenhuma renda de verdade. Poeticamente, ela me lembrava de como
eu juntei pela primeira vez minhas influências artísticas na minha música. Eu
tirei o título de uma pintura de Ed Ruscha que mostra um veleiro deslizando
através de ondas e cristas espumosas.
Mas isso foi há três décadas. Esta noite Thurston e eu não
olhamos um para o outro nem uma vez, e quando a música acabou, virei meus
ombros para o público para que ninguém na plateia ou a banda pudesse ver meu
rosto, embora isso tivesse pouco efeito. Tudo o que fazia e dizia era
transmitido de uma das duas telas de vídeo de quarenta metros de altura no
palco.
Por algum motivo – simpatia, ou tristeza, ou as manchetes e
matérias em espanhol, português e inglês sobre a minha separação de Thurston
que nos seguiram por todos os lugares que fomos naquela semana – tivemos o
apoio apaixonado dos públicos da América do Sul. A multidão desta noite se
espalhava na nossa frente e se misturava com as nuvens escuras ao redor do
estádio – milhares de jovens encharcados de chuva, cabelos molhados, costas
nuas, camisetas regata, levantavam as mãos segurando celulares e meninas nos
ombros escuros dos rapazes.
O mau tempo tinha nos seguido pela América do Sul, de Lima
para o Uruguai, para o Chile e agora para São Paulo – um filme-espelho cafona
do estranhamento entre Thurston e eu. Os palcos dos festivais eram como versões
musicais de estranhas cenas domésticas – uma sala de estar, ou uma cozinha, ou
uma sala de jantar, onde o marido e a esposa se cruzam pela manhã e preparam
xícaras de café para si mesmos sem nenhum se importar com o outro, ou com
qualquer passado em comum.
Depois desta noite, era o fim do Sonic Youth. A nossa vida
como um casal, e como uma família, já tinha acabado. Nós ainda tínhamos nosso
apartamento na rua Lafayette, em Nova York – embora não por muito tempo – e eu
ia continuar morando com a nossa filha, Coco, na nossa casa no oeste de
Massachusetts que compramos em 1999 de uma escola local.
“Olá!” Thurston gritou alegremente para a multidão pouco
antes de a banda começar com “Death Valley '69”. Duas noites antes, no Uruguai,
Thurston e eu tivemos que cantar juntos outra música antiga, “Cotton Crown”. A
letra era sobre amor, e mistério, e química, e sonhos, e sobre ficar juntos. Era
basicamente uma ode à cidade de Nova York. No Uruguai eu estava muito chateada
para cantá-la, e Thurston teve que terminar sozinho.
Mas eu ia conseguir cantar “Death Valley”. Lee, Thurston e
eu, e depois só nós dois, ficamos lá. Meu futuro-ex-marido e eu enfrentamos
aquela massa de brasileiros molhados pulando, nossas vozes juntas corrigindo as
palavras antigas, e para mim foi uma trilha sonora em staccato de energia crua
e surreal, de raiva e dor: Hit it. Hit it. Hit it. Bater. Bater. Bater. Acho
que nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida.
O comunicado para a imprensa emitido um mês antes por nossa
gravadora, a Matador, não dizia muito:
Os músicos Kim Gordon e Thurston Moore, casados em 1984,
anunciam sua separação. O Sonic Youth, com a presença de Kim e Thurston, irá
manter as datas da sua turnê sul-americana em novembro. Planos para além dessa turnê
são incertos. O casal pediu respeito por sua privacidade pessoal e não pretende
comentar o assunto.
“Brave Men Run”, “Death Valley '69”, “Sacred Trickster”,
“Calming the Snake”, “Mote”, “Cross the Breeze”, “Schizofrenia”, “Drunken
Butterfly”, “Starfield Road”, “Flower”, “Sugar Kane”, e encerrando com “Teen
Age Riot”. O set list de São Paulo nos levava de volta para quando começamos,
letras que Thurston e eu tínhamos escrito separados ou em conjunto, músicas que
fizeram o Sonic Youth atravessar os anos oitenta e noventa, e os nossos álbuns
mais recentes.
O setlist podia parecer uma compilação de nossas melhores
músicas, mas foi cuidadosamente pensado. Durante o ensaio e toda aquela semana,
eu me lembro de Thurston fazer questão de dizer à banda que não queria tocar
esta ou aquela música do Sonic Youth. Em um certo momento eu me toquei que
algumas músicas que ele queria deixar de fora eram sobre ela.
Nós podíamos ter cancelado a turnê, mas tínhamos assinado um
contrato. É tocando ao vivo que as bandas ganham a vida, e todos nós tínhamos
famílias e contas para pagar, e no caso de Thurston e eu, a mensalidade da
faculdade de Coco para pensar. Ao mesmo tempo, eu não tinha certeza se seria
bom fazer esses shows. Eu não queria que as pessoas presumissem o que quer que
tivesse acontecido entre Thurston e mim, eu estava fazendo o papel da mulher
que aguenta tudo do marido, oferecendo apoio a ele. Eu não estava. E fora do
nosso círculo mais próximo ninguém realmente sabia o que tinha acontecido.
Antes de irmos para a América do Sul, o Sonic Youth ensaiou
por uma semana em um estúdio em Nova York. De alguma forma, eu consegui passar
por aquilo, com a ajuda de um Xanax, a primeira vez que tomei um durante o dia.
Em vez de ficar em nosso apartamento, que agora parecia contaminado para mim,
os outros concordaram em me deixar em um hotel.
Fiéis à banda, todo mundo fingiu que tudo estava igual. Eu
sabia que os outros estavam muito nervosos sobre como as coisas estavam entre
mim e Thurston para interagirem comigo, considerando que todos sabiam as
circunstâncias da nossa separação, e até mesmo conheciam a mulher em questão.
Eu não queria que ninguém se sentisse desconfortável, e além de tudo, eu tinha
concordado em continuar com a turnê. Eu sabia que todos tinham suas próprias
opiniões e eram solidários, mas fiquei surpresa com a forma jovial com que
todos estavam agindo. Talvez todo mundo estivesse muito chocado pela
irrealidade. O mesmo aconteceu na América do Sul.
[...]
Alguém me disse que o show inteiro de São Paulo está online,
mas eu nunca vi e não quero ver.
Naquele último show, eu me lembro de querer saber o que o
público estava notando ou pensando sobre esta pornografia crua e estranha de
tensão e distância. O que eles viram e o que eu vi foram provavelmente duas
coisas distintas.
Durante “Sugar Kane”, a penúltima música, um globo azul da
cor do oceano apareceu no telão atrás da banda. Ele girava muito lentamente,
como se exprimisse toda a indiferença do mundo em relação às suas próprias
voltas e giros. Tudo passa, o mundo dizia, como o gelo derrete, e os postes de
luz mudam de cor quando nenhum carro está por perto, e o mato cresce em paredes
e calçadas rachadas, e as coisas nascem e depois as coisas se vão.
Quando a música terminou, Thurston agradeceu ao público. “Eu
mal posso esperar para ver vocês de novo”, ele disse.
A banda fechou com “Teen Age Riot” do nosso álbum Daydream
Nation. Eu cantei, ou cantei pela metade, as primeiras frases: “Spirit desire.
Face me. Spirit desire. We will fall. Miss me. Don’t dismiss me."
Casamento é uma longa conversa, alguém disse uma vez, e
talvez a vida de uma banda de rock também seja. Poucos minutos depois, ambos
tinham acabado.
Nos bastidores, como sempre, ninguém falou nada sobre este
ser o nosso último show, ou sobre qualquer coisa, na verdade. Todos nós – Lee,
Steve, Mark, nossos técnicos de som – morávamos em diferentes cidades e regiões
do país, de qualquer maneira. Eu estava muito triste e preocupada que eu fosse
explodir em lágrimas se fosse me despedir de qualquer um, embora eu quisesse.
Em seguida, cada um seguiu o seu próprio caminho, e eu voltei para casa,
também.
Thurston já havia anunciado vários shows solo que começariam
em janeiro. Ele iria para a Europa e, em seguida, voltaria para a Costa Leste
dos Estados Unidos. Lee Ranaldo estava planejando lançar seu próprio álbum
solo. Steve Shelley estava tocando direto com a banda Disappears, de Chicago.
Eu faria alguns shows com um amigo músico chamado Bill Nace, e trabalharia em
obras de arte para uma futura exposição em Berlim, mas ficaria principalmente
em casa com a Coco, ajudando-a em seu último ano do ensino médio e no processo
de candidatura para a faculdade. Na primavera, Thurston e eu tínhamos colocado
à venda nosso apartamento da Rua Lafayette, em Nova York, e ele fora finalmente
vendido seis meses depois. Fora isso, assim como o comunicado para a imprensa
dizia, o Sonic Youth não tinha planos para o futuro.
[...]
Sempre foi difícil para mim criar um espaço emocional
próprio perto de outras pessoas. É alguma coisa de infância, uma sensação de
nunca me sentir protegida por meus pais ou do meu irmão mais velho, Keller, que
costumava me provocar implacavelmente quando éramos pequenos – a sensação de
que ninguém ali estava realmente prestando atenção. Talvez para um artista é
isso o que um palco se torna: um espaço que você pode encher com o que não pode
ser expresso ou obtido em qualquer outro lugar. No palco, já me disseram, eu
sou opaca ou misteriosa ou enigmática ou mesmo fria. Mas mais do que qualquer
uma dessas coisas, eu sou extremamente tímida e sensível, como se eu pudesse
sentir todas as emoções se agitando em um ambiente. E acredite quando eu digo
que, uma vez que você ultrapassa essa minha personagem, não existem mais
quaisquer defesas ali.
Kim Gordon, a autora do texto - primeiro capítulo de sua autobiografia, "A Garota da Banda", recém lançada no Brasil pela Editora Rocco - é instrumentista, vocalista, artista visual,
produtora musical, diretora e atriz. Ganhou notoriedade como baixista da banda
pós-punk Sonic Youth, que ela formou com Thurston Moore e Lee Ranaldo em 1981.
Em 1990, dirigiu o videoclipe de “Cannonball”, do Breeders, em colaboração com
Spike Jonze. Anos mais tarde, lançou sua própria marca de moda, a X-Girl. Atuou
no filme Últimos dias, de Gus Van Sant, e participou de episódios das séries
Gossip Girl e Girls. Em 2012, após a dissolução do Sonic Youth, Kim formou o
Body/Head com seu amigo Bill Nace. Em junho de 2015, a 303 Gallery, de Nova
York, inaugurou uma mostra com seu trabalho.
A garota da banda
Autor: Kim GordonISBN: 978-85-68432-35-8
Assuntos: BIOGRAFIA/MEMÓRIAS/DIÁRIOS, MÚSICA
Tradução: Alexandre Matias E Mariana Moreira Matias
Preço: R$ 34,5015x22 cm
288 pp. |
#
Nenhum comentário:
Postar um comentário