Talvez você não conheça esta senhorita na foto ao lado em pose do tempo em que ainda era modelo, mas já deve ter ouvido falar de seus filhos Iggor e Max, criadores do Sepultura. Depois de superar a morte do marido, o alcoolismo e a briga dos filhos, Vânia Cavalera soltou a voz para a Revista Trip deste mês.
A trilha sonora da vida de Vânia Cavalera não podia ser outra que não o rock. A bossa nova – que ela sempre achou chata – ou o balanço da MPB de Elis e Chico não combinam com a série de eventos que ela teve que encarar. Roberto Carlos ela até chegou a escutar, mas “jamais compraria um disco”. Mãe de Max e Iggor Cavalera, é ela a maior incentivadora e o pulso feminino por trás da mais famosa banda de metal do Brasil, o Sepultura.
Em setembro de 1979, Vânia, o marido e os três filhos, incluindo Kira, de 2 anos, preparavam-se para uma festa infantil na casa da sogra dela, em São Paulo, onde moravam. O evento seria o último antes da mudança da família para Roma, para onde o pai dos meninos, um italiano que trabalhava no consulado, seria transferido. Mas eles nunca embarcariam. Horas antes da festa, a caminho da represa de Guarapiranga, Graziano Cavalera infartou aos 40 anos de idade e morreu no carro onde estavam os garotos de 9 e 10 anos e um sobrinho. “Olhei as crianças pequenas e virei um robô, congelei o cérebro. Não dava tempo de sofrer. Fui trabalhar no consulado como telefonista, mas em 1981 resolvi voltar para Minas, primeiro para a casa dos meus pais, de onde eu havia saído fugida para ser modelo no Rio e em São Paulo. E depois em uma casa alugada, que mais tarde viraria o QG do Sepultura.”
A ampla casa da rua Dores do Indaiá, em Belo Horizonte, vivia cheia dos – apelidados por ela – camisas pretas. “Depois da morte do meu marido, a vida passou a ser os meninos e os amigos deles. Não era apenas uma relação de mãe e filhos, nós nos protegíamos, sempre fomos muito cúmplices.” Na época, Vânia sofreu preconceito das mulheres da cidade e quase não tinha amigas. “Era difícil até arrumar emprego, as mulheres viravam a cara para mim, tinham medo de uma ex-modelo viúva na cidade. Vivia com o dinheiro da pensão, porque não tinha reservas. Vendi joias, perfumes, faqueiros; meu marido não pensava no futuro. Dizia que só precisava deixar cultura e amor para os meninos. Aos 12 anos, eles iam para a escola caminhando para economizar no transporte e nunca me pediram nada”, lembra.
Incentivado pelo pai, que adorava música (de ópera a Led Zeppelin), Iggor começou a tocar bateria aos 6 anos. Depois da tragédia, encostou as baquetas até os 13, quando voltou para tocar com os amigos e o irmão. “Eles criavam as músicas na minha sala e ensaiavam na casa do [baixista] Paulo Xisto. Mandavam fitas para tudo o que era rádio e gravadora. Cheguei a acompanhar os meninos em shows para cinco, dez pessoas.” Aos poucos, a banda passou a se apresentar para plateias mais gordas, e os convites para tocar fora de Belo Horizonte ficaram mais frequentes. “O diretor da escola deles gostava tanto da banda que fazia vistas grossas para as faltas”, conta orgulhosa. Mas quando o número de shows em São Paulo cresceu não deu mais para segurar. “O Jairo Guedes, baixista da formação original, já havia sido substituído pelo Andreas Kisser, que veio de São Paulo para morar na minha casa, como um filho, estudar na mesma escola dos meninos, tudo igual. Um dia, sentei com eles na sala e disse: ‘Temos que conversar’.”
Lição de casa ou heavy metal - Vânia mandou sem rodeios: “Ou vocês param de tocar ou largam a escola e levam a banda muito a sério”. Os meninos fizeram lição de casa pela última vez na oitava série, e a mãe passou a ser chamada de louca pelo bairro. “Nunca achei que o plano ia dar errado. Depois daquele dia eles ficaram ainda mais comprometidos. Eu cortava o cabelo deles, pregava tachas nas jaquetas de couro, ajudava a rasgar o jeans e quando a turma de São Paulo ia para lá ficavam dezenas de ‘camisas pretas’ em casa”, lembra. “Todo mundo achava que era uma molecada doida, que rolava droga, sexo, bagunça. Mas na verdade o que a gente mais gostava era de jogar War, tomar tubaína e comer pastel de banana. Droga era absolutamente proibido, eu dava geral nas mochilas, e na única vez que achei maconha joguei fora na frente de todos”, continua a senhora de 67 anos. “Uma vez uma camisa preta bebeu no show e vomitou no meu tapete. Levei-a para o quintal, mostrei a mangueira e o sabão e a fiz lavar.”
Apesar de ser rígida em relação a bebedeiras e drogas, Vânia escondia um problema. Antes de perder o marido, a ex-modelo da TV Excelsior tinha uma vida de classe média alta. Frequentava e oferecia jantares a embaixadores, usava joias, roupas de grife e, secretamente, bebia além da conta. “Eu tinha o hábito de tomar cerveja em canecas, ninguém notava. Nunca fui bêbada de dar escândalo, passar mal. Os jantares na minha casa eram chiques, homens de terno, mulheres de longo. Quando percebia que estava passando da conta e queria beber mais, ia para o quarto e sumia da festa”, revela. A matriarca dos Cavalera frequentou reuniões do AA por quatro anos, conseguiu parar por longos períodos, teve recaídas, procurou ajuda em centros kardecistas e hoje está limpa. “Tenho o maior orgulho da minha mãe por ela ter vencido o álcool, ela é a pessoa que mais acreditou na nossa carreira, lutou contra tudo e todos. Foi um dos fatores mais importantes para a nossa formação como músicos e fora da banda”, comenta Iggor.
Quando o Sepultura estourou em São Paulo, Vânia teve que tomar outra decisão. Em segredo, foi até a capital paulista durante um fim de semana e alugou um apartamento dúplex no bairro de Santa Cecília. De volta a Belo Horizonte, contou a novidade aos cabeludos, vendeu o carro, uma Caravan, ao dono da mercearia para quitar a dívida de três meses acumulada e se mandou com a banda e a filha mais nova. “Depois que eles assinaram contrato com a gravadora, lançaram CD e começaram a fazer turnês, vi que tinha feito a aposta certa. Lembro que no primeiro Rock in Rio não tive dinheiro para mandar os meninos para o festival. E, no ano seguinte, os garotos no palco. Parei de me preocupar com a carreira deles, mas, como mãe é mãe, perdi o sono por causa das brigas de gangues, tinha medo dos carecas do ABC”, conta a matriarca, que nunca mais teve namorado “porque os filhos eram muito ciumentos”. “Uma vez comecei um caso com um produtor deles, e para nos separar Max inventou que o homem era drogado.”
O calvário Cavalera - No dia do famoso show gratuito da banda na praça Charles Muller, em frente ao estádio do Pacaembu, no ano de 1991 (quando um adolescente foi assassinado), Vânia mal conseguia acreditar no sucesso dos filhos. Horas antes da apresentação, olhava milhares e milhares de “camisas pretas” e se emocionava. “É difícil compreender hoje, mas o rock no Brasil era uma cultura nova. E mesmo trabalhando na produção daquele show não podia imaginar que seria algo tão grandioso. Fui então até a polícia solicitar mais segurança e mostrei ao delegado uma fita com um show de metal gringo. Queria mostrar a ele que as rodas que os fãs faziam não eram briga, eram um jeito de dançar, de soltar energia”, explica, antes de lamentar o incidente.
Com o início da turnê internacional do Sepultura, Vânia, que até os 40 anos não tinha nenhuma tatuagem, mudou com a tropa para os EUA, virou avó, acompanhou as gravações de álbuns e clipes, se descabelou com músicos gringos que misturavam feijão com estrogonofe nos almoços de fim de semana e conviveu com a nata do rock. “Era uma delícia, eu conversava com o Ozzy, um lesado muito educado, e brincava com os filhos dele. Aliás, como aqueles meninos ficaram feios, não?”
Os bons tempos duraram até 1997, quando devido a um desentendimento entre a banda e a então empresária e mulher de Max, Glória Brujnowski, os irmãos deixaram de se falar. Max defendeu a mulher, deixou o Sepultura, entrou para o Soulfly, e Vânia enfrentou dez anos de silêncio entre os filhos. “Foi terrível ver os meninos separados depois de tanta dedicação. Eles já voltaram a se falar, até levaram flores para o Iggor no aeroporto quando ele foi até os EUA para rever o Max, mas nunca mais almoçamos na mesma mesa. Esse ainda é o meu sonho”, desabafa. “Um dia o Mike Patton [Faith No More], que vivia lá em casa, foi me visitar e disse que chorou ao saber da separação. No fundo os meninos brigaram sem nunca discutir. Cada um ficou do lado da sua mulher, mas não existiu uma briga direta entre os dois. Eu digo que se eles ficassem viúvos voltariam a se falar rapidinho”, brinca.
Mesmo depois das pazes entre os filhos, Vânia enfrentou outra pedreira: em 2008, a caçula Kira foi diagnosticada com lúpus, e para colaborar com o tratamento ela se viu obrigada a revelar aos médicos que a garota é adotada. “Minha terceira filha morreu no parto. Quando voltei para casa sem o bebê fiquei maluca. Pouco depois, um médico me ligou do mesmo hospital, o Santa Joana, em São Paulo, e disse que uma criança nascida ali havia perdido os pais e ia para adoção. Senti que ela deveria ser minha, e meu marido me fez jurar que jamais revelaríamos o segredo. Foi muito doloroso para a Kira, mas agora estamos bem. Fiz o que podia pelos meus filhos, e por isso tatuei esse punho forte no meu peito e os dizeres ‘Missão Cumprida’. Na perna tenho um S, de Sepultura”, conta enquanto arruma os dreads. “Para garantir um final feliz não quero ser sepultada. Quero minhas cinzas jogadas na avenida Paulista, no dia da Parada Gay.”
Agradecimento: Rotisserie di Napoli – O melhor frango assado de São Paulo
Texto por Kátia Lessa
Fonte: Trip
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