22/04/2009 - 14h37
Saiba como age o esquadrão caça-pirata da internet brasileira
DIÓGENES MUNIZ
editor de Informática da Folha Online
Toda segunda-feira, às 10h, um grupo com meia dúzia de pessoas se encontra em uma sala do edifício Triunfo, na região da av. Paulista, para definir as metas de uma cruzada que parece estar cada vez mais longe de um desfecho vitorioso: o combate à pirataria. Com café e roscas à disposição no centro de uma mesa retangular, começa mais uma reunião da APCM (Associação Antipirataria de Cinema e Música), entidade que defende os interesses dos grandes estúdios e gravadoras junto às autoridades policiais e judiciais do país e que, por conta disso, tornou-se a maior vilã da internet brasileira desde a modelo Daniella Cicarelli, responsável por tirar do ar o YouTube em 2007.
Funcionários dos setores de comunicação, "denúncias", jurídico, financeiro, operacional e segurança on-line debatem a pauta do mês sob a sabatina do diretor-executivo, Antonio Borges Filho. Os tópicos são expostos rapidamente. Em 15 minutos, tudo já foi discutido: distribuição de material de treinamento para polícia, destruição de mídias piratas, divulgação de apreensões para a imprensa, contatos com delegacias, cerco às jukebox ilegais e o fim da comunidade "Discografias", do Orkut.
"[Março] foi um mês bastante produtivo", avalia o analista de segurança da informação Bruno Tarelov, responsável pelo combate à pirataria on-line na entidade. Borges Filho, um delegado da Polícia Federal aposentado, 58 anos, sotaque de Juiz de Fora (MG), concorda com o subordinado. Diz estar de bom humor e arrisca uma piada: "Sabe como estão chamando a APCM agora? Associação dos Parasitas do Cinema e da Música." Todos riem.
"É bom", retoma Borges, "isso mostra que estamos fazendo nosso trabalho direito. Estamos conseguindo incomodar bastante gente". No primeiro trimestre deste ano, a APCM incomodou mais de 1 milhão de pessoas após a comunidade "Discografias", a maior do Orkut para troca de músicas, sair do ar. Em fevereiro, outros milhares se revoltaram com o fechamento de sites que distribuíam legendas de filmes e séries na rede. Em resposta, surgiram na web um abaixo-assinado (27 mil adesões), um fórum denominado "Odeio a APCM" (15 mil integrantes) e um filhote da comunidade abatida ("Discografias - O Retorno!", com cerca de 180 mil membros).
A reunião termina, as risadas continuam. O alvo agora é um protesto virtual ocorrido em 1º de abril, no qual internautas trocaram de forma simultânea as fotos de seus perfis no Orkut pelo símbolo da associação - marcado por uma tarja vermelha.
Fora da sala, cinco pôsteres enfeitam as paredes do QG da associação: NXZero, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte e Metallica. O quinto cartaz não mostra uma banda. "SEQUESTRO - Comprando DVD pirata você financia o crime organizado", lê-se, num quadro em que um garoto loiro é arrastado pelos braços para dentro de um parque escuro.
APCM, Rota, Deic
A "Discografias" parou de funcionar em março deste ano. Sem sair do anonimato, os responsáveis pelo gerenciamento da comunidade alegaram terem sido ameaçados pela APCM --que nega ter feito "ameaças", embora confirme notificações diárias ao Google acerca do conteúdo do fórum. Em fevereiro, o órgão pediu (e conseguiu, junto a um datacenter) a retirada do ar dos sites Legendas.TV, legendando.com.br e insubs.com, todos responsáveis por disponibilizar traduções de seriados estrangeiros para o público brasileiro. Em abril, foi a vez do SeriesBR rodar -a página fornecia downloads de seriados.
Na semana em que a APCM derrubou os sites de legendas, no começo de fevereiro, a própria página da associação virou um flanco dessa batalha, sendo invadida ("Viva os downloads!" comemoravam os hackers na home-page) e tirada do ar logo em seguida. Três dias depois, o endereço APCM.org.br atingia 4,5 mil visitas em apenas 24 horas --a média mensal era de 2,5 mil.
Após esse episódio, a empresa destacou uma pessoa para cuidar especificamente da segurança de seu site."Está bem mais reforçado. Com monitoramento mais constante, vai ser difícil sua derrubada", desafia Borges. Com a reclamação dos funcionários de que suas caixas de e-mail estão entupidas com recados de protesto, o órgão também planeja mudar seus domínios de correios eletrônicos, o que já aconteceu com o telefone da entidade. Mesmo sem divulgá-lo, receberam ligações enfurecidas.
Com aparato concentrado principalmente em São Paulo, mas atuação em todo território nacional, a APCM possui 30 funcionários. Entre seus agentes estão ex-policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e do Deic (Departamento de Investigações sobre Crime Organizado). Eles são responsáveis pelo serviço de inteligência, ou seja, procuram nas ruas e na web casos de violação aos direitos autorais. Ao todo, são quatro agentes em São Paulo; outros Estados têm um cada (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Santa Catarina e Minas Gerais).
Além do trabalho de investigação, a associação recebe denúncias, ajuda a polícia nas apreensões e acompanha processos para saber se os infratores foram condenados. Dão a isso o nome de "suporte logístico".
Quando necessário, são convocados "free-lancers" para manobras braçais (jogar CDs e DVDs dentro de sacolas na hora do "rapa", por exemplo). A entidade fornece toda a infraestrutura necessária para a polícia chegar aos supostos piratas. Há, por exemplo, um galpão mantido pela entidade na Grande SP de 3.500 m² com 20 milhões de CDs e DVDs piratas. A APCM é fiel depositária de toda a muamba, deixando-a à disposição da Justiça.
A ajuda também pode ocorrer em menor escala. É famosa nos corredores da associação a história --confirmada pelo próprio diretor-executivo-- de uma delegacia que não tinha sequer tinta na impressora para produzir um Boletim de Ocorrência sobre uma violação de direitos autorais. A APCM resolveu o caso fornecendo o cartucho para a impressora da polícia.
A parte mais impopular da associação, de enfrentamento na internet, conta com seis funcionários. Além do coordenador, Bruno Tarelov, são cinco jovens (todos entre 20 e 30 anos) vindos das áreas de ciência da computação ou sistema de informações. À primeira vista (camisetas, jeans, tênis, cabelos espetados), é mais fácil supor serem moderadores da "Discografias" do que legalistas da indústria do entretenimento. Eles rastreiam links que abrigam material para download sem o devido pagamento de direitos autorais.
A busca pode ser feita de forma automatizada ou "no braço", entrando em cada blog, comunidade ou fórum dedicado a entretenimento. O programa utilizado para derrubar esses links é o Robo (assim mesmo, sem acento), produzido pela empresa dinamarquesa Kapow. Segundo o site oficial, a companhia fornece serviço de captura de informação agregada, "tanto pública quanto privada". O software promove uma varredura, destacando o que a APCM quer encontrar (no caso, links que levem ao download de músicas e filmes). Seu verdadeiro trunfo é descobrir até mesmo os conteúdos escondidos em cyberlockers (armários virtuais como o Rapidshare, em que é possível armazenar volumes enormes de arquivos para downloads).
Saudades
"Adoro carros Mercedes, mas, quando vejo um modelo desses na rua, não posso pegar para mim. Não tenho dinheiro para comprá-lo. Agora, qual é a diferença entre pegar para si um bem material e um bem imaterial?", questiona o diretor-executivo da APCM, Antonio Borges Filho.
É esse exemplo que Dr. Borges, como é chamado pelos funcionários, escolhe para começar sua conversa no fim da visita da reportagem à APCM. Sua sala é adornada com referências policiais, como bonés do FBI (polícia federal norte-americana), da DEA (Drug Enforcement Administration, a agência antidrogas dos EUA) e do DPF (Departamento da Polícia Federal). Um isqueiro cromado, no formato de revólver, enfeita a prateleira ao lado da porta.
Ele prossegue discursando sobre sua marca de automóveis favorita. "Na verdade, já tive um Mercedes 94." Acende um cigarro. "Mas me dava muito trabalho aquele carro."
Borges participou da maior apreensão de cocaína da história da PF, realizada em junho de 1994, em Tocantins. Foram sete toneladas de coca pura. Advogado, bacharel em Ciências Contábeis, gosta de assistir a filmes policias e de suspense. "Não quero que você coloque isso [da apreensão de cocaína]. Podem achar que quero me prevalecer do fato de ter feito parte da PF, que é algo que nunca fiz."
O delegado aposentado trabalhou por duas décadas na PF. Está desde 2006 no combate à violação dos direitos autorais, quando começou a prestar serviços para a extinta Apdif (Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos).
Para falar sobre os temas espinhosos que cercam sua função, o diretor-executivo da APCM prefere metáforas. Critica, por exemplo, a contumaz desobediência às regras nos aeroportos, onde os passageiros desrespeitam o aviso de não ligar o celular no avião ("é como se pedissem para todos ligarem ao mesmo tempo!").
"As pessoas não têm essa conscientização de respeito às normas. Às vezes, é preciso a repressão para que a coletividade entenda que tem de respeitar", explica. Quando o assunto é o preço dos bens culturais ao consumidor final, diz que "adoraria que tudo fosse grátis". "Mas, infelizmente, não é assim que funciona."
No fim da conversa, Borges diz acreditar "na causa" da APCM. "Tenho um cunhado que, quando me mostra esses filmes aí [piratas], eu já falo: 'se você não tirar isso aí de dentro eu vou ter que apagar'", relata. Questionado sobre o que é mais difícil --trabalhar na APCM ou na PF--, abre um sorriso e responde na mesma velocidade com que um tira saca a arma do coldre: "A APCM é mais difícil." Sua voz ganha um tom nostálgico: "Tenho saudades da polícia. Tenho saudades de prender."
Associação antipirataria apagou até músicas de banda independente
Em outubro do ano passado, mais de 50 blogs disponibilizaram para download o EP ("extended play", com menos músicas do que um álbum tradicional) do grupo paulistano Cérebro Eletrônico, "Pareço Virtual". Em dezembro, a APCM derrubou o arquivo, armazenado no site 4shared. Detalhe: foi a própria banda que optou por divulgar as músicas dessa forma.
O EP fazia parte da estratégia de divulgação do álbum "Pareço Moderno", que chegara ao mercado três meses antes. Enquanto o álbum tinha 12 faixas, o EP oferecia oito (três remixes, quatro músicas do disco e uma gravação ao vivo).
"Nunca recebi nenhum tipo de notificação dizendo que estava associado a eles [APCM] ou que qualquer uma dessas associações me representasse", diz Juliano Polimeno, diretor-executivo da Phonobase, agência de serviços musicais responsável pela estratégia de lançamento do material. Juliano chegou a cogitar ir à Justiça contra a APCM, mas "não teria saco para aguentar um processo desse tipo".
Divulgação
À época, Polimeno escreveu um e-mail aos blogueiros que ajudavam a divulgar o trabalho da banda: "A Phonobase e o Cérebro Eletrônico são os únicos detentores do fonograma --e dos direitos patrimoniais e morais. Nós não concedemos à APCM qualquer representatividade, ou seja, eles não podem agir em nosso nome, nem retirar o que quer que seja do ar sem nos consultar." Também encaminhou um protesto à associação -que se desculpou pelo equívoco- e republicou as músicas.
Segundo o músico Tatá Aeroplano, vocalista do grupo de pop eletrônico, ao colocar as faixas de graça na rede o grupo esbarrou "numa gente que ainda não sabe lidar com as novidades". "Vários integrantes baixam muita música na internet. Eu mesmo baixo ou ouço no MySpace e depois compro o disco", conta.
"No começo, fiquei puto. Mas, no fim, o erro da APCM quadruplicou o alcance da nossa ação de lançamento. Até o momento já foram quase 3 mil downloads", comemora Polimeno. O álbum foi vendido em quatro formatos diferentes (por download, em embalagem de CD comum, num encarte "digipack" e em uma caixa mais trabalhada, chamada de "Box Cerebral"). Somadas, as vendas foram de 1.617 unidades.
Procurado pela reportagem, Antônio Borges Filho, diretor-executivo da associação, disse que "como todos seres humanos, a APCM pode ter falhado". "Se tiver ocorrido isso [eliminação irregular de links da banda], dou minha mão à palmatória."
Mercado
Dados divulgados pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Disco) na semana passada mostram que a indústria fonográfica não tem do que reclamar quanto ao comércio de músicas pela internet.
O segmento da música digital no país teve crescimento de 79,1% no ano passado. A participação do mercado digital no total das receitas com música gravada passou de 8% para 12% entre 2007 e 2008.
No mundo, o crescimento foi de 25% no mesmo período, de acordo com o "Digital Music Report" divulgado pela (Ifpi) Federação Internacional da Indústria Fonográfica em janeiro deste ano. Mundialmente, as plataformas digitais geraram em 2008 receitas que já representam 20% do total das vendas de música gravada.
As companhias que reportam estatísticas para a ABPD (EMI, MK Music, Music Brokers, Paulinas, Record Produções, Som Livre, Sony Music, Disney Records) faturaram em 2008 no mercado de música digital R$ 43,5 milhões. Desse total, 22% foram representados por receitas advindas da internet (R$ 9,68 milhões) e 78%, vendas de música digital via telefonia móvel (quase R$ 34 milhões).
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