Os Smiths foram importantes pela visão parcial do mundo que impuseram. E Morrissey incorporou essa noção com requinte, pela sua imperfeição, pela recusa da realidade, pela negação de crescer. Um pouco de satisfação, algum ajustamento com o mundo são coisas que não rimam com o cantor inglês. A sua actividade alimenta-se do fluxo da adolescência - essa forma de vacilar entre a liberdade e a claustrofobia, entre as inúmeras possibilidades que a vida possui e os constrangimentos e as frustrações que também acaba por implicar.
- Bem, durante muitos anos diziam que eu era um Smith, por isso dizerem agora que sou um mito (myth) é apenas uma pequena alteração,.
É o que ele responde, com a habitual ironia, quando lhe perguntamos como se sente quando é tratado pelos inúmeros admiradores pelo mundo fora como se fosse uma lenda viva. Nem todas as personalidades da música têm as características adequadas a uma base de admiradores extremamente fiel. Ele tem.
Os Smiths só lançaram quatro álbuns, entre 1984 e 1987, mas as personagens da maior parte das canções provocaram adesão imediata. As palavras de Morrissey certificavam-nos de que não tínhamos de nos sentir excluídos. Constituíam a prova de que havia outros por aí a experimentarem o mesmo. De repente, alguém cantava poeticamente acerca de coisas que pensávamos ser os únicos a sentir e a confusão, a rejeição ou a solidão eram-nos mais toleráveis, pela possibilidade de partilha.
- A maior parte das pessoas acha difícil escrever o seu próprio nome.
A pergunta era se é difícil escrever uma boa letra na actualidade. E a resposta continua: "Quando examino alguém como McDonna, que vendeu 90 milhões de álbuns, não consigo pensar numa única canção decente que tenha escrito", acrescenta, dizendo que hoje a maior parte das letras não tem significado nem carisma. "Na Inglaterra existe uma coisa chamada Brit Awards, cuja política é atribuir prémios às piores contribuições para a música que possamos imaginar. Por isso não existe nenhum incentivo da indústria no sentido de que sejam escritas boas letras."
- Elas são altamente financiadas, agressivamente promovidas e as suas editoras fazem tudo, mas tudo, para que não fracassem. Falhar, portanto, é impossível, para gente como GaGa.
"Não existe nenhuma música nova por aí que me satisfaça", continua, para logo se contradizer. "Bem, amo Kristeen Young... É incrível... Sem gravadora, claro!... Hoje as gravadores apenas assinam com quem lhes entrega de bandeja o que se ganha dos concertos e do publishing... O que a maior parte das crianças com borbulhas de 16 anos se dispõe a fazer... Mas eu não tenho 16 anos e não sou um desenho animado."
Heróis e marginais
Nem o fim dos Smiths, em 1987, constituiu a sua extinção - por causa dos fãs. Basta ver o excelente documentário Is It Really So Strange (2004), de William E. Jones, sobre os improváveis entusiastas hispânicos: jovens latinos entre os 20 e os 25 anos com tatuagens de devoção a ele e exímios penteados à Elvis Presley, tal como o adotado por Morrissey desde sempre. Dir-se-ia estarmos num cenário de um filme colorido de John Waters, em plena década de 1950 - mas estamos numa encenação garrida do século XXI, onde todos sabem as canções de cor e procuram ser como ele.
Como é que um cantor tantas vezes arrogante, de pronúncia nitidamente britânica, de orientação sexual gay, seduziu a comunidade latino-americana da Califórnia, proveniente de uma cultura com tiques machistas? Os hispânicos, nos EUA, são "marginais", "outros", "invisíveis", e nas canções de Morrissey os párias também são admiráveis. Talvez esteja aí uma explicação possível para esse fenómeno de identificação. Mas se Morrissey é modelo, James Dean ou Oscar Wilde foram modelo para ele próprio. E ele sabe-o muito bem. E gosta de falar sobre isso. Aliás, ele não fala de outra coisa.
- James Dean é arte humana. Não encontrará uma única má fotografia de James Dean. Ele não era um actor. Era um símbolo, da mesma forma que Marilyn Monroe o era. Eles são mais famosos e mais amados do que qualquer presidente americano de que nos consigamos lembrar. E Oscar Wilde foi a primeira estrela pop de sempre. Como escritor, nunca foi acomodado. Amava a vida e a sua popularidade só tem tendência a crescer enquanto o tempo passa. E é amado pelas pessoas mais novas, como Shakespeare nunca foi. Continuo a achar que Wilde foi assassinado pelos serviços judiciais britânicos porque invejavam a sua popularidade.
Quando os Smiths apareceram, providenciavam fantasias de inocência para os que estavam no processo de deixar a adolescência. Gente dividida entre as insatisfações juvenis e ter uma carreira, entre sonhar com uma vida melhor do que a dos pais e o medo de cair na mediocridade. Ao longo dos anos, Morrissey sempre enalteceu as debilidades, as fraquezas, o falhanço. Os fortes são aqueles que não têm problemas em expor as suas fragilidades, parecem dizer quase todas as suas canções.
Pop e anti-pop
Ainda hoje Morrissey incorpora um novo estilo de celebridade. Tem qualquer coisa de pureza pop e de anti-pop. É um de nós, mas um de nós que apenas pode ser ele. Alguém que conhece bem a história da pop e os mecanismos de obsessão dos melómanos. É como se quisesse utilizar os mecanismos da idolatria para introduzir alguma diferença no pop. Ao contrário do que se possa pensar, repetimos, não é uma personagem. É ele. E quando as forças arbitrárias do encanto (simbolizadas no rosto, no corpo e na voz de um cantor) coincidem sem nenhum motivo aparente, então o fascínio acontece. Mas não é crível que ele tenha essa consciência. A sua visão sobre a relevância dos Smiths e dele próprio e a forma como fala das suas letras provam-no. Claro que os Smiths foram uma banda relevante, mas não são a melhor banda do mundo. E claro que Morrissey é um excelente cantor e letrista, mas incorpora mais do que isso: às vezes um simples falsete ou um gesto qualquer dizem mais sobre a sua diferença, a sua resistência, a sua singularidade, do que todas as letras dos Smiths.
- Nunca ouço a minha música em nenhum lado, nunca! Apenas três singles da minha autoria (Suedehead, That"s how people grow up e I"m throwing my arms around Paris) tiveram boa cobertura radiofónica ao longo da minha vida. Nenhuma das minhas outras canções foi sequer tocada na rádio. Talvez seja porque a minha voz é demasiado humana.
Quando fala é sempre assim, totalitário, logo, radicalmente parcial. Não inclui, excluiu. Não lhe interessa complexificar, tentar encontrar diferentes pontos de vista, sugerir ou perceber as dinâmicas, mas sim apontar o dedo acusador. Quando discorre sobre a progressiva desmaterialização da música, também acontece isso.
- Nunca fiz parte de nada, não sou da era do vinil ou das editoras indie contra as multinacionais, mas parece-me que a música se foi tornando progressivamente insignificante por causa deste novo panorama digital. Antes tínhamos de sair, procurar uma loja de discos, fazer uma escolha e depois carregar qualquer coisa num saco para casa. As pessoas sentiam-se emocionalmente envolvidas com as suas escolhas, agora não me parece. Penso que tudo começou com o rap. Ouve-se em todo o lado porque soa quase sempre igual e não tem qualquer significado. Não ouvimos, por exemplo, canções de protesto em sapatarias. O mesmo com a música de dança tecno. É simplista e sem personalidade. É por isso que está nos centros comerciais, nos elevadores, em qualquer espaço. Em parte, não é ouvida. É apenas papel de parede sonoro.
Nada a não ser a música
A meio dos anos 90 encontrava-se imerso em processos judiciais (ainda o fim dos Smiths e as acusações de racismo) e mostrava-se algo renitente em lançar material novo. Mas a última década não tem sido nada má para ele. Retomou a credibilidade, lançou alguns discos bem sucedidos, tem realizado turnês lucrativas e interpreta canções dos Smiths (How soon his now?, Please, please, please let me get what I want, I know it"s over ou Still ill) nos concertos, sem crises de identidade. Com o seu país, a Inglaterra, é que ainda não se reconciliou, tendo vivido no exterior, na Itália e nos EUA, nos últimos anos.
Hoje Morrissey completa 55 anos. A maior parte das pessoas aceita que, à medida que envelhece, o processo de amadurecimento vai acontecendo. Mas ele não é qualquer pessoa.
- Tenho tido uma vida estranha até agora, por isso não tenho grandes expectativas de amadurecer de uma forma normal. Nenhum dos clichés acerca da existência se me aplica. A minha vida nunca foi muito típica. E agora também não é. O romance nunca esteve presente na minha vida. Acima de tudo tento ser lúcido. Sempre fui o meu melhor amigo. Quando nos apaixonamos por alguém, olhamos a humanidade e as pessoas de forma diferente. Mas eu nunca amei nada a não ser a música.
Ouvindo-o fica-se com dúvidas se, na adolescência, não pertenceria àquele tipo de pessoas que ficava sempre à beira da pista de dança a sussurrar coisas aos ouvidos dos amigos, troçando de quem dançava e se divertia, mas secretamente desejando ser como eles. "Não, não exactamente", corrige ele, levando a pergunta muito a sério.
- Comecei a ir a concertos sozinho aos 12 anos. Não ia a discotecas. Aos 12 ans vi os T. Rex, aos 13 David Bowie, Lou Reed, Mott the Hoople ou Roxy Music. E continuei por aí fora ao longo da minha adolescência. Ia sempre sozinho e gostava disso, dessa sensação. Vi as pessoas certas ainda muito novo. Ramones, Patti Smith, Sex Pistols. Aos 20 anos estava exausto e tinha visto o suficiente. Apenas queria começar a fazer qualquer coisa eu próprio.
Foi isso que aconteceu, por volta de 1982. Agora, na casa dos 50, afirma-se mais desperto do que nunca. Há alguns anos, em declarações a um jornal inglês, disse que pensava abandonar a música aos 55 anos. Não só não abandonou como está prestes a lançar um novo disco. Quando lhe perguntamos se aos 60 continuará a cantar é evasivo: "Os 60 anos ainda estão longe. Se não estiver a cantar, provavelmente estarei num asilo perto de Varsóvia. O que também está bem para mim."
É assim Morrissey. Um puto adulto que não consegue crescer mais. Se isso acontecer, a sua graça desvanecer-se-á. As suas canções perderão aquele impacto primordial. E a nossa adolescência perder-se-á na dele.
por Vitor Belanciano
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