terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"Sina" - a última resenha do ano ...

"with a little help from my friends"
““Enceguerado”. Movido por um desejo irracional, sem fundamentos, indomável. Ímpeto que não conhece bem ou mal – estende a mão a um Zé Ninguém, passa a rasteira noutro amigo, se desculpa e alega que o amor mata diariamente. Numa cidade pacata por natureza, um homem caindo de velho senta na porta de casa todas as tardes para ouvir as histórias trazidas pela brisa. Ela sopra “fuga”. Brisa que amansa e atiça. Uma intelectual se entrega à religião; o garoto troca o futebol pelos acordes envenenados do blues; o papudinho abraça a garrafa; o pescador joga a rede na esperança de estrelas e acordes. É sempre a brisa. Brisa que pariu “Baggios”, “Zorrões”, “Leões”. Sonhadores, almas em busca, vítimas do mapa rasgado na palma da mão direita. A vida é um nó cego, não desata por força da insistência. Somos todos reféns da própria SINA.”

O belíssimo texto acima, sem indicação de autoria, está no também plasticamente belo encarte da versão em vinil de “sina”, segundo disco da banda sergipana de blues/rock The Baggios. Estou com o bolachão, verdinho, em mãos. Depois de apreciar mais uma vez a capa, excelente trabalho da dupla “snapic” tendo o maluco beleza Agapito e a estação de trem desativada de São Christóvão como modelos, repouso-o no prato de meu 3em1 velho de guerra, que tantas alegrias me proporcionou nesses mais de 20 anos de uso ininterrupto, sem nunca precisar de pausa para conserto, e conduzo o braço com a agulha aos primeiros sulcos, que me disseram o seguinte:

Uma batida percussiva ao mesmo tempo tribal e moderna abre “Afro” – e o disco – como que avisando ao ouvinte que a mesma banda estava de volta, mas com vários “algo” a mais. Nem tanto no ritmo, que continua deliciosamente calcado no blues com sotaque brasileiro e, quiçá, nordestino. E SERGIPANO, ouso dizer! Me causou estranheza à primeira ouvida, mas isto é, muitas vezes, um bom sinal. Foi o caso, aqui. Está totalmente assimilada e é, sem sombra de dúvidas, uma belíssima musica.

É seguida por “Blues do aperreio”, mais na linha do que os Baggios vêm desenvolvendo já há mais de uma década como sonoridade. E por “Sem condição”, o primeiro “single” – uma pepita lapidada com esmero à base de riffs de guitarra poderosíssimos acompanhados por uma bateria potente e precisa. Perfeita.

Em “Salomé me disse”, mais um pouco de estranheza: em ritmo de valsa, Julico desfia mais uma de suas letras sobre perdas amorosas, aqui num clima de “mea culpa”. Se é um pedido de desculpas por algo, fosse eu a Salomé do título, teria chorado ao ouvir. E perdoado, evidentemente.

E então temos “sina”, a música, cuja letra – todas elas, pelo menos aparentemente, autobiográficas e/ou confessionais – emula a de “o azar me consome”: fala das desventuras de quem quer apenas ser honesto num mundo cheio de perfídia e falsidade. Mas sem melancolia ou baixo astral. O clima está mais para o confronto, a persistência. Ele não vai desistir, apesar das coisas não darem certo para ele, em muitos momentos.

Fechando com chave de ouro o lado A – lembrem-se, estou resenhando o vinil! – “Esturra leão” e seus sensacionais arranjos de sopro. Aqui Julico discorre sobre outro tema recorrente em suas letras: o retrato das figuras folclóricas da Terra do Cacique Serigy. “Leão”, segundo me consta – não o conheço – é um personagem real – e fascinante, a julgar pelo que está escrito. Fugiu de Estância – cidade sergipana bastante citada na literatura de Jorge Amado, que costumava passar férias por lá – depois de confessar ter assassinado e enterrado sua amada. Seu pedido de perdão hoje ecoa nos sulcos do vinil, cujo primeiro lado se encerra num “fade” sensacional. Perfeito.

Numa bem sacada noção de continuidade, o lado B começa focando em outro “figura”, “Zorrão”. Também fascinante, deu até vontade de conhecer. A segunda, “Vagabundo arrependido”, é uma espécie de segunda parte de “Salomé me disse”, já que tem praticamente o mesmo ritmo. Gostei. Rebuscado, parece coisa de disco conceitual.

Depois de “De malas prontas” – mais um tema recorrente, a partida, quase sempre triste – o disco se encerra com uma sequencia de três músicas praticamente perfeitas: “Domingo”, com seu delicioso ritmo “roots” arrastado; “Tardes amenas”, com um sensacional arranjo de órgão de Rafael Ramos; e “Descalso”, levada na base da viola e do “slide guitar”. De bônus, uma emocionante homenagem ao Baggio, andarilho da cidade histórica de São Cristóvão, onde Julico, o mentor da parada, ainda reside.

E é isso. Nada mais a declarar sobre esta pequena obra-prima do rock independente – MESMO! – brasileiro. Um chute no saco da mediocridade que impera ao nosso redor.

Quem ainda não conhece está TOTALMENTE por fora ...


por Adelvan

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HOw cAn yOu Be sUre Today?

Foi uma festa simples, como sempre. “Indie”, “underground”, “alternativa”. Nem tão estranha, nem com gente tão esquisita. Poderia ter sido morna. Mas não foi. Nunca é. Porque a banda é foda, um verdadeiro clássico do rock sergipano, e aproveita a ocasião estratégica – férias, festas de fim de ano - pra reunir as pessoas que cresceram embaladas por seus discos e que hoje estão morando fora, espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, numa grande celebração.

O show deste ano em especial trouxe lembranças para os um pouco mais velhos que a maioria dos presentes, a velha guarda da velha guarda, digamos assim, porque eles tocariam pela primeira vez na íntegra e ao vivo o primeiro disco, “Waking up... waking down”. Foi lançado há 15 anos, numa época em que a internet ainda era uma coisa distante, da qual eu, pessoalmente, já tinha ouvido falar, mas não tinha tido nenhum contato, e a maioria dos presentes – a “geração” de fãs mais fiéis da snooze - ainda era novinho(a) demais pra ir a shows de rock. Antes do “Rock-se”, festival divisor de águas que aconteceu naquele mesmo ano de 1998, só que no final. Me lembrou, por exemplo, a festa de despedida de Daniel, o hoje falecido guitarrista do então “Power trio”, na casa dos Irmãos “snoozers”. Antológica. Ou a vez em que nos reunimos todos num domingo à noite, na mesma “Casa dos vinhos”, para assistir à estréia do clip de “Life is good” no célebre LADO B da MTV, apresentado pelo “reverendo” Fábio Massari.

E foi lindo. Bom público, empolgado, como sempre, e banda afiada, em formato de quarteto – com Duardo na outra guitarra – desfilando clássico atrás de clássico. Com direito a encerramento apoteótico com a primeira música da primeira demo tocada como se tivesse sido composta ontem.

Abrindo a noite tivemos “Os Adolescentes da Vovó” com um ótimo show de covers que contemplou a íntegra do clássico “Badwagonesque”, do Teenage Fanclub, e um “revival” da Road To Joy, excelente banda local que teve vida curta porém gloriosa e é um dos maiores potenciais não-realizados da cena local.

Só faltou mesmo o ventilador. Na próxima vou levar o meu. Prometo compartilhar com todos.


Foto por Julio Andrade, da The Baggios
Calor do CARAAAALHOOOOOO !!!!!!!!!!

Ah: faltou Mauro “space boy” gritando por “Jesus Christ”, também, mas Luiz deu conta do recado com louvor.


"Give me the gun my friend".

A.

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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Freed pussy riot

Na segunda, 23, Maria Alyokhina(ao lado) e Nadezhda "Nadya" Tolokonnikova(abaixo), do Pussy Riot, foram libertadas da prisão depois de quase dois anos. Elas foram condenadas por vandalismo e ódio religioso em 2012. Depois de sair da casa de detenção, Maria foi imediatamente ao trabalho. Depois de uma hora em liberdade, ela se encontrou com defensores dos direitos humanos do Comitê Contra a Tortura para discutir reformas nas prisões da Rússia. A ativista e artista de 25 anos também encontrou tempo para falar à Rolling Stone EUA sobre as razões por trás da soltura dela, o futuro do Pussy Riot e como ela plantou as sementes para a reforma prisional lá de dentro.

Qual a sensação de estar livre?
Sabe, eu sempre fui livre, porque me sentia livre. É muito importante ser livre por dentro. A coisa mais importante é se sentir livre. Você tem o direito de escolher. Se tornar consciente desse fato é o que faz uma pessoa. 

Por que eles te soltaram agora?
Simplesmente por causa de Sochi [cidade russa que vai sediar os Jogos Olímpicos de Inverno, em fevereiro]. Eles queriam ficar mais atraentes antes dos Jogos. É por isso que resolveram fazer a anistia. Mas a anistia não é geral – é uma mentira. Eu sou a única que foi libertada da prisão e aí é que está o problema. Eles não vão deixar mais ninguém sair. Formalmente, é uma anistia geral, mas é uma mentira. 

É verdade que você queria resusar a anistia?
Eu queria. Eu queria, mas infelizmente não estava nas minhas mãos. Se eu tivesse tido a possibilidade de fazer isso, eu definitivamente teria recusado essa anistia. Eu não preciso dela. Eu não sou culpada, não sou uma criminosa, eu não considero isso misericórdia. 

O Pussy Riot continuará a existir?
[Pausa] Acho melhor darmos mais detalhes quando aparecermos juntas, assim não haverá nenhuma divergência. Precisamos nos encontrar primeiro. Tudo precisa ser conversado com Nadya. O que quer que façamos, estaremos definitivamente conectadas com aquele tipo de ação que achamos efetiva. E, acima disso, eu diria que se uma pessoa é conectada à arte, é para sempre. É impossível parar. É algo que vem de dentro. 

Mas vocês estão planejando fazer algo juntas?
Será uma organização de defesa dos direitos humanos, mas de um novo tipo. Vamos usar a transparência de recursos da mídia para revelar problemas, com foco nas prisões, mas talvez também de maneira mais geral. Ainda estamos decidindo a forma, mas eu e Nadya somos unânimes quanto a esse assunto.

Como foram os últimos meses na prisão?
Minha vida tem sido bastante ativa, então eu não me senti como uma prisioneira. Estive fazendo trabalho de direitos humanos, explicando às mulheres como elas podem resolver suas queixas elas mesmas. E o que aconteceu é que essas mulheres decidiram começar a resolver elas mesmas os problemas com a administração. Essa voz que apareceu na prisão é muito importante. Porque quando uma pessoa em uma prisão russa decide começar a falar, a começar a falar a verdade – ela começa a rejeitar a opressão. É uma coisa muito importante, muito significativa.Os prisioneiros russos precisam trabalhar 12 horas por dia e recebem – você não vai acreditar – entre um e dez euros por um mês de trabalho. Isso não é suficuente para nada. Todo mundo sabe que isso é injusto, mas não conseguiam provar isso. Eu sugeri como comprovar.

rs Brasil

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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

70 Anos de Keith Richards

Em 1973, os editores do New Musical Express puseram Keith Richards, principal guitarrista e alma musical dos Rolling Stones, no topo de sua lista anual de “estrelas do rock com maior probabilidade de morrer” naquele ano. Mesmo para um roqueiro, Richards consumia quantidades hercúleas de heroína, cocaína, mescalina, LSD, peiote, Mandrax, Tuinal, maconha, bourbon e demais refrescos, e todos os observadores achavam que ele estava com os dias contados. Àquela altura, a lista de baixas do rock era longa e agourenta: Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin eram apenas os nomes mais célebres a encabeçar o obituário. Em 1969, Richards e seus colegas dos Stones haviam perdido Brian Jones, que se afogara numa piscina poucas semanas depois de ser demitido da banda. Em vez de preservar sua mortalidade, Richards preferia exibi-la de forma acintosa. Registrou para a posteridade seu quase constante torpor dando livre acesso a Robert Frank, Annie Leibovitz e outros fotógrafos, que o captaram nos camarins ou em quartos de hotel, seminu e completamente doidão. Ao ver aquelas imagens de Richards, largado, chapado e leso, imaginava-se que era uma questão de dias para que a imprensa anunciasse que ele havia morrido sufocado em seu próprio vômito.

Na realidade, Richards foi em frente, tropeçando pelos concertos numa névoa narcótica, dormindo durante os ensaios, sempre à beira do olvido e, mesmo assim, produzindo junto com Mick Jagger parte da música pop mais memorável da época. Entre 1968 e 1972, os Stones gravaram Beggars Banquet, Let it Bleed, Sticky Fingers e Exile on Main St., a essência do repertório deles. Continuaram a tocar essas músicas por tanto tempo quanto Sinatra cantou Love and Marriage. A peculiaridade dos Stones se devia menos aos vocais de Jagger do que à capacidade de Richards de absorver o estilo blues das guitarras de Chuck Berry e Jimmy Reed, criando algo novo. Havia músicos muito mais técnicos, solistas muito melhores, mas a noção de ritmo e de riff dele, o seu bom gosto, seus acordes sustentados e espaços abertos marcaram o som dos Stones. E, ao longo de tudo isso, a Indesejada não conseguiu entrar no camarim. Depois de deixar Keith Richards no topo da lista de seu observatório da morte por dez anos, o New Musical Express finalmente jogou a toalha e admitiu que ele era imortal.

Faz trinta anos que os Stones não compõem uma canção importante, mas eles sobreviveram quatro décadas além dos seus grandes contemporâneos, os Beatles. E mesmo que a originalidade deles tenha se esvaído, suas máquinas empresarial e de produção de espetáculos foram afinadas à perfeição. Desde 1989, os Stones arrecadaram mais de 2 bilhões de dólares em receita bruta, ajudados por acordos de patrocínio com Microsoft, Anheuser-Busch e E*Trade. As firmas Promotour, Promopub, Promotone e Musidor – todas com sede na Holanda por motivos fiscais – cuidam dos vários ramos das atividades empresariais dos Stones. Tudo é supervisionado por equipes de contadores, advogados de imigração, especialistas em segurança e, até muito recentemente, um aristocrático consultor de negócios chamado príncipe Rupert zu Loewenstein-Wertheim-Freudenberg. Mesmo nos anos sem excursões ou discos, os Stones dão um jeito de ganhar algum. Licenciaram Start Me Up para a Microsoft, quando a companhia lançou o Windows 95, e She’s a Rainbow para a Apple, quando uma linha de iMacs precisou de promoção. De acordo com a Fortune, os Stones estão por trás da comercialização de cerca de cinquenta produtos, inclusive roupas de baixo vendidas pela cadeia de lingerie Agent Provocateur. A logomarca deles – uma linguona lasciva para fora de uma boca que sorri – é tão reconhecível na paisagem dos negócios quanto os arcos dourados do McDonald’s.

“Essa coisa de negócios depende muito das leis fiscais”, Keith Richards contou à Fortune. “É por isso que ensaiamos no Canadá e não nos Estados Unidos. Muitas das nossas manobras espertas têm a ver fundamentalmente com a natureza das leis fiscais: aonde ir, onde não pôr nosso dinheiro. Botar debaixo do colchão ou não. Saímos da Inglaterra porque pagaríamos 98 centavos por cada dólar ganho. Fomos embora e eles é que perderam. Não vão receber um tostão de impostos. Não quero ferrar ninguém, muito menos os governos com quem trabalho. Deixamos 30% numa conta parada até resolver tudo.” Keith pode imaginar que é um símbolo de 68, mas emprega a política fiscal do mais radical dos conservadores.

No último tour que fizeram, entre 2005 e 2007, os Stones faturaram mais de meio bilhão de dólares – foi a mais lucrativa excursão da história. Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, tocaram para mais de 1 milhão de pessoas. Poucos espetáculos da vida moderna são tão sublimemente ridículos quanto os integrantes geriátricos dos Stones tocando os acordes iniciais de Street Fighting Man. A plateia costuma ficar lotada de fãs de meia-idade que, ao sair do escritório, vestiram um jeans largão, deixaram as crianças com a babá e desembolsaram 200 ou 300 dólares para rebolar junto com Mick Jagger. Este, por sua vez, tendo treinado para as excursões como se fosse uma final de campeonato, saracoteia sem parar durante as duas horas de show; nos melhores momentos, lembra um epígono de James Brown; nos piores, a tia bêbada decidida a estragar o casamento da irmã mais bonita com uma performance patética na pista de dança. Desde 1975, “a excursão do pau inflável gigante”, como gosta de dizer Richards, os Stones tentam se superar com lances espetaculares. Às vezes, vão longe demais. “Teve aquela coisa de pôr elefantes no palco em Memphis”, diz Richards, “mas eles destruíram as rampas e cagaram o palco todo nos ensaios. A ideia não foi pra frente.” Noves fora os micos, o que acabamos por admirar é a improvável persistência dos Stones, uma entidade de quase meio século, que, aos trancos e barrancos, segue cômica e persistentemente adiante. Os rapazes estão chegando perto dos 70 anos. Enrugados, tingidos e esqueléticos, eles trovejam um repertório que a esta altura é tão augusto e imutável quanto as Variações Diabelli, de Beethoven. “De vez em quando, você olha para os próprios pés e pensa ‘é a mesma merda de sempre todas as noites’”, disse Richards. No entanto, ele continua a tocar e as multidões continuam pagando, relutantes em abandonar o último elo com seus anos dourados.

O mais novo artefato da longevidade da banda é a animada autobiografia de Keith Richards, cujo título desafiador é simplesmente Vida, lançada no Brasil pela editora Globo. Parte livro, parte extensão da marca, trata-se de um monólogo divertido e divagante, uma viagem leve pela vida de um homem que conheceu todos os prazeres, se permitiu tudo e nunca pagou o preço. “Você talvez não consiga sempre o que quer”, canta Jagger em You Can’t Always Get What You Want. Mas essa regra não se aplica a Keith.

Uma advertência óbvia: as memórias de um homem cuja memória está enevoada por incontáveis anos de obliteração narcótica são memórias de um gênero bem particular. Em 1978, quando lhe perguntaram por que os Stones haviam chamado seu último disco de Some Girls, Richards respondeu: “Porque a gente não se lembrava do nome de nenhuma delas.” Não obstante, a editora americana Little, Brown pagou 7 milhões de dólares a Richards para produzir o livro. Ele, por sua vez, escolheu um ghost-writer de talento – James Fox, o autor de White Mischief, uma história bem contada do assassinato de Josslyn Hay, o 22º conde de Erroll, um dos muitos expatriados dissolutos que viveram em Happy Valley, nos arredores de Nairóbi, no Quênia. Para Fox, escrever sobre as drogas, as aventuras sexuais e o tédio requintado de Happy Valley foi uma boa preparação para Vida.

Richards e Fox sabem por que o leitor desembolsou o dinheiro do livro: pelo mesmo motivo que, ainda hoje, trinta anos depois de largar a heroína, Keith cambaleia pelo palco com um sorriso maníaco e diz para a multidão em delírio: “É um prazer estar aqui! Aliás, é um prazer simplesmente estar!” É o excitamento de ouvir alguém que jamais passou um dia entre as quatro paredes de uma fábrica ou de um escritório, consumiu o que havia para ser consumido e sobreviveu para contar a história. Esse é o homem que inventou o refrão de (I Can’t Get No) Satisfaction enquanto dormia e, no entanto, teve mais satisfações do que jamais imaginou Giacomo Casanova. Assim, Vida tem urgência em realçar o Mito de Keef e nos oferecer o que desejamos. O livro começa com uma longa cena da excursão dos Stones pelo Sul dos Estados Unidos em 1975, os carros lotados de narcóticos de primeira classe – “cocaína pura da Merck, o pó farmacêutico fino”. Mas na cidadezinha de Fordyce, Arkansas, população de 4 237 habitantes, Richards arranja confusão com a polícia. Segue-se uma narrativa grotesca de mau comportamento dos Stones diante da Justiça sulista. Richards, que acabou de se vangloriar para o leitor da posse e ingestão de vastas quantidades de droga, se faz de desentendido quando lhe dizem que enfrentará uma possível condenação à prisão. Da qual, como de costume, ele se esquiva.

Richards se gaba do seu metabolismo. Não somente narra sua “viagem movida a ácido com John Lennon”, como faz questão de nos dizer que Lennon “não conseguia acompanhar”. E relembra: “Ele tentava tomar tudo o que eu tomava, mas eu treinava duro. Um pouco disso, um pouco daquilo, uns tranquilizantes, umas bolinhas, coca e pó, e depois eu ia trabalhar. Eu era alucinado. E John acabava invariavelmente no meu banheiro, abraçado ao vaso.”

Às vezes, o livro parece uma versão sem consequências de Junky, de William Burroughs. Num trecho longo, Richards descreve sua dieta diária:

Eu tomava um barbitúrico para acordar, de efeito recreativo em comparação com a heroína, mas nem por isso menos perigoso. Isso era o café da manhã. Um Tuinal, fazia um furinho com uma agulha, para fazer efeito mais rápido. Depois tomava uma xícara de chá, e então matutava sobre levantar ou não da cama. E mais tarde, quem sabe um Mandrax ou Quaalude. Senão eu ficava com energia demais para queimar. Desse jeito, você acorda devagar, já que tem tempo. E quando o efeito passa, depois de umas duas horas, você se sente relaxado, come alguma coisa de café da manhã e está pronto para o trabalho.

Richards se orgulha de muitas coisas, inclusive de sua capacidade de ficar acordado durante dias. Seu recorde de todos os tempos foi uma sequência de nove dias sem dormir à base de cocaína, ao final da qual ele simplesmente desabou e bateu com a cabeça num alto-falante: “Saiu uma cortina de sangue.”

Esse aspecto do livro, a narrativa do viciado, é o capítulo mais recente de uma tradição que data do romantismo e de Thomas de Quincey, com suas visões causadas pelo ópio, povoadas de crocodilos e outros “monstros indizíveis”, de Crabbe, Coleridge, Byron, Baudelaire – uma lista infindável. Mais especificamente, Vida pertence à subcategoria das memórias de músicos viciados: Straight Life, de Art Pepper, High Times Hard Times, de Anita O’Day, Raise Up Off Me, de Hampton Hawes, e a colaboração fantasticamente obscena de Miles Davis com Quincy Troupe.

Quando terminei o livro de Richards, li várias dessas memórias do jazz, bem como biografias de outros gênios viciados, como Billie Holiday e Charlie Parker. Depois de revisitar o desespero, as drogas vagabundas, as condenações à prisão, as vidas encurtadas, achei que havia algo quase repugnante no ego e no espírito jovial do sortudo Keith. Ele tem muitos conselhos disparatados para o candidato a junkie e voyeur: nada de drogas injetáveis, tome apenas as drogas mais puras e de melhor qualidade e, por favor, nunca exagere. (“Olha, eu não devia dizer nunca; eu às vezes ficava totalmente cataplético.”)

Richards admira a música de seus predecessores e superiores, mas não sente a dor deles. Está protegido dos dramas normais dos drogados por camadas e camadas de advogados, dinheiro, e privilégios. Charlie Parker compôs Relaxin’ at Camarillo depois de sair de um manicômio na cidade homônima da Califórnia. Richards fez Exile on Main St. quando era um exilado do fisco morando numa propriedade rural em Villefranche-sur-Mer. Nos intervalos entre picos e ensaios, ele cruzava o Mediterrâneo numa lancha de corrida atrás de socialites europeus: “Dávamos uma parada em Monte Carlo para almoçar. Batíamos papo com a turma do Onassis ou do Niarchos, que atracavam iates imensos por lá.”

Outro aspecto inevitável das memórias ou biografias do rock é o catálogo de conquistas sexuais e, sobre esse assunto, Richards é quase tímido. Ele nos conta que seus colegas Jagger e Bill Wyman tabulavam friamente suas conquistas. Keith é do tipo passivo. São as mulheres que o procuram. “Nunca dei uma cantada numa mulher em toda a minha vida”, diz. E, no entanto, descreve com prazer como roubou a modelo e artista teutônica Anita Pallenberg de Brian Jones enquanto desciam para o Marrocos num Bentley:

Anita e eu nos olhamos e a tensão no banco de trás ficou tão alta que, quando vejo, ela está me pagando um boquete. Aí a tensão se rompeu. Ufa. E de repente, estávamos juntos. [...] Durante mais ou menos uma semana é fuque-fuque-fuque lá na Kasbah, nós dois com um tesão de coelho, se perguntando como tudo isso ia acabar.

No fim das contas, Richards e Pallenberg resolveram morar juntos. Formam um casal e tanto, jovens junkies apaixonados, constantemente driblando a prisão. Mas não conseguem driblar a tragédia. Em 1976, enquanto Keith estava em excursão, o terceiro filho dele com Pallenberg, um bebê chamado Tara, morreu no berço. Eis a maneira ponderada como Richards exprime o seu pesar: “Nunca conheci o filho da puta, ou mal o conheci. Troquei as fraldas dele duas vezes, acho. [...] Até hoje, Anita e eu não falamos a respeito.” Isso vai muito além dos limites normais da reserva.

O vício e o mau comportamento de Pallenberg são demais até para Richards. O problema não é tanto ele estar convencido de que ela teve um caso com Jagger – seu terceiro Stone! – mas o fato de ela superar os limites de Keith no departamento “decadência”. “Ela era incontrolavelmente autodestrutiva”, escreve ele. “Era como Hitler; queria que todos afundassem com ela.” Por fim, Richards encontra a felicidade e uma existência muito mais estável com uma modelo americana chamada Patti Hansen.

Richards é grosseiro com muita gente nesse livro, assim como foi em numerosas entrevistas dadas ao longo do tempo. Ele acha que isso faz parte do seu charme de malandro. Diz que os punks não têm talento. Elogia o U2 uma ou duas vezes, mas desconsidera todo mundo, de Prince (“um anão supervalorizado”) a Elton John (“uma puta velha”) e Bruce Springsteen (“Se houvesse coisa melhor por aí, ele ainda estaria tocando nos bares de Nova Jersey”). Os que não acompanham essas coisas de perto podem se surpreender ao ver como Richards pode ser duro com Mick Jagger, ao qual se refere às vezes como “Brenda” ou “Sua Majestade”. Ele não suporta as pretensões de Jagger, seus “cálculos”, seu excesso de atenção aos negócios, sua ânsia pela aprovação do establishment e sua tendência ocasional de tratar Richards e os outros membros da banda como empregados. Ele o retrata como cheio de frescuras, triste, alguém que só pensa em si mesmo: “É quase como se Mick Jagger aspirasse a ser Mick Jagger, correndo atrás de seu próprio fantasma. Com a ajuda de consultores de estilo. [...] Eu adorava andar com Mick, mas não entro em seu camarim acho que faz uns vinte anos. Às vezes, sinto saudades do meu amigo.” Richards, que vive como um fidalgo em propriedades rurais muradas na Inglaterra e em Connecticut, concede que Jagger é seu “irmão” e terá sempre seu apoio, mas claramente se considera mais original como homem e como músico.

Há leitores que se deliciarão com a autoimagem de Richards como o espertalhão que sempre se dá bem, mas, para mim, as seções mais fascinantes do livro são as histórias de sua evolução, o modo como sua amizade de adolescência com Jagger e o amor que os dois tinham por seus heróis do blues levaram rapidamente à formação da Maior Banda de Rock do Mundo. É uma história já narrada muitas vezes, mas Richards e Fox a contam muito bem.

Keith Richards e Mick Jagger eram crianças na Londres do pós-guerra e colegas de escola na Wentworth Primary School, em Dartford. Keith era filho único de pais de classe operária. Seu pai, Bert, era chefe de seção numa fábrica da General Electric. Criado ouvindo jazz, blues e os sons emergentes da música pop americana, ele cantava no coro da escola. Depois que sua voz mudou, perdeu interesse pela escola e começou a frequentar a sorveteria Dimashio, onde ficava ouvindo o jukebox. “Era o único pedacinho de América em Dartford”, escreve ele. “A vida era em branco e preto; o tecnicolor estava para chegar, mas em 1959 ainda não.” À noite, ele ouvia Buddy Holly, Eddie Cochran, Little Richard e seu ídolo, Elvis Presley, na Rádio Luxemburgo. Esses foram os anos do “Despertar”, a recepção entusiástica da música americana na Grã-Bretanha. Músico iniciante, Richards interessou-se pelos acompanhantes: o guitarrista de Elvis, Scotty Moore; o arranjador e trompetista de Fats Domino, Dave Bartholomew. No Sidcup Art College, escola que preparava gente atrás de um emprego na agência de publicidade J. Walter Thompson, Richards passava o tempo vadiando e escutando discos de blues. Então, em 1961, na estação ferroviária de Dartford, ele topou com Jagger, que, como ele descobriu, era fanático por blues e colecionador de discos. Jagger tinha todos os discos da Chess Records: Muddy Waters, Chuck Berry, Howlin’ Wolf, Willie Dixon. Os dois garotos ouviam os discos sem parar.

Jagger e Richards criaram uma banda chamada, no começo, Little Boy Blue and the Blue Boys. Na primavera de 1962, eles já tinham incorporado outro guitarrista maluco por blues, Brian Jones. No mês de janeiro seguinte, ganharam a companhia de um baterista com gosto por jazz, Charlie Watts, e um baixista, Bill Wyman, cuja principal qualificação era ser dono de um amplificador Vox. Esses eram os Rolling Stones.

Enquanto a banda tomava forma, Richards aprendia a copiar a simplicidade de uma nota só de B. B. King e os solos de corda dupla de T-Bone Walker – técnica que economizou dinheiro para a banda, porque podia “eliminar a necessidade de uma seção de sopros”. Richards e Jagger tinham uma ambição simples: só queriam ser “a melhor banda de blues de Londres e mostrar àquela gente o que era tocar de verdade”. Com devoção de monge, moravam em apartamentos baratos e ensaiavam a noite inteira. “Quem saía do ninho para transar, ou tentar transar, era um traidor”, relembra Richards.

A banda tocou em clubes nos arredores de Londres com nomes como Flamingo, Ealing, Crawdaddy, Marquee e Red Lion; e, nos fluidos dias de 1963 – enquanto os Beatles, uma banda relativamente veterana, estava em ascendência – os Stones lançaram seu primeiro single, um cover de Come On, de Chuck Berry. O disco disparou nas paradas e em uma semana os Stones eram estrelas. Foi o que bastou. “De repente, estavam botando a gente nuns puta ternos xadrez pied-de-poule e fomos levados pela maré”, diz Richards. Mas os garotos logo se livraram do look pseudo-Beatles. Se deram bem do seu jeito. No início, se apresentaram na abertura de shows de Little Richard e Bo Diddley (com quem aprenderam incontáveis lições de ritmo e teatralidade), e depois como atração principal, causavam tumultos onde quer que fossem.

“Na Inglaterra, acho que durante dezoito meses, nunca conseguimos terminar um show”, lembra Richards. O repertório curto deles tinha covers de Not Fade Away, I’m a King Bee e Around and Around, mas a gritaria era tão intensa que em algumas noites a banda tocava O Marinheiro Popeye só para ver se alguém notava. Os garotos jogavam tampinhas de garrafa e moedas; as garotas queriam despedaçar os Stones, tão profundo era o frenesi erótico. Ainda hoje, Richards parece assustado:

Jamais me esqueci do poder das adolescentes de 13, 14, 15 anos, quando estão em bando. Elas quase me mataram. Nunca temi mais por minha vida do que diante daquelas adolescentes – as que me asfixiaram me deixaram em frangalhos. Se você era apanhado por uma multidão frenética de adolescentes,  é difícil expressar o medo que elas provocam. Seria preferível estar numa trincheira lutando contra o inimigo do que encarar aquela onda assassina e irrefreável de luxúria e desejo, ou seja lá o que for aquilo – uma força desconhecida até por elas.

Depois de um show no norte da Inglaterra, a banda ficou no teatro,  esperando que a multidão fosse embora. Um velho zelador que havia ajudado na limpeza disse a Richards: “Show muito bom. Nenhum assento seco na casa.”

Quando os Stones foram pela primeira vez aos Estados Unidos, no verão de 1964, tocaram em shows depois de Bobby Goldsboro e dos Chiffons, e sofreram os insultos de Dean Martin, que os chamou de cabeludos primitivos. Chegaram até a dividir o programa com um contorcionista chamado “Incrível Homem-Borracha”, o qual, pensando bem, talvez tenha exercido uma influência decisiva nas momices de Jagger no palco. Foi somente quando, naquele mesmo ano, Jagger e Richards passaram a compor que os Stones começaram de fato a competir com os Beatles. Em 1965 lançaram Satisfaction. Num padrão que seria típico da colaboração entre os dois nas décadas seguintes, Richards criou o riff e Jagger entrou com a letra.

Na imaginação adolescente, a vantagem de ser membro de uma banda é que você acaba o dia na cama com a parceira, ou parceiras, que quiser. Não é bem assim, diz Richards: “Você pode estar nadando, ou comendo sua mulher, mas lá no fundo você está pensando sobre uma sequência de acordes ou algo relacionado a uma canção. Independente do que estiver acontecendo.”

Richards demonstra mais prazer quando descreve a sensação de tocar seu instrumento, em particular a guitarra elétrica que, diz ele, é “como se agarrar numa enguia-elétrica”. O momento de revelação em Vida é puramente musical e ocorre “no final de 1968 ou início de 1969”, depois que Richards descobre um dos segredos do blues. As seis cordas da guitarra são normalmente afinadas em mi-lá-ré-sol-si-mi. Depois de colaborar com o grande instrumentista e arranjador Ry Cooder, Richards pegou a afinação “em sol aberto”, em que a guitarra é afinada num acorde em sol: ré-sol-ré-sol-si-ré. Bluesmen do Mississipi como Robert Johnson, Son House e Charley Patton usavam essa afinação; Don Everly também, em Bye Bye Love. Richards retirou a corda mais baixa de uma Fender Telecaster afinada em sol-ré-sol-si-ré e produziu os riffs de Tumbling Dice, Brown Sugar, Honky Tonk Women, All Down the Line, Can’t You Hear Me Knocking, entre outros. Qualquer pessoa que tenha tocado numa banda de garagem nos anos 60 e 70 lembra da experiência de tentar tocar essas músicas e descobrir que elas não tinham o ronco, o som ressoante que Keith Richards produz em, digamos, Get Yer Ya-Ya’s Out!, o melhor disco ao vivo dos Stones. Agora, evidentemente, é possível ir ao You Tube, escrever, digamos, Brown Sugar, aula, e aparece um garoto de 14 anos com uma câmera de vídeo e uma guitarra, ensinando a usar a afinação em sol aberto e “tocar como Keith”. O próprio Keith explica melhor: “Se você está tocando o acorde da maneira certa, consegue ouvir um outro acorde soando por trás, que você não está tocando, mas que existe. Isso desafia a lógica. O acorde está lá dizendo: ‘Vem.’”

Keith Richards está com 66 anos. É avô. Fez uma cirurgia de emergência no crânio, embora por um motivo muito Keith Richards: caiu de uma árvore em Fiji. Ele diz que leva uma “vida de cavalheiro”. Gosta bastante das aventuras marítimas de Patrick O’Brian e dos romances de George MacDonald Fraser em que o protagonista tem 90 anos e se chama Flashman. Cabe informar que ele também caiu da escada de sua biblioteca. Antes, tinha um cachorro wolfhound chamado Sífilis, hoje tem um labrador amarelo chamado Abóbora. Ele e sua mulher põem Abóbora num jatinho particular e vão espairecer na propriedade que eles têm nas ilhas Turks e Caicos, no Caribe. Gimme Shelter para valer. Ele vive como um pirata do private equity.

A idade deu a Richards um pouco de compreensão a respeito de suas próprias contradições. Ele vibra com sua vida, mas também está consciente da natureza oca de sua imagem de fora da lei: “Não há como desatar os nós do quanto representei o papel que foi escrito para mim. O anel de caveira, o dente quebrado e o lápis de olho”, escreve. “De certo modo, a persona, a imagem de como eu era antes acaba sendo um grilhão. As pessoas ainda acham que eu sou um junkie. Faz trinta anos que larguei a droga! A imagem é como uma sombra comprida. Mesmo quando o sol se põe, ainda dá para ver. Acho que em parte é porque há tanta pressão para ser daquele jeito que você acaba se transformando, pelo menos até onde dá. É impossível não acabar sendo uma paródia do que você achava que era.”

Um dos momentos mais tocantes do livro é quando os jovens Rolling Stones chegam aos estúdios de gravação da Chess, em Chicago, a Meca do blues. Um operário está pintando o teto. O nome do operário é McKinley Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters. Os Stones estavam a caminho de uma vida de milionários e o mínimo que poderiam fazer era render homenagem aos seus heróis. Batizaram a banda com o título de uma música de Morganfield e cantaram louvores a ele e a todos os outros antepassados mais talentosos do que eles.

Richards havia escapado da Indesejada, mas não da dívida mais importante que tinha, a qual nunca deixou de reconhecer com lealdade: “Eu?”, disse Keith certa vez. “Eu só quero ser Muddy Waters. Embora eu jamais vá ser tão bom ou tão preto.”

"Curtindo adoidado"

A vida e as tentações de Keith Richards

por David Remnick

piauí

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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A "Mozipédia"

Esfinge de topete, Stephen Patrick Morrissey vem devorando quem tenta decifrá-lo há décadas – desde que alcançou a fama à frente da banda The Smiths, ainda nos anos 1980. Quem quiser se aventurar na árdua tarefa, tem agora um guia à mão: é a recém-lançada "Mozipedia - A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths", de Simon Goddard.

O tijolo de 768 páginas é exatamente o que o  título anuncia: um compêndio de verbetes em ordem alfabética com tudo sobre Morrissey: The Smiths, vida, músicos, ídolos, hábitos, preferências, amigos, cidades etc. Por exemplo: The Boy With The Thorn in His Side, primeiro single dos Smiths lançado no Brasil (e hit instantâneo nas rádios em 1985), relata “suas experiências pessoais em relação à indústria da música (...) e suas ansiedades sobre as conclusões equivocadas sobre ele publicadas na imprensa”, diz o verbete, entre  outras informações.

Eterna interrogação, sua orientação sexual é discutida no verbete “homossexualidade”, sem chegar à uma conclusão. De forma esperta, Goddard conclui citando uma entrevista  em que Morrissey responde  se ele era ou não gay assim: “Eu estou acima disso, para ser franco”. Nada mais Morrissey.

Tema de tese de doutorado

Ídolo de milhões e um dos roqueiros mais influentes das últimas décadas, o enigma Morrissey não assustou a professora baiana Renata Spínola. Fã “desde muito nova”, ela é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, aonde desenvolve  sua tese As canções que salvaram sua vida: reflexões sobre as noções de fã e fandom em Morrissey.

Como se pode imaginar, a Mozipedia tem sido uma mão na roda para Renata, que adquiriu seu exemplar na Inglaterra, quando lá fez sua pesquisa de campo, em 2011. “Fica claro para quem lê a Mozipedia que Simon Goddard é um grande admirador de Morrissey”, diz. “Há um cuidado, um zelo muito grande em apresentar as informações sobre ele, especialmente quando elas são de cunho pessoal”, afirma.

E nem poderia ser diferente, já que o ídolo costuma rogar pragas a quem se atreve a biografá-lo. “Talvez pelo receio de receber o mesmo tratamento, Goddard tenha sido tão cuidadoso nos verbetes sobre desafetos e temas polêmicos, como sua sexualidade ou o processo movido pelo baterista dos Smiths,  Mike Joyce”, percebe. Ainda assim, trata-se de “um livro indispensável para os fãs. E não só para eles”, diz Renata.

Mozipedia - A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths / Simon Goddard / LeYa / 768 p. / R$ 89,90 / www.leya.com.br

Entrevista com Renata Spínola

Fã desde "muito nova" do bardo de Manchester, Renata transformou seu interesse em Morrissey em tese de doutorado (em desenvolvimento) no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA, sob o título provisório "'As canções que salvaram sua vida': reflexões sobre as noções de fã e fandom em Morrissey". Em 2011, ela e o marido, o músico Arthur Caria (baixista do roqueiro baiano Pàulinho Oliveira) seguiram a turnê britânica do homem, cidade após cidade. Ela nasceu em Salvador e foi levada aos estudos de língua inglesa e literatura por influência das canções dos Smiths e Morrissey. É formada em Letras com Inglês, tem mestrado em Letras e Linguística pela UFBA. Atualmente é professora das Faculdades Maurício de Nassau. Nesta entrevista, a especialista fala sobre seu objeto de estudo, a Mozipedia e sua experiência cruzando o Reino Unido seguindo o assim chamado "Mais Adorável Ser Humano do Planeta".

Por que exatamente Morrissey é tão adorado? Quem é Morrissey? O que ele representa dentro da história do rock?

Renata Spínola: Como fã, e agora como pesquisadora, eu acredito que Morrissey seja tão adorado pelo fato de que ele próprio é um modelo de fã. Toda a sua produção apresenta uma forte interferência de seus ídolos e se constrói a partir da sua dedicação e admiração a eles. As frequentes remissões aos ídolos é um dos traços mais característicos de sua produção artística. Partindo da exposição de suas preferências, Morrissey destaca a condição de fã, dotando de importância este papel, e constrói um corpo de artista que é constituído pelo seu repertório de leituras, pelas preferências artísticas e pela sua relação com a cultura. Além disso, enquanto ídolo, Morrissey também define um padrão de comportamento para os seus fãs. Há em Morrissey uma preocupação intensa com a preservação da memória. Através da exposição de gostos e preferências, Morrissey oferece uma leitura particular acerca dos ídolos e suas produções, renova o interesse do público sobre eles e, acima de tudo, evita que caiam no esquecimento, conferindo-lhes permanência. O trabalho de preservação da memória, porém, não é desinteressado. Preservando os ídolos, ele preserva a si próprio, já que constrói um modelo de fã que é repetido e reencenado pelos seus seguidores. É ele quem define, com base em suas próprias ações, o comportamento que o seu fã deve adotar. Por outro lado, ao mesmo tempo em que é tão apaixonadamente amado pelo seu público, Morrissey é capaz de provocar recusas violentas. A sua atuação artística parece colocá-lo sempre entre extremos: ou é loucamente amado ou é ferozmente odiado. Acredito que o estilo provocador adotado desde o início de sua carreira, a transgressão às normas e aos modelos preestabelecidos (o que pode ser mais transgressor do que um ícone do rock que se declara assexuado e celibatário quando a tríade sexo, drogas e rock and roll era o comportamento esperado?), as bandeiras que Morrissey levanta – como o ativismo em favor da causa animal, por exemplo, ou simplesmente a sua inclinação às polêmicas, são alguns dos elementos que o posicionam e o associam de maneira muito forte ao contexto do rock, que se constitui exatamente como um espaço de convergência, de militância, de transgressão da norma. É isso que o define como artista e que o coloca definitivamente na história do Rock.

O que você achou da Mozipedia? Li uma critica que dizia que o livro era coisa de um fã para outros fãs. Você recomenda o Mozipedia para quem quer conhecer o artista ou só para quem já é fã?

RS: Fica claro para quem lê a Mozipedia que o Simon Goddard é um grande admirador de Morrissey. Há um cuidado, um zelo muito grande em apresentar as informações sobre o homem, especialmente quando estas informações são de cunho pessoal. Morrissey não costuma ter em alta conta aqueles que se aventuraram a escrever biografias sobre ele ou sobre os Smiths. Aliás, um dos livros mais conhecidos e vendidos sobre o The Smiths, o “Morrissey & Marr: the severed alliance”, foi repudiado por Morrissey e ao seu autor ele desejou que acabasse os seus dias num trágico acidente. Talvez pelo receio de receber o mesmo tratamento, o que seria uma morte quase real para um fã, Goddard tenha sido tão cuidadoso nos verbetes que definem os desafetos de Morrissey, naqueles que falam de temas polêmicos, como as questões acerca de sua sexualidade, ou naqueles que apresentam assuntos delicados como o processo movido pelo baterista dos Smiths, o Mike Joyce, na busca pela divisão igualitária dos royalties da banda. A Mozipedia é sem dúvida um livro indispensável para os fãs, mas não se restringe a este público específico. É um texto de grande valia para quem se interessa por música, cinema, literatura. Os verbetes apresentados por Goddard remetem, obviamente, a Morrissey e aos Smiths, mas trazem ricas informações sobre o cinema kitchen-sink, sobre a produção e a biografia de nomes como Oscar Wilde, James Dean, Elizabeth Smart, sobre bandas como o New York Dolls, Ramones e tantas outros temas que se acham ligados à produção de Morrissey. É, portanto, um texto fundamental para os iniciados na carreira de Morrissey e que desejam saber mais sobre o ídolo, é um texto esclarecedor para aqueles que ainda se acham presos a rótulos e ideias preconcebidas, como a classificação da música de Morrissey e dos Smiths na categoria pejorativa do “rock triste”, é um texto instrutivo para quem ainda nada sabe sobre o assunto e deseja saber. Neste estilo de vida apressado que parece ter sido adotado por todas as pessoas de nossa época e que acaba por restringir o tempo dedicado à leitura pelo prazer, um dos trunfos da Mozipedia é o fato de dispensar uma leitura linear, ordenada, podendo ser consultado de acordo com a necessidade e a curiosidade de cada leitor. 

Qual a maior surpresa que você teve lendo a Mozipédia? Um fato que você nunca imaginou e descobriu lendo este livro? E a maior decepção?

RS: O livro em si já foi uma grata surpresa. Encontrar disposto, num só lugar, diversas informações sobre Morrissey, desde detalhes sobre as canções e os discos lançados a uma extensa lista de suas influências artísticas, é como um tesouro para quem desenvolve uma pesquisa sobre o assunto. Não há dúvidas de que o livro tem ajudado e muito a minha pesquisa e tem me dado a chance de conhecer histórias divertidíssimas que despertam a curiosidade de qualquer fã, como, por exemplo, o episódio em que Jonnhy Marr toca os acordes que futuramente se transformariam na canção Hand in glove e, por receio de esquecer, mantém-se tocando no banco de trás de um fusca dirigido por sua então namorada Angie por quase dez km, até chegar à casa de Morrissey, onde havia o gravador mais próximo em que poderia registrar a ideia. Ainda não encontrei um assunto relativo a Morrissey que não tenha sido contemplado pela enciclopédia e nem mesmo experimentei qualquer decepção com as informações sobre Morrissey dispostas no texto. Procuro entender tudo que Morrissey faz de uma maneira contextualizada. Memo quando ele assume uma postura da qual eu discordo, acredito que tenha uma razão de ser. Uma coisa tenho aprendido desde que comecei a minha pesquisa sobre ele e, claro, com o auxílio de livros como a Mozipedia: nada em Morrissey é definido ao acaso. Vejo a sua produção musical e a constituição de sua persona como algo muito bem articulado, planejado, como um projeto cuidadosamente montado por ele e que até mesmo as contradições e paradoxos são partes integrantes desta performance.

Conte-nos um pouco de sua experiência pessoal quando você seguiu a turnê do homem em 2011.


RS: Foi um sonho realizado. Sou fã de Morrissey desde muito nova e a única vez em que ele esteve no Brasil até então tinha sido no ano 2000. Naquela época eu não tinha grana para sair de Salvador e viajar para o Rio, São Paulo ou qualquer outra cidade que o recebeu a turnê para vê-lo ao vivo. Em 2011, já cursando o doutorado e com uma vida financeira mais equilibrada, vi a chance de realizar dois desejos com o anúncio de uma nova turnê: o de vê-lo ao vivo e o de começar a minha pesquisa conhecendo um pouco mais sobre o lugar em que Morrissey iniciou a sua carreira: a cidade de Manchester. É interessante destacar que, como os shows aconteceram em cidades pequenas – as grandes cidades foram preteridas nesta turnê – era visível a movimentação que Morrissey provocava nesses lugares. Era gente de vários pontos do Reino Unido e da Europa, seguindo a turnê de carro, de trem, de avião, hotéis lotados, clones do Morrissey desfilando pelas cidades, filas que se formavam diante dos locais dos shows desde o dia anterior, fãs mais exaltados entoavam o já tradicional canto em que gritam o nome de Morrissey na mesma melodia da marcha patriótica americana “Stars and Stripes Forever” pelas ruas, em manifestações de adesão que eu só conseguia associar ao fanatismo dos torcedores em dia de jogo de futebol no Brasil. Foi uma experiência riquíssima. Além de testemunhar e vivenciar essas experiências de fã, tive a chance de vê-lo em várias performances ao vivo e, fugindo um pouco do roteiro dos shows, visitar a cidade em que ele nasceu e iniciou a sua carreira, conhecendo diversos lugares que se tornaram marcos para os fãs de Morrissey. Esta experiência saciou o meu desejo de fã e também rendeu parcerias interessantes. Com Luciana Kaross, estudante brasileira que desenvolve pesquisa de doutorado na cidade de Manchester, a parceria resultou na produção de um artigo publicado na revista acadêmica Vozes dos Vales (http://www.ufvjm.edu.br/site/revistamultidisciplinar/files/2011/09/Words-which-could-only-be-your-own_the-crossroad-between-lyrics-translation-culture-Brazilian-fans-and-non-professional-translators_luciana-1.pdf), Com Arthur Caria, companheiro de viagem e de vida que foi arrastado para o mundo de Morrissey desde que passamos a dividir o mesmo teto, produzi pequenos documentários dando conta da experiência de fã que sai de tão longe para acompanhar a turnê do ídolo (http://england-is-moz.blogspot.com.br/). Além da grata surpresa de conhecer e trocar ideias com toda a banda que acompanha Morrissey em turnê. Só faltou conhecer o próprio homem! Mas isto pode ser uma boa desculpa para uma próxima viagem!

Você pode falar um pouco do seu trabalho? Do que se trata? O que você defende em relação à Morrissey no Instituto de Letras da Ufba? O pessoal lá não estranhou seu tema não?

RS: A pesquisa que venho realizando como doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA, sob o título provisório "'As canções que salvaram sua vida': reflexões sobre as noções de fã em fandom em Morrissey", é exatamente sobre a faceta fã de Morrissey e como esta condição constrói um campo favorável à constituição de um público tão devotado a ele. Basicamente eu discuto a maneira como o seu discurso – e a sua produção como um todo – está impregnado pelas produções dos seus ídolos e pelo seu desejo de preservar esses ídolos no imaginário popular. Eu defendo a ideia de que Morrissey seria um “ultimate fan”, um exemplar da atuação do fã enquanto sujeito ativo e participativo. A produção de Morrissey está claramente envolvida com os seus objetos de admiração e pode ser definida como uma escrita em parceria com os ídolos. As constantes apropriações e referências explícitas permitem ao público enxergar a sua produção de maneira contextualizada, oferecendo um panorama fundamental através do qual é possível compreendê-la e criar um laço semelhante com o artista. A atuação artística de Morrissey, portanto, envolve um aparato que reúne, a um só tempo, a homenagem aos ídolos, a constituição de um corpo de artista que é formado, antes de tudo, por um leitor, por um admirador em diálogo com aqueles a quem admira, e a construção de um modelo de fã bem diverso daquele que era concebido como sujeito alienado, manipulado e incapaz de pensar por si. Esse fã que se desenha hoje, e do qual Morrissey pode ser considerado como um modelo, é um sujeito ativo, que participa de atividades sociais, que é produtor de um material que poderá até interferir na história do artista que admira. É claro que um projeto sobre a produção Morrissey chamou a atenção e provocou certo estranhamento quando apresentado pela primeira vez. Mas quando organizada e disposta em termos acadêmicos, fica impossível não despertar a curiosidade de conhecer mais sobre um material tão rico! É interessante que se antes Morrissey era um completo estranho, depois de iniciar a pesquisa em Letras, parece que ele foi adotado pelo meus colegas, professores e amigos que começaram a prestar mais atenção nele e passaram a compartilhar comigo todo tipo de notícia e informação sobre ele. E com o recente interesse do mercado editorial brasileiro em Morrissey – além do lançamento da Mozipedia pela editora Leya, a Globo acabou de arrematar, em disputadíssimo leilão, os direitos de publicação da sua autobiografia no Brasil – a minha pesquisa acabou se tornando um tema bastante atual e de interesse geral. Acho interessantíssimo que um cantor que está sem gravadora e sem lançar um disco novo desde 2009 tenha a capacidade de se reinventar e de renovar o interesse do público pelo simples fato de se manter como o velho Morrissey de sempre. 

por Franchico

rock Loco

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A página do programa de rock

A QUEM INTERESSAR POSSA: Os set lists de cada edição do programa de rock, que eram publicados aqui, agora estão sendo publicados na página do programa no facebook. Para acessá-la, clique aqui: https://www.facebook.com/pages/Programa-de-Rock/147455401938284?fref=ts


Burying my dreams ...

Em “Burying my dreams”, EP 7 polegadas lançado recentemente pela banda santista No Sense, pioneira do grindcore em terras tupiniquins, tudo é “old school”. A começar pela capa, que nos remete à do clássico eterno “scum”, do Napalm Death: um desenho da morte carregando as cabeças dos membros da banda – deduzi pela silhueta de uma delas, de bigodão e óculos escuros, o visual usual de Paulinho, baterista. O próprio formato do disco, em si, o bom e velho "compacto", é típico de quem não se rende completamente às dinâmicas da “modernidade”. Destinado a colecionadores, àqueles que amam mesmo a música e não se contentam em tê-la armazenada numa pasta em seu HD.

E é realmente gostoso abrir a capa, tirar de lá a bolachinha, apreciar o selinho com o já clássico logo “zoado”, pousar suavemente a agulha, ouvir o barulhinho da poeira nos sulcos e sentir, finalmente, o som explodir nos auto-falantes. E aí sim, vamos ao que interessa: o som!


Continua muito bom. A primeira faixa é bem minimalista: quando parece que a música vai começar, ela termina. E dá lugar a uma um pouco mais elaborada, no sentido “No Sense” do termo: “Spilling the holy shit”. Boa letra, muito bem encaixada na melodia. E, acompanhando pelo encarte, dá pra notar que Marly pronuncia perfeitamente as palavras, por trás do vocal “gutural”. Marly que, diga-se de passagem, está ainda melhor, como vocalista, que na primeira fase da banda, do início dos anos 1990.

Não se pode dizer o mesmo da faixa título, “Burying my dreams”, que vem a seguir: eu, pelo menos, não consegui acompanhar a letra pelo encarte. Ok, tá na tradição do estilo: até hoje me lembro que precisei de umas três audições pra sacar que Lee Dorian não pronuncia praticamente nada do que está escrito no encarte de “From slavement to obliteration”.

O lado B é ainda mais “enxuto”: começa com outro som curtinho e minimalista e prossegue com outra mais elaborada, só que desta vez com uma novidade: a letra é em português! E ficou bacana. Deu um toque mais “brasileiro”, realmente, à banda, lembrando os primórdios do metal em terras tupiniquins. E acaba por enfatizar o fato de que o No Sense é, realmente, uma espécie de “protótipo” de banda grind por aqui, ao unir o “sotaque” metálico, presente principalmente nos riffs e na afinação da guitarra, à estrutura das musicas em si, sempre enxutas, sem “gorduras”. Punk.

Encerrando o disco, outra tradição: uma “musiquinha” vapt vupt, “ignorance and death”, onde só a frase é pronunciada sobre um “papôco” instrumental. Pode soar meio clichê, mas acaba reforçando ainda mais o caráter “tradicional”, “old school”, da bolachinha.

Vida de vocalista de grindcore é difícil como o que ...
Conheci o No Sense em seus primórdios, ainda no início dos anos 1990, quando ouvi falar de uma banda “grind” da baixada santista que tinha uma garota de apenas 13 anos nos vocais. Só isso já era mais do que suficiente para chamar a atenção, mas ao ouvir a primeira demo fiquei impressionado: faziam um som que ia além do barulho pelo barulho e conseguiam compor bem com arranjos criativos. Virou “Cult”. Lembro que o primeiro EP que chegou na Lokaos – loja de Silvio, da Karne Krua, especializada em rock “underground” – foi disputado a tapas por aqui. Eu ganhei a disputa, e guardo até hoje o “troféu”. Depois lançaram um “full lenght”, “Cerebral cacophony”, ainda mais brutal e “anti-musica”, pela tradicional gravadora Cogumelo, de Belo Horizonte.

Acabei virando amigo dos caras – principalmente de Marly e de Ângelo, então guitarrista - , porque no underground é assim: “no gods, no masters, only friends”. Bom, nem sempre – friends. O fato é que eu sempre dava uma descida a Santos quando ia a São Paulo para vê-los. Não esqueço um fim de semana que passei na casa do Ângelo onde experimentei pela primeira vez as delícias da comida vegetariana. Despedi-me dele num domingo: eu ia voltar pra casa de minha tia em São Paulo, ele ia ajudar a organizar um protesto em frente ao Mcdonalds.

Inesquecível também o dia em que perdi o show do Nirvana porque me desencontrei da garota que havia comprado meus ingressos devido a um engarrafamento que peguei na subida da serra – havia descido pra ver um ensaio do No Sense. Não me arrependo, foi excelente o ensaio, tenho as fotos até hoje. Mas perder o show do Nirvana foi traumático ...

A banda acabou logo depois mas, para surpresa geral, voltou com força total, já no século XXI, e segue firme fazendo shows e lançando discos – antes deste compacto lançaram o EP “Obey”, em CD. Seu próximo lançamento será a reedição da primeira demo-tape em vinil, num split dividido com os cearences do Obskure.

Imperdível!

A

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"Reverendo", outra entrevista ...

Poucos jornalistas de música são tão reverenciados no Brasil quanto Fabio Massari. Não por acaso, ele é carinhosamente conhecido como “Reverendo” – desde os tempos em que apresentava o programa Lado B na MTV Brasil. O fato é que poucos jornalistas especializados – talvez nenhum – conhecem tão bem os subterrâneos da música pop planetária quanto Massari. E isso é facinho de comprovar: basta uma passada de olhos em seu novo livro, Mondo Massari, uma coletânea de textos e entrevistas que acaba de chegar às livrarias.

A seguir, entrevista por email com o Reverendo, onde ele fala um pouco de si mesmo, do livro, Frank Zappa, Islândia, MTV Brasil e – com inesperado entusiasmo – do nosso querido rock baiano. Mais uma da "Escarro Napalm Unauthorized reproductions" - #sqn: O Franchico já me autorizou a reproduzir qualquer texto de seu blog, desde que dados os créditos e postados os links, evidentemente ...

Pode nos contar um pouco sobre como você começou nesse negócio de ouvir rock – e depois, de escrever sobre isso?

Fabio Massari: Acho que dá pra dizer que começou naturalmente, sem forçação de barra ou com algo que tenha deflagrado o interesse. Minha família não é, digamos, musical – mas a vitrola estava lá e discos circulavam. E curti rádio desde sempre: música e todo tipo de conversa, falação mesmo, programas esportivos, humorísticos etc. Sou radialista de formação e predileção! O rock chegou no embalo de Elvis, Beatles, Secos & Molhados, Elton John, Suzi Quatro, Raul Seixas e, claro, Alice Cooper: aqui sim, o momento de revelação, transformação. Muscle Of Love (1973) é o LP que inaugura minha coleção (pelo menos decidi assim num artigo para a saudosa revista General), marco-zero (ainda que não tenha sido o primeiro de fato).

Desde os tempos da MTV, você era, volta e meia, referido como especialista em Frank Zappa (1940-1993),  compositor de rock com bagagem erudita e sobre quem você escreveu o livro  Zappa: Detritos Cósmicos. Como você avalia o seu legado?

FM: Zappa tinha mesmo essa “bagagem erudita”, ainda que haja divergências entre especialistas quanto à intensidade desses “estudos”. Acho que era tudo mais intuitivo e a pesquisa era conduzida à sua maneira, sem muito envolvimento com formatos acadêmicos. Mas ele se deliciava com outros gêneros e subgêneros. Nas suas composições (vale lembrar que se definia pura e simplesmente como “American composer”) tinha de tudo: jazz, blues, psicodelia, colagens vanguardistas, marchinhas mil e... no fim das contas, sua música não se parecia com nada disso. Além das possibilidades infinitas do legado, acho que destaca-se a postura de um artista em plena sintonia com seu tempo, que não tinha medo de encarar os “atrasa-lado” corporativos e que se dedicava à sua arte – e aos fãs – com todo o carinho e respeito do universo.

Lembro que no Lado B vc entrevistou em uma ou duas ocasiões a banda baiana brincando de deus, pioneira do indie rock brasileiro (e orgulho de parte dos doidões locais, fãs do chamado - por aqui, de forma meio jocosa - "rock triste"). Você tem alguma lembrança da brincando de deus? Considera relevante alguma outra banda da cena baiana?

FM: Como assim? Mas é claro! O rock triste fez muito parte da trilha sonora do Lado B (e atividades televisivas com nossa chancela). A brincando de deus era uma das prediletas, sempre muito legal encontrar o pessoal – e nos batemos muitas vezes nos festivais da vida. O Messias (Bandeira, vocalista) sempre foi um cara muito interessante de entrevistar e de conversar na camaradagem, fora das câmeras. Sempre teve um discurso elaborado, consistente, pensava a banda, a cena em contextos bem demarcados. Era mesmo bem interessante. Aliás ele foi um dos responsáveis por irmos cobrir a cena in loco, no histórico festival Boom Bahia. Na verdade, esse momento anos 90 me pareceu muito “quente” para a cena local. De minha parte, curti muito várias bandas. Estão todas aqui (cassetes, CDs e uns vinis legais). (Dr.) Cascadura (clássico ainda subestimado) e Dead Billies (a certa altura, a melhor banda “ao vivo” do país, talvez do planeta). E Inkoma, Lisergia, Dois Sapos & Meio, Saci Tric, Crac!, Úteros em Fúria e Treblinka. E a mais espetacular gema discográfica (CD-R) da divisão baiana da minha coleção: Guizzzmo! Viva o Grande Irmão (referência a Rogério Big Brother - ou Big Bross -, produtor local).

A geração da qual a brincando de deus fez parte - a primeira turma do indie brasuca, incluindo Pin Ups, PELVs, Killing Chainsaw, Low Dream, Second Come e Mickey Junkies, entre outras - é hoje meio que desconsiderada pela geração pós-Los Hermanos: por que cantavam em inglês e não reverenciavam nossa MPB, entre outras razões. Como você vê isso? Essa geração merece uma revisão crítica?

FM: Deveria existir uma revisão crítica e pronto. São muitos vetores nesse gráfico das percepções críticas. É possível que haja pontos de contato entre essa turma  90’s com os “pós-Los Hermanos”. A questão é a falta de “estudos” nesse sentido, aquele velho papo de resgatar algo das nossas heranças culturais. E do ponto de vista do mercado também: onde estão os discos comemorativos, especiais, boxes com fotos e textos?

Você escreveu um livro sobre o rock islandês, Rumo à Estacão Islândia. Porque? Ele é de fato extraordinário? Ou você foi movido pelo exotismo da coisa?

FM: O projeto era, acima de qualquer coisa, pessoal, de corte discográfico-existencial! Investigação que poderia ter sido na Nova Zelândia ou  Bahia. Discos e personagens e algumas de suas histórias. No caso da Islândia, ela possui cena riquíssima de sons e é um  lugar loucamente belo!

Ainda existe lugar nas rádios comerciais para programas como os seus ou só na internet?

FM: Nas comerciais o espaço é cada vez menor, sem dúvida, mas não é impossível. Na net o que mais existe é espaço para programas autorais, convencionais ou não.

Qual foi o critério de seleção para os textos do livro?

FM: Mondo Massari reune o material que produzi com essa marca. Programa da MTV (no livro conto do surgimento e dou uma amostra das entrevistas), colunas na Rolling Stone e Yahoo. A segunda parte traz  entrevistas do programa ETC, que apresentei na Oi FM até o começo de 2012. Como o ETC quase se chamou Mondo Massari, fecha-se um ciclo: TV, revista, net e rádio. Um diário de bordo geral da minha Enterprise pessoal.

Como foi para você ver a MTV Brasil acabar no ar?

FM: Trabalhei lá de fevereiro de 1991 a fevereiro de 2003: 12 anos de muita coisa legal realizada, tudo certo e resolvido. Foi legal ter participado da despedida. Só tenho curiosidade para saber o que vai ser do arquivo da MTV Brasil: Que fim vai levar? Quem vai levar e para fazer o que?

Que grande banda ou ídolo (vivo) vc gostaria de entrevistar mas ainda não teve oportunidade? E o que vc perguntaria à ele (ela)?

FM: Não sei nem por onde começar! David Bowie e Tom Waits e Les Claypool e Robbie Robertson...

Grandes selos costumam ser associados a grandes cenas. Seattle, Sub Pop. Madchester, Factory. Bay Area, Alternative Tentacles. E por aí vai. Que outras cenas / selos ainda pouco conhecidos você poderia nos recomendar?

FM: Essence Music, de Juiz de Fora.

Você tem alguma antena escondida acoplada à nuca? Aonde posso conseguir uma pra mim também? Ou é de nascença?

FM: Se tenho ainda não percebi nem localizei; mas se tenho, tenho certeza de que vossa excelencia também tem!

PROSA CATIVANTE DO REVERENDO CONSERVADA NAS PÁGINAS DE MONDO MASSARI

Nos anos 1990, quando a informação era privilégio apenas de rádios, TVs e jornais, quem queria ouvir o que havia de melhor, mais novo e instigante no rock planetário tinha destino certo: o programa Lado B, da MTV Brasil. O apresentador, um sujeito magro, simpático e muito bem falante, era o jornalista e radialista Fabio Massari.

À frente do Lado B, o Reverendo Massari catequizou gerações de jovens que hoje tentam seguir seus passos na incessante busca pelos – como ele costuma dizer – “bons sons”. Busca que ele jamais cessou, como se pode ver nesta preciosa coletânea sob a chancela Mondo Massari – que já foi programa na MTV (pós-Lado B) e coluna na Rolling Stone e Yahoo.

Está aqui, conservado para a posteridade, o cativante (e criativo) discurso oral do radialista, que fala do que há de mais obscuro e interessante na música pop com tanta propriedade que é impossível não querer ouvir os artistas que ele recomenda.

No livro, entrevistas com gente do porte de John Cale, Marianne Faithfull, Karlheinz Stockhausen e Glen Matlock, além de bandas maneiríssimas como Yo La Tengo, X, Television, The Bellrays, The Mars Volta, Cavalera Conspiracy, The Kills e muitas outras. Há ainda relatos de shows (The Police em 1982), artigos, resenhas e muito mais.

Uma bíblia dos bons sons para aficionados e neófitos.

por Franchico

rock loco

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sábado, 7 de dezembro de 2013

The Baggios no Goiânia Noise Festival

The Baggios se destaca na primeira noite do Goiânia Noise tocando como se estivesse em casa; Delinquentes também envolve grande público enquanto o bom show do Diablo Motor é visto por poucos. Foto: Marcelo Costa/Scream & Yell.

Não deixa de ser curioso que num festival com nada menos que 15 bandas tocando sem parar em uma única tarde/noite, o melhor show tenha sido realizado justamente pela formação mais enxuta. Pois foi o que aconteceu nesta sexta, na abertura do Goiânia Noise Festival com o The Baggios. E quem diz é o público que se acotovelou para vê-los, de longe o maior de toda a sexta, à exceção do show do Exploited (veja como foi), única atração internacional desta 19ª edição do festival. O grupo, na verdade um trio à Experience, de Jimi Hendrix, incompleto, sem baixista, é de Aracaju e se vale da perícia técnica do guitarrista Júlio Andrade e do feeling que ele tem ao tocar o instrumento.
Mas nem parece. O guitarrista sobe no palco com um típico figurino de passista de escola de samba do carnaval dos anos 20, com chapéu e tudo, e entrega muito mais do que promete. É o show de lançamento do álbum “Sina”, e em “Sem Condição” ele despeja um riff pesado e colante que arrebata o público. Há efeitos nos vocais que funde a massa sonora com a guitarra como se fosse uma coisa só, mas que falta faz um baixista! Em “Pegando Uma Punga”, um dedal faz o efeito slide guitar cuja introdução lembra as paragens de um Lynyrd Skynyrd – interiorano como o Baggios - em começo de carreira. Uma pena o tempo curto – só o headliner tem mais de meia hora para tocar – no qual só cabem oito músicas.
O que falta o Baggios – uma banda – sobra ao Diablo Motor. O quarteto é do Recife e faz um rockão dos bons, com referências ao stoner rock, só que com músicas mais curtas e certeiras, cheias de refrães colantes. Caso de “Não Quero te Entender”, que abre o show em grande estilo. Mas o que o Baggios tem de sobra, falta ao Diablo: público. E justamente em Goiânia, sede da Monstro Discos, que lança o álbum da banda, e onde esse tipo de som é tido como trilha sonora oficial. É uma pena que poucas pessoas tenham visto o grupo tocar porradas como “Sem Moderação” e “Cafa Song”, essa dedicada aos cafajestes, num dos melhores shows do Noise desse ano.
Mas poucas bandas têm o domínio de palco e do público como o Delinquentes, que vem para mostrar que o Pará não vive só de guitarrada e de música de gosto duvidoso e visual borrado. O grupo, veterano, tem um entrosamento espantoso sobre o palco, o que resulta seguramente no melhor show entre as bandas de hardcore, punk e adjacências que tocaram antes do Exploited. O perturbado vocalista Jayme Katarro tem o público na mão e comanda a maior roda de pogo do festival. O som da banda há tempos deixou de ser o hardcore de raiz e hoje emana um peso extraordinário, incluindo referências ao metal contemporâneo: uma massa sonora que garante pogo, bateção de cabeça e tudo que não pode faltar num show der rock pesado de verdade.
Outros veteranos que fizeram bonito, mais cedo, foram o Sangue Seco e o Ressonância Mórfica. O primeiro, com um punk rock oitentista dos bons, com várias referências ao Cólera e ao Inocentes, muito embora tenham incluído o hino “Grandola Vila Morena”, consagrado pelo 365, no repertório. Vale o final com a genial “Eu Quero Que Você Morra”, cantada a plenos pulmões pela plateia. Já no Ressonância, o que conta é o extremo, o grind, o crust, o esporro, a porrada na cara. Não por acaso o grupo gravou uma faixa para o tributo de bandas brasileiras ao Napalm Death e tocou no show, mesmo que não desse para identificar qual música foi a escolhida. Mas e daí? O que importa é que o Mal esteve presente durante todo o show, um dos mais sombrios de toda a noite, que terminou com o público “cantando” em cima do palco.
Quem poderia estar num patamar diferente é o Zefirina Bomba, cuja proposta de tocar hardcore com um violão todo detonado e transformado numa poderosa arma acaba caindo no lugar comum por conta de um repertório um pouco repetitivo. Ao menos se consideramos o show desta sexta; vamos renovar, rapaziada. Num espécie de bloco “classic rock” em plena noite punk/hardcore, caiu muito mal a escalação do Soothing, sobretudo por tocar próximo das atrações principais da noite. Isso porque embora o grupo tenha músicos experientes, a formação ainda é insipiente e não sabe para onde ir, apostando em rock progressivo/fusion com dois vocalistas que não valem por um; vamos ensaiar e tocar mais, pessoal.
Melhor para o Galo Power, que, ao iniciar o show antes que o do Soothing acabasse, roubou-lhe o público. O grupo, este sim bem ensaiado, só tem evoluído, fazendo versões casa vez mais trabalhadas e ao mesmo tempo com improvisações das músicas. A grooveada “Big Momma” e a enguitarrada embalagem dada à boa “Tales Of Life”, no encerramento que o digam. Mais cedo, o Bad Matters se arriscou fazendo o rock parecido com o do Diablo Motor, mas ficou devendo mais músicas boas, e menos decalcadas do Queens Of The Stone Age. Já o Evening não consegue esconder as raízes noventistas que incluem o grunge de Mudhoney e o nu-metal esporrento do Korn em início de carreira. E o trio ainda vem para o festival da importância do GNF com um guitarrista tapa buraco. Aí, não.
Quem abriu os trabalhos foi o Expressão Urbana, com um punk rock anos 80 ainda bem ingênuo. A formação com duas guitarras não se explica, mas como vocalista solo, um dos guitarristas fica meio perdido. Já o Shotgun Wives é um equívoco já na paisagem do palco. Cinco sextos da banda usam óculos de aro gigante e os instrumentos – escaleta, banjo - ligam a turba ao famigerado indie de quermesse que não faz o menor sentido. Assim como não se faz necessário o outro extremo: uma banda feminina – caso das Radioativas - que vai fundo em clichês do rock que bandas como o Velhas Virgens fazem com muito mais vigor. Ou, ainda o remi-remi hip hop do Calango Nego, cujo show até agora não deve ter começado. Saiam dessa pessoal.

por Marcos Bragatto

rock em geral

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