segunda-feira, 30 de março de 2009

Hard Times



O show

por Adelvan Kenobi.

Demorou, mas o duo sergipano The Baggios, que despontou a alguns (poucos) anos como uma das mais gratas revelações do cenário (blues)rock sergipano, lançou seu segundo CD-Demo. Demorou porque, segundo me falou o vocalista/guitarrista Julio numa conversa informal, eles vinham tentando conseguir apoio para um lançamento em grande estilo, de proporções maiores – um desejo mais do que compreensível para qualquer banda que leve a sério o que faz e queira, portanto, levar ao maior número possível de pessoas o resultado de seus esforços. Não conseguiram, por conta das dificuldades já amplamente discutidas pelas quais passam aqueles que fazem um trabalho autoral sem apelar para recursos estéticos apelativos ao gosto popular ou à simpatia do poder público tem. Mas felizmente ainda existe o bom e velho cenário alternativo, regido pela regra do “faça você mesmo”, que é custoso e cansativo, mas muitas vezes é a única forma das coisas acontecerem e, por conta disso, sempre confere uma aura de heroísmo e credibilidade a quem por ele envereda. E aqui em Aracaju, nos últimos tempos, a casa para quem escolhe esse rumo (seja por falta de alternativa ou por opção) se chama Capitão Cook.

O Capitão Cook é uma espécie de pub instalado às margens do encontro do Rio Sergipe com o mar, na Coroa do Meio, já há bastante tempo. Sempre foi uma referencia para quem busca uma programação alternativa na noite da cidade. E sempre abriu espaço para a música de qualidade na capital sergipana. Nos últimos anos, tem sido uma espécie de “point” do “indie rock”, a melhor ( e em muitos casos única ) alternativa para a realização de shows de pequeno porte. Por conta de sua estrutura e localização, não se presta a eventos mais barulhentos, de Heavy Metal ou hardcore (muito embora venha timidamente se aventurando por esta seara ), mas para todos os outros é “quase” uma mão na luva. O “quase” aí fica por conta da teimosia do proprietário em manter o espaço dividido em dois ambientes, um externo, mais ventilado, e outro interno, onde as bandas se apresentam, que acaba ficando muito apertado e abafado em dias de maior lotação, causando desconforto e em muitos casos forçando a audiência a tentar assistir o show da parte de fora, pela janela. Problema este agravado pela igual insistência de manter mesas na parte interna, o que limita ainda mais o espaço disponível para a circulação. Mas enfim, problemas à parte (e onde não existem problemas, não é mesmo ?) é um bom local para shows como os que vimos na noite de 21 de março de 2009, quando o The Baggios lançou seu EP “Hard Times” com a presença da Máquina Blues e do Anéis de Vento.

O show estava marcado para as 22:00, mas acabei chegando depois das 23:00 (amigAs, aquelas mesmo, do sexo feminino, demoram a se arrumar, isso é universal). A impressionante aglomeração de pessoas e carros “na porta do bar” (não por acaso o título de uma das faixas do primeiro EP da The Baggios) era promissora. Como de costume, especialmente para seres reclusos como eu, acabo encontrando nessas ocasiões amigos que pouco vejo no dia-a-dia, então a primeira parte de um show, para mim e para muitos, consiste em ficar justamente “na porta do bar” jogando conversa fora e/ou colocando os assuntos em dia. Isso gera um grande problema e uma variação do célebre “segredo de Tostines”- será que os shows demoram a começar porque as pessoas demoram a entrar ou as pessoas demoram a entrar porque os shows demoram pra começar ? O fato é que, pelo menos no meu caso, não há como evitar, a primeira parte da noite sempre acontecerá “na porta do bar”. Nesta noite em especial me demorei bastante por lá, pois não ouvia som vindo do interior do recinto, o que me levou a crer que o evento ainda não havia começado. Só mais tarde, ao estranhar o passar das horas e começar a indagar o motivo de tão grande atraso, fui descobrir que a primeira banda, Anéis de Vento, já havia tocado. Não ouvimos de fora porque a Policia Ambiental havia feito uma batida horas antes e obrigado a organização a reduzir o volume do som. Reclama-se muito disso, mas a verdade é que estabelecimentos que se proponham a receber shows musicais deveriam se preparar melhor, providenciando um isolamento acústico adequado para que o barulho não incomode o justo descanso de quem reside nas imediações. Infelizmente nem todos possuem renda suficiente para bancar este tipo de gasto, o que gera mais este impasse. Em todo caso, foi uma pena, pois Anéis de Vento já existi há algum tempo, parece ser uma banda interessante e eu acabei perdendo mais uma chance de conferi-los ao vivo.

Entrei com a apresentação da Maquina Blues já em andamento. Mais um bom show – não o melhor show que já vi deles, mas ainda assim um bom show. Ao lado do Urublues, de Itabaiana, mantêm acesa a chama do bom e velho estilo que deu origem ao rock and roll com muita competência e ainda por cima contando, nos vocais, com o carisma e as perfomances sempre surpreendentes de Silvio Campos, legendário baluarte da cena alternativa sergipana, fundador da mais antiga banda de rock ainda em ativa no estado, a Karne Krua. Silvio sempre teve o sonho de ter uma banda de blues, e conseguiu finalmente realiza-lo há alguns anos quando encontrou-se com o guitarrista Melcíades e, com a adição de Adriano na bateria e Paulo no baixo, fundaram “A Maquina”. É uma grande banda, com composições próprias de bastante qualidade, cantadas em bom português, e sempre enriquecem seus shows com covers espertos adaptados ao seu estilo peculiar de tocar. O vocalista Silvio, por sua vez, tem grande personalidade, o que confere à banda uma identidade própria bastante característica, sempre brincando com a platéia e fazendo insinuações maliciosas e de duplo sentido – quando não bem diretas e sinceras mesmo, “na cara”. Um show um tanto quanto curto e contido, pelo avançado da hora, mas mesmo assim muito bom.

The Baggios subiu ao palco (aliás, ao tapete, não há palco no Capitão Cook, o que por um lado é bom, deixa a banda no mesmo nível do publico e dá um ar de intimidade à apresentação, mas por outro dificulta a visão dos que ficam para trás ou, no caso, para fora, na área externa, tentando acompanhar tudo pelas janelas) já com a madrugada avançada. E dá-lhe esporros de guitarra com o volume no talo (e foda-se a vizinhança, o pessoal da policia ambiental já deve estar em casa dormindo mesmo) e a já tradicional competência da dupla Julio Dodges e Rafael “perninha”, que espanca a bateria com força sem esquecer a técnica. Nestes momentos, com uma banda como esta no palco e em pleno “gás”, não consigo pensar em outro adjetivo além de “perfeito” para descrevê-los. Penso também em quantos talentos existem por aqui que precisavam ser descoberto pelos próprios sergipanos, pelo menos para aquele cidadão médio que vê o mundo pelo filtro limitado e, por isso mesmo, distorcido, da grande mídia. Começaram o show tocando na ordem as musicas do recém-lançado EP, que é muito bom (leia abaixo critica do disco por Rafael Jr.). Apenas a faixa “Oh, cigana”, que no disco conta com o auxilio luxuoso de metais e sopros, ficou com sua riqueza de arranjos um tanto quanto comprometida ao vivo, mas na hora o que conta mesmo é o feeling e a competência da banda para se adaptar a cada situação, e isso os Baggios têm de sobra. Um dado interessante a se notar era que o vocalista/guitarrista Julio estava mais falante do que o normal, provavelmente um reflexo da quantidade de aditivos etílicos que o mesmo sorvia mesmo durante o show, aditivos estes vindos de uma garrafinha estrategicamente sacada de quando em quando do bolso de sua calça. Mas quem tem talento sabe o que faz mesmo “aditivado” além da conta (força de expressão, já que estou mais para acreditar na frase celebrizada pelos Doors de que “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”), e o teor alcoólico não comprometeu, de forma alguma, a qualidade da apresentação – muito pelo contrario, talvez tenha até contribuído para enriquecê-la com um pouco mais de improviso e experimentação, além de alguns discursos um tanto quanto prolongados porem necessários e pertinentes, falando sobre as dificuldades da banda em manter-se viva (os tais “Hard times”) num cenário tão adverso e a vontade de explorar novas fronteiras, solicitando apoio de todos os presentes para uma série de apresentações que eles pretendem fazer com o objetivo de viabilizar uma turnê nordestina ao lado da Daysleepers. Os improvisos, por seu lado, foram sempre executados com qualidade e bom senso, um diferencial proporcionado pelo talento presente em questão e que permeou toda a apresentação. Apresentação esta, anunciou Julio a certa altura, presenciada por sua mãe, que foi saudada aos gritos de “julica” – uma variação do apelido do vocalista, e encerrada aos som de verdadeiros clássicos, as musicas que todos já estão acostumados a ouvir e ainda assim não cansam de ovacionar e cantar junto, pérolas blues/rock garageiras como “Baggio sedado” (estendida e com os arranjos modificados), “Pisa macio”, “pegando uma punga”e “na porta do par”, entre outras.

O ponto fraco da noite foi a pequena quantidade de publico DENTRO do recinto, contrastando com a verdadeira multidão de pessoas e carros estacionados lá fora. É simplesmente inacreditável que tanta gente se disponha a sair de casa pra ficar APENAS conversando e ouvindo musica NO SOM DE SEUS CARROS na porta do local onde um show tão importante e bacana como aquele acontecia. A velha desculpa esfarrapada da falta de grana aqui não cola, pela já citada quantidade de carros estacionados. Alguma grana essa gente tem, apenas têm outras prioridades para além do aspecto cultural da noitada, o que não é nenhum pecado também, afinal ninguém é forçado a querer gastar seus suados 10 reais para adquirir ingresso + um CD bacaníssimo de uma banda sensacional (especialmente quando praticamente todos ali devem ter acesso ao download via internet). Falta-lhes, na maioria das vezes, apenas honestidade para admitir isso.

O disco.

por Rafael Jr

Publicado originalmente no site ladonorte

The Baggios é uma dupla sergipana. Formada em 2004, já me impressionou no primeiro EP, que derramava blues por todas as faixas mas era também moderno, cosmopolita e ainda “roots”, viril, garageiro, tosco. E exalava sergipanidade, algo difícil de identificar numa banda essencialmente rock.

Tudo ao mesmo tempo agora. Fiquei intrigado. E curioso: os caras não tinham nem 20 anos! O nome, uma homenagem a um conterrâneo andarilho e hippie que vagava pelas ruas de São Cristóvão nas décadas de 70 e 80 com um violão e total desapego a bens materiais. Um sonhador que “não deu certo” na música, mas inspirou rockers locais como Julico e Lucas, o primeiro baterista.

Julio Andrade saiu da pacata cidade histórica de São Cristóvão com um punhado de canções estradeiras, falando de coisas simples do dia a dia, do tédio, de relacionamentos. Encontrou em Elvis Boamorte um parceiro “firmeza” para o primeiro disco e shows com público maior. Atualmente, Gabriel Carvalho, 17 anos, aracajuano do Augusto Franco, segura tudo na sólida muralha rítmica necessária para shows explosivos e com volume “no talo”. No caldeirão sonoro muito blues e southern rock, com pitadas de folk, soul music e influências de Raul Seixas, Hendrix, Stones, de bluesmans como Sonny Boy Williamson e Robert Johnson e de grupos mais recentes como Jon Spencer Blues Explosion, White Stripes e Black Keys. Os shows têm boa vibe, energia juvenil de sobra, feeling blues e rock envenenado, de pub, de garagem, de moquifo enfumaçado. De vez em quando o som da dupla ganha uma turbinada com os órgãos vintage de Léo Airplane, produtor dos dois discos deles e de várias bandas underground sergipanas, ou da gaita do camarada Mateus Santana. Mas a guitarra distorcida de Julico comanda o combo blues-rock, está no centro, é o foco. O cara é bom, se dedica ao instrumento e o domina ferozmente com ou sem slide, mas também se mostra mais delicado no violão folk e em dedilhados envolventes baseados na velha escala pentatônica do blues. Preenche espaços, sabe fazer a música andar e respirar. Bota a moçada pra cantar junto. Tem as manhas.

Aí finalmente me chega às mãos “Hard Times”, o novo disco. São 8 faixas que não apenas repetem o êxito sonoro e a originalidade do grupo. Vão além. “No Matagal” abre sem muitas novidades, é um bom rock stoniano e só. Já “Supersonic Explosion” traz novidades ao som do The Baggios, com guitarras surf que emulam The Ventures e Dick Dale. A faixa é instrumental e cairia bem na trilha sonora de um filme do Tarantino. Tem cacife e nível pra isso. “Oh Cigana” se destaca e também navega em novos mares, com uma pegada “spanish” que lembra uma jam session de Carlos Santana com o Led Zeppelin, um mix rock-caribenho acentuado pelo bom tema de trompete. “Trem da Nostalgia” é mais psicodélica e contemplativa, enquanto “Candangos Bar” soa como singles do The Who e Kinks em início de carreira, com gaita e levada r&b. “Black Man Song” parece o rockabilly com influências de jazz do Stray Cats, com bons licks e sonoridade de guitarra semi-acústica criando bons climas. É como se o grupo de Brian Setzer fizesse um cover de Gene Vincent & The Blue Caps, ou de um standard do jazz. “No Meu Bem-Estar” repete riffs, melodias e idéias do primeiro disco, mas na metade caminha pra outro lado mais funky-groove a la Jon Spencer. Funcionou bem. E “Hard Times” fecha o disquinho fazendo jus às influências de Robert Johnson e Son House, num blues acústico e clássico, nu e cru.

The Baggios é sem dúvida a banda mais promissora da nova geração do rock sergipano. É um grupo sem frescuras e bem resolvido, prático, barato (cabe num fusca mesmo com equipamento completo!), atual e atemporal, porque seu discurso é autêntico e universal, e sua base sonora já passou pela prova do tempo através da história da música contemporânea, a partir do século XX. O blues é resgatado e reinventado a todo momento, em toda parte do mundo. Aqui, tomou nova forma a partir dessa dupla sergipana. O público local é numeroso e fiel. Goiânia e Salvador já provaram desse blues sergipano, a Revista 100% Skate também. Agora eles estão mais que prontos para invadir festivais independentes, mídia especializada e demais palcos espalhados por aí! Eu boto fé.

Rafael Jr é baterista das bandas Snooze e Maria Scombona, e graduando em Música/Licenciatura pela Universidade Federal de Sergipe.

Fotos da banda por Victor Balde.

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