sábado, 24 de janeiro de 2015

Tirem as crianças da sala ...

Vale a pena ...
Adofo Sá - Jornalismo é vocação. Uma vocação de merda, por sinal, que não dá grana e ainda pode levar a uma decapitação pelas mãos de um Estado Islâmico da vida. Veja o caso recente do Charlie Hebdo e contextualize a profissão em Sergipe e o Nordeste, onde ainda reina o coronelismo e os meios de comunicação pertencem a duas ou três famílias. Mesmo que eu tivesse juntado todo dinheiro que ganhei publicando matérias ao longo de 20 anos, não daria nem pra pagar a impressão do livro.

JD - Você pegou a contramão da história, concorda comigo? Justamente quando meio mundo se apressa em decretar o fim dos suportes analógicos e a morte do impresso, em plena era do streaming, o cara me aparece com um livro "de carne e osso". Ainda dá pra botar fé nessa entidade misteriosa, o leitor?

120 Dias de Sodoma, quinze anos depois ...
Adofo Sá - Não tenho um pingo de fé na humanidade, e boto menos fé ainda no leitor. Mas discordo, em termos.  Hoje em dia se publicam mais livros do que nunca, a tecnologia barateou os custos de produção e até fanzines são feitos em gráfica. A internet quebrou as pernas dos grandes mercados culturais estabelecidos em alicerces corporativos, mas acabou ajudando muito a produção independente ao facilitar o acesso à informação e à divulgação do trabalho. Comecei com o blog como uma alternativa barata à autopublicação, processo que eu abracei nos anos 90 com os zines. Ao longo dos anos 2000, blogs perderam espaço pra redes sociais e a informação imediata se sobrepôs ao texto, à pesquisa e até mesmo à credibilidade - a notícia que você lê no Facebook muitas vezes não é verdadeira. Mas o incômodo só existe pros jornais, revistas e TVs, da mesma forma que as gravadoras se foderam com o livre compartilhamento de MP3. No underground a coisa vai muito bem, obrigado.

The Renegades of punk
O leitor sempre existirá. Mesmo que role uma guerra atômica e não haja mais fornecimento de água, eletricidade e internet, os livros que não forem queimados nas explosões continuarão aí, prontos para ser lidos. Não precisa ligar em nenhuma tomada, nem ter senha de conexão wi-fi.

Agora, é verdade que as pessoas lêem cada vez menos, estão aí os zeros na redação do Enem pra comprovar. Ler é poder, quem não lê tem mais é que se foder.

JD - O Viva La Brasa se detém sobre um universo muito específico, habitado por tudo quanto é tipo de freak. Os papocos do underground interessam a quem, além de seus próprios habitantes? 

Ferdinando Blues Trio
Adofo Sá - O livro não foi feito pra agradar. Não tenho a ilusão de falar a todas as pessoas, até porque eu conheço muita gente com quem não quero nem falar. O público-alvo são pessoas que entendem a viagem e curtem o universo retratado ali: cena independente, histórias em quadrinhos e estados alterados da mente. Não é pra toda a família. Se quiserem usar como livro de mesa, tirem as crianças da sala.

JD - O lançamento do Viva La Brasa tem tudo para se transformar numa grande congregação de malucos e afins. O livro leva a sua assinatura, naturalmente, mas as quase 300 páginas do volume celebram os feitos de uma geração inteira. O barato é coletivo?

Adofo Sá - O barato é louco, o sistema é bruto e o projeto é coletivo como um ônibus lotado. Banquei todo o livro com grana do próprio bolso, quanta gente você conhece que faz isso? Vivemos num estado onde grande parte da arte é subsidiada com verba pública, nisso eu tô indo na contramão. Sempre gostei de trabalhar com colaboradores, desde os zines nos anos 90. Ganho a vida com audiovisual e sei da importância do trabalho em conjunto. Por isso, fiz questão de assinar o livro "Adolfo Sá & amigos".

A grande congregação de malucos e afins aconteceu ontem - com direito, inclusive, a presenças ilustres, como as de Anastácio "Tchescobody Happy Blusk Thogheter´s night", vulgo "Tacinho", da Sublevação, e Gabbirin Nagal Gibborin AKA Villas Parakas, vulgo Bilal, o rei do metal - que achou tudo uma porralouquice e na real nem sabia o que estava acontecendo. Mas o fato é que a rua de Lagarto, no centro, onde fica a Caverna do Jimmy Lennon, quase ficou interditada, de tanta gente que se aglomerou na porta. A todo momento Chapolin (apelido do proprietário do estabelecimento) passava com seus asseclas com mais levas de cerveja e gelo. Lá dentro, no inferninho - literalmente falando, já que os ventiladores e ar-condicionados da casa não dão conta da refrigeração - algumas das melhores bandas da cidade se revezavam no palco. Karne Krua fez um ótimo show, como sempre, a despeito do publico ainda um tanto quanto morno. Idem para a Renegades. O público só começou a se animar pra valer na terceira apresentação, de Ferdinando Blues Trio. Deve ter sido o álcool fazendo efeito. Foi nessa hora, também, que aconteceu o pole dance da musa da noite, Inês, a modelo que estampa o material publicitário do livro. E que eu, veja só, perdi! Vi apenas nas fotos que Gil, mulher de Adolfo, me mostrou no celular. Mas foi bom, pelo que vi ...

Já tá aqui em casa ...
O capeta parece ter despertado de vez e incorporado na massa que se acotovelava para ver os Mamutes, que fez uma apresentação sensacional. Hard rock "setentista" de primeira, cheio de suingue e malemolência, feito pra chacoalhar o esqueleto, só que no ritmo do rock and roll. Que, em sua origem, era musica pra dançar, lembremos sempre disso. A noite foi encerrada com outra paulada, desta vez por conta da melhor banda de rock em atividade no Brasil - pena que o Brasil ainda não saiba disso -, a Plástico Lunar. Não sei se foi impressão minha, mas parece que está se configurando o que eu já botava fé que iria acontecer: eles estão, finalmente, superando a falta que a saída de Julico, da The Baggios, fez. Me pareceram mais entrosados. Acima de tudo Leo Airplane, este verdadeiro monstro de talento a toda prova que tanto enriquece a nossa pequena mas orgulhosa cena, e que foi escalado para substituir o insubstituivel na outra guitarra, me pareceu bem mais à vontade em seu novo papel, sem esquecer o que já fazia, que era fornecer a cama de teclados psicodelicos com timbragens "vintage" tão característicos do som da banda. Digo mais: Daniel, por algum motivo que eu não sei precisar qual é, estava sem sua guitarra, o que a principio significaria mais um desfalque na formação. Mas que eles tiraram de letra. Foi a primeira vez, também, que eu ouvi "Banquete dos gafanhotos" sem Odara nos vocais, só que essa foi fácil, já que a Plástico (ou melhor, a prástico, como dizia o saudoso Roberto Nunes) sempre teve bons vocalistas de sobra. O publico respondeu à altura e, apesar do avançado da hora, já perto das 4 da manhã, praticamente os obrigou a finalizar com uma sequencia de clássicos. Sensacional!

Dito tudo isso, não poderia encerrar este relato sem comentar o motivo primário da noite: O livro de Adolfo Sá, "Viva La Brasa", que estava finalmente sendo lançado, depois de mais de dois anos de "maturação". Está belíssimo! Mais um impecável trabalho de diagramação comandado por Gabi Ettinger. Uma verdadeira obra de arte, impressionante. A curadoria ficou por conta do Calango doido Rian Santos e, numa primeira olhada, me pareceu perfeita. Tem, inclusive, um texto meu sobre a Karne Krua, deliciosamente pomposo e dramático, do qual eu nem me lembrava mais, já que havia sido originalmente publicado na edição xerocada de meu fanzine, o Escarro Napalm, há exatos 20 anos!

Um grande registro não apenas do trabalho de Adolfo, do qual sempre fui fã, mas de todos nós, "fanzineiros" e demais militantes do "underground" alternativo de uma geração que começou a produzir em tempos ainda pré-digitais, por volta da segunda metade da década de oitenta e primeira da de noventa do século passado, e não parou mais. Nem vai parar.

"Viva La Brasa" me representa! Tenho orgulho de fazer parte dessa história.

Relato da festa de lançamento por Adelvan "Kenobi"

Entrevista por Ria Santos

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Barney Greenway, uma entrevista ...

Quem já viu, ao vivo ou em vídeo, alguma apresentação do Napalm Death conhece as performances do frontman Mark "Barney" Greenway: nervosas, inquietas e cheias de disposição. Mas, fora dos palcos o cara parece um verdadeiro gentleman – ao menos foi a impressão que ele passou durante a conversa por telefone para esta entrevista, pré-agendada para às 7h de uma terça-feira qualquer, em dezembro de 2014. O britânico que assumiu os vocais da seminal banda de grindcore em 1989, pouco antes do lançamento do terceiro disco oficial, Harmony Curruption (1990), mostrou-se extremamente educado e atencioso durante mais de 30min de bate-papo. Com sotaque acentuado, o quarentão respondeu todas as perguntas sem pestanejar. Entre os temas abordados, teve sua saída do Benediction, a passagem pelo Extreme Noise Terror depois de ser chutado momentaneamente do ND, a morte do ex-colega e guitarrista Jesse Pintado, veganismo, suas impressões sobre projetos dos outros músicos do Napalm e o novo disco Apex Predator – Easy Meat (previsto para ser lançado no fim de janeiro).

Foi a oportunidade para entender melhor o sentido da expressão ‘dorme com um barulho desses’. Afinal, depois de assistir a um show do Ratos de Porão na noite anterior e escrever a resenha sobre o evento durante a madrugada, ainda estava ansioso para trocar uma ideia com Mr. Barney logo nas primeiras horas do dia.

Voltemos no tempo um pouco: o que fez você deixar o Benediction e entrar para o Napalm Death, no fim dos anos 80?
Mark "Barney" Greenway –
Eu estive por um curto período nas duas bandas, para ser honesto. E foi, tipo, muita coisa, sabe? O Napalm começou a ficar bem ocupado e eu senti que não poderia me comprometer com o Benediction, pois a banda estava meio que começando também. As coisas ficaram complicadas de conciliar. Então, percebi que estava colocando os caras do Benediction em situação desconfortável. Por isso, tive de optar entre uma ou outra. O Napalm acabou sendo minha escolha.

Como era antigamente a ‘cena’ punk/hardcore e também do metal na Inglaterra? E como esses estilos começaram a se fundir para dar origem ao que hoje conhecemos por grindcore?
Barney –
Engraçado como em 1999, e antes disso, a cena hardcore estava proeminente no Reino Unido. Mas, começaram a rolar umas vibes ruins. Tipo: muita gente das bandas começou a falar merda sobre outros grupos, sem razão. Ficou um lance bem estúpido, na real. E até infantil, sabe? O Napalm meio que se tornou um para-raios disso. Voltando no tempo, penso que foi bastante triste, pois essas coisas meio que arruinaram uma cena realmente bacana. Bem, merdas acontecem, suponho. Mas, enfim... Havia naquele tempo, enquanto a cena estava com tudo, diversas bandas mandando brasa. Tinha, obviamente, o Napalm Death, Heresy, Concret Sox, Sacrilege, Intense Degree, Conflict... Era uma cena bem grande. Mas, infelizmente, isso passou e virou uma vergonha. O cenário do metal não era tão representativo naquele tempo. Para o underground, estranhamente, o death metal e coisas do tipo eram bem pequenas. Não era nem de perto o que foi a cena hardcore. Engraçado como a mesa virou, e agora temos o metal bem expressivo e o hardcore em baixa, bem menor.

Você lembra de quais discos ‘entortaram sua vida’? Quais álbuns fizeram você pensar: foda-se, vou tocar em uma banda de som pesado?
Barney –
Primeiro, é preciso deixar claro que nunca tive a intenção de me tornar um músico. Nunca foi um objetivo pra mim. Acho que, para um monte de gente, se você curte punk e hardcore ou essas doideiras, ser músico de verdade não é uma meta de vida. Você cai nesse mundo simplesmente porque ama música. 

Pior, verdade!
Barney
– Aquilo que te rodeia influencia muito, sabe? Pra mim foi a mesma coisa. Eu estava trabalhando, tinha um emprego como engenheiro em uma fábrica. Então, o pessoal do Napalm me convidou pra entrar na banda. Eu nunca havia pensado em estar em uma banda como eles ou o Benediction. Mas, quando percebi, já estava – ainda que dedicando apenas uma pequena parte do meu tempo, uns poucos dias por semana. As primeiras vezes que escutei rock devem ter sido em casa, pois meu pai curtia. Acho que as primeiras coisas que ouvi foram, possivelmente, os discos da primeira fase do Black Sabbath. O Sabbath Bloody Sabbath, especificamente, pois era um dos que meu coroa ouvia direto. Depois disso, veio o Made in Japan, do Deep Purple. Começou com esses lances mais antigos e, com o passar do tempo, fui ouvindo bandas mais extremas. 

Quais bandas, por exemplo? Quais discos de death metal ou punk, lembra?
Barney
– Pelo lado punk, acredito que uma das primeiras bandas que me fez pirar foi o GBH, por causa do punk 77. Eu era muito jovem pra entender o que estava rolando, e meu pai não gostava muito desse tipo de som. Ele era mais ligado em heavy rock e eu acabei descobrindo o punk por conta própria. Então, apareceu o GBH, possivelmente em sua segunda fase. Em seguida, veio Discharge e Exploited, e algumas coisas norte-americanas, como Crucifix e Minor Threat. E por aí foi, conforme o tempo foi passando.

E sobre o fato de o Napalm ser considerado um dos pioneiros do grindcore, você sente-se confortável com isso?
Barney –
Há duas coisas que precisam ser ditas sobre isso. Uma, é que o termo grindcore foi inventado pelo Mick (Harris), antigo baterista do Napalm. Isso não surgiu de revistas ou foi cunhado pela mídia, como muitas pessoas acreditam. Então, a galera dos fanzines ou alguma outra publicação passou a usar a alcunha. E a definição de grindcore também é do Mick. É algo que pode ser completamente arrastado e pesado, como Swans ou algo do tipo, ou louco e veloz, tal qual D.R.I ou Siege. Era algo bem amplo, não o que se tornou depois – que caracteriza apenas músicas muito rápidas. Acho importante mencionar isso.
As pessoas falam esse tipo de coisa (sobre o pioneirismo do Napalm) e, por mim, ok. É até legal. Não é algo em que se possa confiar ou se apegar para direcionar seu som, porque não se deve ficar apegado ao passado. Acho que você precisa ser tão bom quanto possível em seu próximo disco ou apresentação. Todas essas coisas boas que as pessoas falam são porque elas são muito lisonjeiras. Não se deve deixar isso inflar seu ego, senão você se torna complacente e começa a acreditar que tudo que faz é bom. E isso pode levar a resultados bem ruins.

O Napalm tem uma carreira brilhante, independente de qual fase, já que a banda tem períodos mais velozes e agressivos, e outros um pouco mais experimentais. Ainda assim, há uma identidade forte, que sempre os caracteriza. Esses momentos musicais distintos são propositais ou surgem naturalmente?
Barney
– Creio que qualquer disco do Napalm é sempre uma experimentação em certo grau. Isso aparece naturalmente. Se você força, vai soar falso. Quando fazemos um álbum, não existe um plano principal de como ele deve ser. Não é como se disséssemos: “temos de fazer composição com esses elementos ou aqueles”. É um processo bem natural pra gente. Não existe um tipo especial de “coreografia” pensada. A música simplesmente nasce como tem de ser. E acho que isso é algo muito bom.

E o que vocês estavam ouvindo quando compuseram registros da fase que costumo chamar de ‘mais experimental’, quando saíram os discos Diatribe, Inside the Torn Apart e Words From the Exit Wound?
Barney
– Você precisa entender que é um pouco difícil, até trapaceiro, responder isso. Afinal, entre os integrantes do Napalm não há um consenso, é um lance controverso. Eu achei complicado fazer esses trabalhos, pois estava ouvindo coisas bem distantes do que o Napalm costumava fazer. Então, me tornei um pouco descontente com o que estava rolando. Em retrospectiva, hoje eu aprecio muito mais esses registros e os vejo pelo que eles realmente são. Acho que as influências gerais nesses trabalhos são mais como Killing Joke, Swans e bandas com um tipo de música mais espacial – embora nunca tenhamos deixado de gostar de sons mais rápidos e agressivos, como hardcore e metal extremo. Mas, há outras sonoridades que nos influenciam, e isso é algo positivo. Talvez tenhamos feito algo fora desse lance rápido e louco, e isso é mais presente nesses discos.

Foi nesse período que você deixou o Napalm e entrou para o Extreme Noise Terror (o ENT lançou o disco Damage 381 em 1997, com Barney, Phil Vane e Dean Jones nos vocais), certo? O que aconteceu e como foi a experiência?
Barney –
Sim. Foi um pouco estranho, pra falar a verdade. Isso nos remete ao que falava antes: ficar fora do Napalm tem a ver com o fato de eu estar um pouco descontente com alguns desses álbuns lançados durante os anos 90. E eu não deixei a banda, fui chutado por um tempo.

MITCH!
Sério?
Barney –
Sim, foi como as coisas rolaram. O ENT se aproximou de mim depois de eu ser posto pra fora do Napalm. Deixei isso claro pra eles: “Caras, acabo de tomar um pé na bunda da minha banda e não estou muito legal no momento. Então, não vou entrar para o ENT em tempo integral, fazer turnês e essas coisas. Porém, gravo um disco de boa com vocês se realmente precisarem de mim.” Aí, gravamos o Damage 381. E confesso que não foi o que eu esperava que poderia ter sido. Eu meio que tinha esperanças que fosse algo mais tradicional, tipo Discharge. Achava que seria mais barulhento, com mais ataque, e não foi. A gravação ficou um pouco mais metal e eu não curti. No entanto, eu havia prometido ao Dean que finalizaria o registro e mantive minha palavra. Então, participei do disco, mas penso que poderia ter ficado melhor. Não se pode dizer que não há partes boas. Continua sendo punk e caótico.

Tenho uma pergunta triste agora: qual o impacto da morte do guitarrista Jesse Pintado? A banda chegou a pensar em parar as atividades, ao menos por um tempo?
Barney –
Não, nunca faríamos isso, apesar desse fato lamentável. Pra ser honesto, era algo que parecia inevitável. Isso porque o Jesse estava numa fase muito, muito ruim com algumas substâncias. Além disso, estava em péssima forma, com a saúde debilitada. É preciso lembrar que demos uma chance para ele. Realmente tentamos ajudá-lo, fazendo com que voltasse para a casa dos pais para ver a família poderia auxiliar com os problemas pelos quais ele passava. Mas, não adiantou. Deixamos seu lugar em aberto na banda, para que ele pudesse retornar assim que estivesse cuidando de si. Porém, também não funcionou. Trouxemos ele de volta mesmo assim, para fazer uma turnê pelo Brasil, inclusive. Estávamos aí e foi uma tremenda bagunça. Jesse simplesmente desapareceu e não conseguíamos encontrá-lo. Foi nesse tempo final em que ele esteve conosco, quando estava completamente doido. Não há problema nenhum em ficar doidão, mas ele estava superdoidão. Foi tipo: “Porra, Jesse! Estamos tentando ajuda-lo, mas você também precisa se ajudar”. Era uma situação bem ruim, e no fim das contas nós meio que deixamos ele fazer o que queria. Dissemos: “Olha Jesse, não temos mais como fazer isso por você”. Assim que ele se foi, Mitch imediatamente assumiu o posto das guitarras e isso funcionou. Então continuamos dessa forma. E não esqueça: Jesse morreu poucos anos depois de ter saído do Napalm. Claro que foi muito triste, pois ele era nosso amigo. Mas, para ser honesto, eu não fiquei surpreso que isso infelizmente tenha acontecido.

Saindo da música um pouco: você é vegano, né?
Barney –
Isso mesmo.
Quando você deixou de comer carne?
Barney –
Eu tinha 14 anos. Em 1983, parei de comer carne porque vi um vídeo na escola que mostrava um matadouro, sabe? Onde abatem os animais. A partir desse momento decidi que não queria mais ser parte disso. Então, fui pra casa, disse a minha mãe sobre essa decisão e ela: “que merda é essa?”. Isso era algo novo na Inglaterra naquele momento, mesmo que o país fosse o lar do bem-estar animal e coisas do gênero. Levou um tempo para descobrirem, mas isso rolou de boa. Desde muito cedo também parei de usar produtos animais, como shampoos e tudo mais. Também parei de usar couro, eventualmente. E, depois disso, me tornei vegano. Na verdade, fiz essa opção recentemente, acho que há uns dois anos.
E quais argumentos você usaria para convencer alguém a tornar-se vegano também?
Barney –
Eu apenas penso que, para mim, é sobre o tratamento com outros seres sencientes. Creio que os animais têm mais sentimentos do que as pessoas gostam de acreditar. E quando você pensa nisso, no jeito que os bichos são tratados na produção de carne, me parece desumano. Há ainda a questão ambiental dessa cadeia, que não é nada boa. Isso sem falar sobre as fazendas industriais onde milhares de animais são criados em espaços minúsculos, tratados muito mal e transportados de uma forma que não é particularmente boa. Tem todas essas razões, na verdade. E, com relação a nossa saúde, acho que o vegetarianismo ou o veganismo são dietas mais saudáveis para as pessoas.

Além da questão animal, o que mais te incomoda e serve de inspiração para suas letras?
Barney –
Acho que qualquer coisa ligada ao interesse humano. Assuntos nos quais os humanos ou outros seres com capacidade de sentir são tratados de maneira desigual. As pessoas dizem que o Napalm é uma banda política e talvez seja. Eu certamente sou uma pessoa com inclinações de esquerda. Mas, acima de qualquer coisa, existe a questão humana e humanitária. Esses são temas que realmente nos preocupam. Porque os homens, ou seja lá qual for outra espécie com capacidade de sentimentos, devem ser tratados com dignidade e ter direito a vida. Eles não devem ser assediados por outros ou pelo Estado ou por alguma outra entidade. Qualquer um merece uma existência digna. Essa seria uma visão geral.

Li em alguma ocasião que você é fã de rock progressivo, é verdade?
Barney –
Em parte. Aprecio algumas coisas dessa cena, ainda que seja algo saturado às vezes. Mas, definitivamente curto algumas bandas de rock progressivo.

Você tem um programa de rádio sobre esse tipo de som, não?
Barney –
Costumava apresentar algo no rádio, mas foi há um bom tempo. E eu nunca tive um programa regular. Era lá de vez em quando e tocava de tudo um pouco. Eu rodava progressivo e, em seguida, poderia tocar um punk hardcore nervoso da Finlândia ou algo do tipo. Era uma mistureba.

Voltando a falar sobre o Napalm: assisti vocês em Buenos Aires em outubro de 2014 e foi irado. Inclusive, vocês tocaram duas faixas inéditas do novo trabalho, Apex Predator – Easy Meat. Pelo que deu pra perceber por esses sons e pela música ‘Cesspits’, que a banda liberou mais ou menos na mesma época, o novo disco segue brutal como o anterior (Utilitarian, de 2012), mas acrescenta um lance mais ‘diferenciado’, pra não dizer experimental. Essa afirmação faz sentido?
Barney –
Bom, como falamos anteriormente na entrevista, isso não é planejado. Não é intencional, como se decidíssemos antes de o álbum sair: “isso será assim ou assado”. Não é desse jeito. E qualquer coisa que criemos é bem natural. Ainda mais com o passar do tempo. Não havia realmente uma pretensão. Se a observação é essa, as faixas são mais rápidas e loucas do que no disco anterior, mas com um lado experimental. Se for isso, pode estar correto. Contudo, não é um grande plano, uma intenção nossa fazer desse jeito. Apenas meio que aconteceu.

E sobre a capa desse novo material: aquilo é realmente carne podre?
Barney
– Sim, é! São intestinos de algum açougue, acho. O cara que fez a foto (o designer dinamarquês Frode Sylthe) é um tanto quanto excêntrico e comprou alguns pedaços estranhos de carne mais umas plantas doidas e colocou isso no porão por três semanas. O negócio ficou bem quente lá. Então, ele tirou pra fora e fotografou. O cara nos disse que o bagulho estava cheirando tão mal que ele teve de usar máscaras para fazer as imagens.

Puta merda, que parada nojenta!
Barney –
Isso mesmo, é bem horrível. Mas, é a realidade. Não é uma imagem retirada de algum lugar. É uma fotografia real feita pela gente, pelo nosso artista gráfico.

E sobre as performances do Napalm: apesar de tiozinhos, todos na banda ainda têm um puta pique e parecem muito contentes de estar no palco mandando brasa. De onde vocês tiram essa disposição?
Barney –
Pra mim, se você não está mais envolvido com isso, não está mais feliz em tocar, então não toque. Fique em casa. Porque não é justo sair e fazer gigs se estiver dando apenas 50% de seu potencial, já que a molecada que vai assistir está pagando os ingressos para vê-lo fazer um show. Tipo: se você vai subir num palco, tem que dar absolutamente o melhor de si. É preciso entregar para as pessoas que vão ao show 100%, não menos. Pra mim isso é bem importante. É isso que você tem em um show do Napalm. Se não fosse assim, não estaríamos tocando ao vivo por aí.

O Mitch Harris (guitarrista) teve de se afastar por um tempo da banda. Ele está bem? Quem está encarregado na função que era dele?
Barney –
Mitch apenas teve algumas questões com as quais ele teve de lidar. Ele está atualmente bem, mas teve uns lances acontecendo em torno dele que precisavam ser resolvidos. Como amigos e colegas de banda há tanto tempo, apenas dissemos: “olha, faça o que precisa ser feito, lide com as suas coisas e, quando você quiser retornar, apenas volte”. Nesse meio tempo temos esse cara, John Cooke, no lugar do Mitch. John estava em uma banda chamada Currupt Moral Altar e também é de Birmingham. Ele sabe tocar nossas músicas e é um bom músico. Para outras turnês, como pelos EUA, talvez tenhamos outro guitarrista, mas para a Europa certamente usaremos o John.

Tenho uma curiosidade de saber o que está rolando no seu MP3 player...
Barney –
Antes de qualquer coisa você precisa saber que eu não tenho um MP3 Player (risos). Eu odeio essas malditas coisas.
Costuma ouvir música somente em formatos físicos, tipo CD e vinil?
Barney –
Isso! Para ser honesto, eu não tenho ouvido quase nada no último ano. Nada realmente novo, pelo menos. Isso porque estive concentrado no novo disco do Napalm, o que ocupou bastante cada porra de dia desse ano (2014). Porém, se eu tivesse um iPod e o colocasse no shuffle, você provavelmente encontraria coisas como Crass, Throbbing Gristle, Jesus and Mary Chain, Siege, Celtic Frost. Seria um bocado de coisas, sabe?

Pra finalizar, gostaria de saber suas impressões sobre alguns projetos envolvendo seus parceiros no Napalm Death.

Menace (projeto heavy rock/instalação de áudio com influência de Tool e Voivod do guitarrista Mitch Harris):
Barney
– É interessante. O lance do Menace surpreendeu muita gente fora da banda, mas não a mim. Afinal, sei que o Mitch tem influências muito diferentes dos outros integrantes da banda. Acho legal pra ele criar algo fora do que costumamos fazer no Napalm. Algumas coisas não são minha praia, mas outras são realmente muito boas. Mitch é o tipo do cara com uma imaginação muito fértil com sua música.

Lock Up (banda de death/grind em que o baixista Shane Embury toca)
Barney –
O Lock Up já é mais tradicional. É bem bacana, tem algumas boas ideias. Tem algumas influências clássicas, como Slayer, Dark Angel e Repulsion.

Defecation (projeto grind no qual Mitch e Mick Harris, ex-baterista do Napalm, gravaram todos os instrumentos).
Barney
– Defecation era bom! Misturava old school grind, death metal... Nada mal. Algumas músicas muito boas, na verdade.

Unseen Terror (banda em que Shane tocava bateria. Tinha na formação Mitch Dickinson, do Heresy, e fazia uma mistura de hardcore, grind e metal)
Barney
– Essa é provavelmente minha favorita. Eu realmente gosto dos discos deles. Havia uma ótima vibe nos trabalhos do Unseen Terror. Tinha coisas mais metal, mas também muito de hardcore americano – algo em que o Shane e o Mitch estavam bem ligados. Muito bom!

Venomous Concept (outro projeto harcore de Shane, dessa vez com o vocalista Kevin Sharp e o baixista Dan Lilker, ambos ex-Brutal Truth, e Danny Herrera, também do Napalm, na bateria)
Barny –
Outra vez, o lado mais punk do Shane, uma coisa meio Poison Idea. É bacana! Shane sabe o que faz, ele tem história nessas coisas. E o Kevin é bem excêntrico como vocalista, o que faz a banda ser um pouco engraçada.

Meathook Seed (projeto industrial pelo qual passaram Mitch e Shane)
Barney –
Meathook Seed não é pra mim. Não curto muito esse tipo de doideira, pra ser honesto. Não é ruim, mas não é algo que não mexe comigo.

Terrorizer (projeto grind do qual Jesse Pintado fez parte)
Barney –
Um clássico, junto com o Unseen Terror. Foi uma banda muito influente, que certamente teve impacto sobre mim.

Homero Pivotto Jr. em 13/01/2015

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domingo, 11 de janeiro de 2015

Camarones Orquestra Guitarrística, uma entrevista ...

TMDQA!: Sabemos que 2014 foi um ano de muitas atividades para o Camarones. Tanto que vocês terminam o ano gravando o próximo disco. Você pode fazer um resumo do que aconteceu nesse período?

Anderson Foca: A gente começou o ano lançando uma reunião de singles, o O Outro Lado. A gente sabia que esse seria um ano de turnê intensa e se preparou pra isso. Lançamos esses singles porque tinha música cover do Link Wray, que a gente não tinha divulgado e só tinha saído na gringa, tinha também um cover do tema do filme Ghostbusters, que também nao saiu aqui, tinha todo o lado b de Espionagem Industrial e outros singles também. Então, a gente tinha um material muito interessante para lançar um disco. Foi um ano muito intenso pra gente. A gente fez uma turnê europeia enorme, fez uma turnê nacional que foi em todas as regiões do país, tocamos de Santa Catarina a Boa Vista. Foi um ano muito proveitoso para o Camarones e que nos deu um novo ânimo já que a gente mudou muito de formação. Mudamos tudo, inclusive eu mudei de instrumento. Além do teclado, comecei a tocar guitarra. E foi incrível. Estamos bem entrosados. Foi sem dúvidas um dos anos mais produtivos e ainda estamos o encerrando já com disco novo.

TMDQA!: Fala um pouco sobre o conceito de Rytmus Alucynantis, o novo disco de vocês.

Anderson Foca: Se você olhar a nomenclatura, parece até um mosquito. E na verdade é pra ser um mosquito chamado Rytmus Alucynantis que pica a pessoa e ela fica feliz, excitada, quer dançar, quer se mexer. E isso é muito a onda do Camarones, esse conceito do disco é muito o que a gente quer passar. Alegre, festivo, tendo o compromisso de tocar bem, fazer uma coisa bacana no ponto de vista do rendimento do músico no estúdio, mas isso é o segundo plano total. O primeiro plano é que as pessoas dancem, se divirtam, se identifiquem com algum momento da vida e se for um momento bom, melhor ainda. Esse é o conceito do disco e é o que a gente tá tentando fazer aqui.

TMDQA!: O que diferencia o novo álbum dos anteriores?

AF: A primeira coisa que diferencia é que a gente mudou de formação. Quando muda de formação, as referências também ficam bagunçadas no ponto de vista da composição. Muda tudo, começa tudo do zero já que você passa a se adaptar aos novos músicos e eles tem as suas levadas preferidas, os timbres preferidos. E a gente adora essa mudança. Eu sou o principal compositor do Camarones, então eu mantenho uma certa identidade, mas ao mesmo tempo vem chegando novas informações. Por exemplo, nesse disco sai a primeira música que a gente programou já que Fausto gosta disso. A faixa se chama “Tsunami” e nem soa como programação, é um reggae mais pesado. Foi uma experiência incrível. Foi a segunda música que a gente fez pro disco. No mais, é um álbum como os outros. Tem participação do Molho Negro, eles ficaram uma semana aqui com a gente e devem tocar umas 3 ou 4 faixas. Augusto gravou uma bateria, João gravou a guitarra numas 2 ou 3 músicas e também compôs alguma coisa comigo e Yves.

TMDQA!: A banda sempre conta com muitas participações, sejam elas em shows ou nos discos. Como vocês escolhem esses convidados?

AF: A gente procura fazer a coisa mais colaborativa possível porque nós somos uma banda instrumental, então é tudo muito aberto. Nunca foi uma coisa ofensiva receber gente no disco. Não é só o Molho Negro que tá participando. O Ynaiã Benthroldo, do Boogarins, gravou uma música, a metaleira do Móveis Coloniais de Acaju vai participar de outra. É muito por afinidade. A gente já tocou junto com essas bandas, tanto o Móveis quanto o Molho Negro já fizeram turnê com a gente, o Ynaiã já tocou bateria com a gente, fez turnê. Nesse disco, Leo Martinez, que era nosso guitarrista, também participa. Kaká Monteiro, que também tocava com a gente, também tá no disco. Na verdade, a banda só tá crescendo. Os que já saíram continuam participando do processo.

TMDQA!: Junto com o disco, vocês já tem uma turnê planejada para 2015?

AF: Já. Deve ter uma mudança de planos. A gente tinha pensado em fazer nesse ano metade no Brasil e a outra metade internacional, mas com o disco novo talvez seja mais inteligente fazer mais Brasil e um pouco menos internacional. Até pra esperar o que vai acontecer com essa crise, o dólar e o euro estão altos. Então, a gente tem a possibilidade de fazer um lançamento bem grande no Brasil e viajar pelo país, mas também deve pintar algo lá fora só que não na intensidade que a gente estava planejando inicialmente. Agora, o disco sai de cara em toda a América do Sul e Europa pela Scatter Records, que é um selo da Argentina. Deve sair o vinil também. Principalmente na gringa, não sei se ele chega ao Brasil tão rápido quanto lá. Ao mesmo tempo que o álbum sair no Spotify, Deezer, Itunes e pra galera baixar, já deve começar a venda fora do país.

TMDQA!: Vocês são uma banda que nunca está parada. Agora mesmo estão terminando o intenso ano de 2014 já gravando o próximo disco. E tudo isso movimenta a cena local e nacional. Como você vê o papel do Camarones dentro da tão comentada cena do Rio Grande do Norte?

AF: O Camarones é meio clássico na cena. O que muitas bandas estão fazendo agora, o que está virando rotina, nós fazíamos sozinhos ali em 2009/2010. Era fazer turnê, tocar fora, ir aos festivais, isso é uma coisa que a gente já faz há algum tempo. Eu acho que a gente foi meio que uma espécie de “É possível. Se eles estão fazendo, a gente também pode”. Acho que nossa contribuição foi encorajar a galera a fazer isso. Se você olhar hoje tem Far From Alaska, Red Boots, Fukai, Camarones, Kataphero, Mad Grinder, Moster Coyote e muitas outras. Todas essas bandas fizeram turnê em 2014 pelo Brasil. E acho que muitas outras irão fazer. Muita coisa vai acontecer em 2015. Tenho ouvido uns discos que vão sair e vem coisa boa aí. Nós estamos muito bem. Não sei se a gente já viveu um momento assim na música.

TMDQA!: Para finalizar, você tem mais discos que amigos?


AF: Rapaz, olhe, eu já tive quase seis mil discos, só que me desfiz dos meus discos pra fazer mais amigos. Fiz um bazar, chamei meus amigos e mandei eles escolherem. Era R$ 5, 10 e 15. Se você fosse puxando, não era pelo valor do disco, era pelo meu sentimental. Se eu gostasse muito do disco, ele pagava mais caro. Se eu gostasse menos, era mais barato.

NOTA DO BLOG: Camarones toca em Aracaju próxima quinta, no Maori.


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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Clandestino, por sua conta e risco

Um pouco de perigo não faz mal a ninguém. Por isso o Clandestino – levante punk promovido de tempos em tempos por um trio de renegados locais. Não tem aviso prévio. Amplis e batera no meio da rua. A informação corre a boca pequena pelas redes sociais. Neguinho recebe a porrada quando menos espera.

O burburinho a respeito de uma nova edição do motim, um marco do underground Serigy, já está pipocando no Facebook. Desta vez, além da pedrada de sempre (os anfitriões reunidos na The Renegades of Punk costumam fazer as honras da casa), os veteranos da Karne Krua e os convidados da banda Nem Todos Esquecem (RN). Meia dúzia de acordes ligeiros para extirpar a apatia da geral.

Do it yourself! ao pé da letra. Segundo Daniela Rodrigues (vocal e guitarras), a ROP sempre teve a preocupação de tocar alto e fazer mais do que barulho. “Gostamos da ideia de trazer um certo perigo a essa vidinha calma e assentada dos roles/balada. E quando falamos isso não nos opomos às festas, baladas, shows de todo o tipo – diversidade é fundamental. Tampouco queremos dizer “o que é certo” em termos de abordagem “artística”. Mas a aura do confronto faz parte do que somos, do lugar de onde viemos”.

Pra correr perigo, clique AQUI.

por Rian Santos

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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

“Eu sou cheio de amor. Eu sempre fui cheio de amor.” – Uma Entrevista com Ian MacKaye

O americano Ian MacKaye, nas últimas três décadas, expandiu o punk rock para um método autônomo de produção artística. Se hoje o rock independente se vale de recursos como o controle de suas turnês e distribuição própria, é, em parte, graças a ele.

MacKaye sempre rejeitou a ideia de reduzir sua música a um mero produto. Fundador do selo Dischord, tornou-se notório nos anos 90 por liderar o Fugazi, grupo que, completamente desvinculado dos aparatos das grandes gravadoras (TVs, distribuição em grandes lojas, publicidade etc.), vendeu milhões de discos.

Antes disso, no início da década de 1980, esteve à frente do Minor Threat, um dos principais expoentes do hardcore — e pai da filosofia straight-edge. E ainda há quem aponte o Embrace, outra banda de Mackaye nos anos 80, quando o assunto é a origem do emo.

Mackaye atem-se firme aos preceitos que o tornaram mundialmente famoso: manter-se à parte do mainstream, não fazer da música um lucrativo espetáculo alienado de seu público. Desde 2001, quando o Fugazi entrou em um hiato (pelo jeito, permanente), se apresenta com sua mulher Amy Farina no duo Evens, hoje com três discos lançados.

por Daigo Oliva
Em março de 2007, a dupla fez uma turnê por seis cidades brasileiras. Alguns dias antes de Ian MacKaye fazer suas malas para o Brasil, telefonei para sua residência, em Washington D.C., situada a cinco quilômetros de distância do gabinete na Casa Branca onde George W. Bush ainda depositava sua bunda suja.

Procurei evitar as mesmas perguntas sempre feitas ao sujeito (regra nº1: não perguntar sobre straight-edge — e ainda assim ele falou sobre o assunto). Assim, consegui tirar algumas boas respostas dele — e uma das melhores entrevistas que já tive a o oportunidade de fazer.


Já ouvi gente dizendo que o Brasil mudou sua vida. É verdade? 

Sim, primeiro porque sou uma pessoa bastante aberta a experiências. Sou muito afetado pelo mundo. Eu amo a vida e amo estar vivo. E adoro estar com pessoas que se sentem assim também. A primeira vez que fui ao Brasil foi em 1993, com L7, no Hollywood Rock. E esta foi uma viagem muito esquisita, principalmente por causa do ambiente onde eu estava trabalhando, às voltas com, além do L7, Nirvana, Red Hot Chili Peppers… Eu estava ali apenas trabalhando como técnico de baixo do L7. Então foi um jeito muito estranho de conhecer o Brasil. Lembro que assim que chegamos, a primeira coisa que nos avisaram era para nunca deixarmos o hotel sozinhos. Chegamos em São Paulo e tivemos uma reunião com a equipe de segurança que nos disse:“Muito perigoso, não saiam! Nunca, nunca saiam sozinhos!” Assim que a reunião acabou, saí pela porta dos fundos e fiz sozinho uma caminhada de duas horas pela cidade de São Paulo. E foi maravilhoso, um lugar maravilhoso para se caminhar, e não tive problema algum. Aí eu percebi que aquelas pessoas daquela turnê… Sua perspectiva do Brasil, sua visão do país, foi cuidadosamente moldada pelos promotores e organizadores do festival. Elas não podiam simplesmente sair por aí, ficavam em hotéis cinco estrelas, iam de vans para os estádios e todas as idas e vindas para os aeroportos aconteciam bem cedo e eram cuidadosamente planejadas. Quando voltei com o Fugazi, em 1994, fizemos questão de fazer a turnê de carro para conhecer o país. E foi uma experiência realmente incrível conhecer um país tão indefinível. Na minha concepção, Brasil é o país dos paradoxos: o mais feio e o mais bonito, o mais rico e o mais pobre, o mais cruel e o mais alegre. Mas no geral, a experiência me fez sentir muito bem e feliz. E o fato da música ser uma coisa tão levada a sério e de desempenhar um papel tão importante na cultura do país é algo muito profundo. E me fez pensar que a primeira vez que estive aí, com aquela tour com L7, Nirvana e tudo mais, isso foi meio como nos EUA, as nossas perspectivas foram muito moldadas. Mas a realidade do mundo é que a vida é cheio de surpresas e alegrias. Então, a questão é “as pessoas querem mesmo participar disso ou só querem que sua visão de mundo seja cuidadosamente moldada pelos ‘moldadores’”? Toda turnê é uma experiência profunda pra mim, mas no caso do Brasil foi particularmente profundo. Um país tão radical… Não se compara com nenhum lugar do mundo em que estive. E, sabe, ao mesmo tempo, obviamente, tem tantos problemas nesse país. É engraçado que na mesma medida que há tanta liberdade no seu país, haja uma burocracia insana. Lidar com o governo brasileiro, tirar visto, ir às embaixadas, é uma loucura. Não me leve a mal, eu sei como os americanos são burocráticos também. Mas é loucura!


Para você, “música é sagrada, é um meio agregador e uma forma de expressão que antecede à língua”. Nos shows com The Evens, você toca sentado, fala um bocado com as pessoas durante a apresentação e promove a interação entre a banda e a platéia. A idéia disso é reforçar o aspecto comunicacional da música? 

Em algum grau, sim. Parte do motivo de que eu toco sentado é porque Amy está sentada atrás da bateria. E nós somos os Evens (os quites). Eu sou mais conhecido que Amy, é natural que as pessoas prestem mais atenção em mim, então, se eu estiver de pé pode parecer que ela é só um pano de fundo, um mero músico de apoio. Conosco estando no mesmo nível, as pessoas podem perceber visualmente que eu e Amy nos vemos como iguais. Mas a idéia também tem a ver com o fato de que hoje tenho 45 anos e, sabe, nesse tipo de musica, rock n roll, rock, punk rock ou o que você quiser chamar, existe uma espécie de debandada das pessoas mais velhas deste formato. Quando nós falamos em blues ou jazz ou samba, músicos mais velhos são levados a serio, mas não no rock. No rock, os caras mais velhos fingem que ainda são jovens ou partem para outros tipos de musica, que supostamente seriam mais apropriados para pessoas mais velhas. E eu acho que o rock é uma forma tão legítima quanto qualquer outro tipo de musica. Eu o levo tão a serio quanto o samba, o blues, o jazz ou qualquer outro estilo. Ao invés de passar a agir como um jovem ou passar fazer algo diferente do rock, algo apropriado para pessoas mais velhas, por que não apenas envelhecer e continuar fazer sua musica? Eu pensei que poderia ser interessante levantar esta questão confrontando visualmente, de novo, a idéia das pessoas de um show de rock. As pessoas me vêem tocando sentado e logo pensam “ah, é folk music”. Mas não é folk music, pára com isso! É musica punk, só que sem uma banda com baixo e duas guitarras. Nos EUA, nós não tocamos em casas noturnas, não tocamos em bares. Temos nossos próprios PA’s e nos apresentamos em lugares onde normalmente você não verá bandas. A idéia é quebrar com a concepção que algumas pessoas têm de música. Porque música quando é emitida de um jeito particular, pode se tornar um mero produto da indústria. E na minha cabeça, música é maior e mais antigo que qualquer tipo de indústria. Então, por que temos que jogar de acordo com as regras da indústria? Por que a música se tornou um meio de publicidade, especialmente para a indústria do álcool? Não consigo entender isso. Por que deveríamos tocar em lugares cuja economia é baseada em autodestruição? Esse tipo de coisa eu não consigo entender ou aceitar. Bom, então essa coisa de agregar as pessoas e poder falar com elas vem da idéia de criar um senso de comunidade. No momento em que você vai a um show, você fala com outro, você reconhece o outro. Enfim, música é um ponto de agregação. Existem milhões de razões porque fazemos coisa do jeito que fazemos. Também é porque simplesmente é o jeito que funciona para nós. É interessante assim. Eu estava tão entediado anteriormente… É isso. É tão frustrante para mim estar nos mesmo bares, nos mesmo tipos de lugares em todo o mundo. Isso te desgasta, porque é a mesma coisa sempre. 

Você falou dessa coisa de música folk. Apesar de ter alguns elementos do folk no The Evens, eu não considero a música de vocês como folk, pelo menos não enquanto gênero musical. Mas enquanto conceito, eu acho que o Evens é folk, sim.

Sim, concordo inteiramente com você. Punk é folk. Totalmente. É uma música feita por pessoas reais, geralmente tem teor político, lida com questões sociais, uma música viva que lida com questões reais. Mas o folk como se cristalizou nas cabeças das pessoas, com violões acústicos e tudo mais, este meio que se estagnou e se tornou repetitivo. Mas o punk é de fato folk. Assim como o hip hop, se este é o caso. 

OK, mas sobre essa abordagem mais “folk” na música de vocês, por que escolheram essa direção mais simples, mais calma, menos barulhenta? Você se cansou do barulho ou algo assim?

O Fugazi também tinha canções tranqüilas e viajantes. Para mim, não tem diferença. As pessoas vêm com um papo de que “nossa, eu nunca ouvi você cantar de um jeito tão sereno!” E, porra, vocês já ouviram “Pink Frosty”? Ou “I`m so tired”? 

“Long division”…

Isso, exatamente. Pôxa, são canções tão serenas! Isso é parte da vida. Eu não estou interessado em apenas uma temperatura o tempo todo. Se é sempre quente, você não sente mais. 

Tá bom. Mas para mim, num sentido geral, The Evens é muito mais tranqüilo do que o Fugazi.

E talvez seja mesmo. Mas a coisa é: somos nós dois (ele e Amy Farina) e esta é a música que nós fazemos e não a música que o Fugazi fazia. Não dá para comparar as duas bandas. Eu era um membro de um grupo de quatro pessoas no Fugazi. E agora sou um membro de uma dupla no Evens. E esta é a música que nós fazemos. As pessoas perguntam “por que você está fazendo músicas tão calmas?” E daí? Quem se importa? É a música que eu estou fazendo (risos). Mas parte disso é porque as pessoas sempre me dizem “você é muito furioso e cheio de raiva”. E isso não é verdade. Eu nunca fui assim tão cheio de raiva. Acho que a pessoas supõem isso porque o Fugazi tinha algumas músicas que eram tocadas num volume bem mais alto e eu me envolvia com isso de verdade. Mas é apenas uma realidade física. Se você está em cima do palco, pulando por todos os lados segurando uma guitarra, sob uma temperatura de quase 40 graus, e a música é alta — tudo isso é de um excesso tamanho — e você terá que gritar. Tudo isso te faz trabalhar com as suas paixões. Mas essa idéia de que no Fugazi eu era “cheio de raiva” não é acurada. Eu sou cheio de amor. Eu sempre fui cheio de amor. Eu acho que a percepção das pessoas sobre mim é, além de eu ser apaixonado pelas coisas, é por causa do modo como a música é emitida, por causa de como as pessoas ouvem as coisas.
Mas também há outros aspectos do volume pelos quais eu passei a me interessar. Por exemplo, os momentos mais poderosos que aconteceram na minha vida ocorreram quase no silêncio. É óbvio que o volume pode ser poderoso, mas não é necessariamente a coisa mais poderosa de todas. Se você caminha até um quarto e lá dentro tem uma pessoa em pé gritando na sua cara, você pode parar na porta. Mas se alguém lhe fala calmamente, isso pode atrair sua atenção e te fazer se aproximar. Eu quero que as pessoas se aproximem, não que se afastem. É esta a idéia, mas não significa que sou sempre calmo. No Evens, talvez eu possa gritar. Quem sabe?

Você acha que músicas menos barulhentas e tocadas num volume mais baixo são veículos melhores para comunicar idéias?

Eu acho que é um tipo diferente de veículo. Mas, sim, pode ser melhor em termos da clareza das palavras. Digo, me deixa feliz quando as pessoas me dizem que conseguem entender o que eu canto. Eu e Amy trabalhamos muito duro nas nossas letras, e durante todos estes anos em minha vida eu tenho trabalhado muito, muito duro nas minhas letras. E é interessante para mim ver como as pessoas têm falado sobre as minhas letras. Eu sei que pessoas falam sobre o jeito que eu monto minhas bandas, o som da minha música, o aspecto político disso e a postura, e como isso as afetam e as mudam… Mas quanto às letras, é muito raro as pessoas chegarem até a mim e dizer: “ah, eu estava ouvindo aquela canção e essa frase específica realmente me afetou”. É frustrante para mim porque eu dou muito duro para escrever minhas letras, e quero mesmo que as pessoas se envolvam com minhas letras. Então, bom, nesse ponto, é um bom meio de tornar as letras mais claras na música.
Outra coisa é que nós dois cantamos, e eu amo a textura criada por nossas duas vozes juntas. Se a musica fosse super alta e tivéssemos que berrar, você não ouviria essas nuances. Nós somos uma banda vocal. No Fugazi, Guy, eu, Joe e Brendan, nós todos tínhamos approaches diferentes e a combinação disso gerava ritmos e melodias bastante intricados. E, várias vezes, quando estávamos compondo e tentávamos cantar era bem difícil porque qualquer possível melodia era meio que encoberta pela música, sabe? Não éramos uma banda vocal. 

Vocês tinham que gritar.

Não, não era exatamente sobre gritar, mas era mais difícil, as vozes tinham um papel diferente no Fugazi. O jeito que trabalhávamos musicalmente tornava as composições muito completas. Era se como todos os sabores já estivessem lá. Então, na hora de colocar a vozes… Já com o Evens, se você ouvir as músicas sem as vozes, elas vão soar como uma moldura a ser preenchida. 

No Evens, você tem escrito algumas letras bem mais diretas. No Fugazi, a coisa era um pouco mais abstrata, não tão direta. O que te fez escrever assim?

Primeiro, eu não acho que eu tenho escrito nada mais direto do que no Minor Threat. E eu tenho que te dizer: eu não comparo as coisas como você compara. Não você, mas é típico falar “agora você faz assim, antes você fazia de tal jeito”. Se pensarmos nas letras do Fugazi, algumas delas são extremamente diretas ao ponto. Como “Merchandise”, é direta para caralho. “Suggestion” é direta pra porra. Mesmo no último disco, “Cashout”, por exemplo, é bem direta e política pra caralho! Mas tudo é político…

E não eu fico pensando no que já fiz em termos de letras, (isso que escrevo agora) é simplesmente o que eu sou hoje. Tenho 45 anos de idade, comecei escrever com 17, tem quase 30 anos que escrevo. Simplesmente é o que eu tenho feito por agora, eu não fico pensando por que eu estou fazendo isso agora. Só penso sobre o que está na minha frente: o meu trabalho. 

Mas o que eu digo é: alguma coisa deve ter te provocado a escrever de uma forma mais direta. A realidade do mundo hoje ou qualquer outra coisa…

Mas aí depende de que música você está falando. Como “Shelter Two”, você acha que a letra desta música é bem direta e explícita? 

Não, não acho.

Pois é, eu escrevi essa. Isso é interessante. Por exemplo, uma música que pode soar bem direta como “Dinner With The President”, todos pensam que é sobre George Bush. E não é sobre isso! 

Estou vendo que você gosta de complicar um pouco as coisas… (risos)

(Risos) Não, não é isso. Vou lhe dar uma idéia de como penso minhas letras: OK, “Dinner With The President”… (pigarro) Sabe Hollywood? Uma vez por ano é realizada a cerimônia de entrega do Oscar, certo? E tudo mundo diz “ó meu deus, o Oscar! Que honra!” O valor do Oscar é diretamente ligado ao modo como a pessoa se relaciona com Hollywood. Se essa pessoa percebe que Hollywood é uma bela merda, uma indústria nojenta, espiritualmente danosa para o mundo, que gera desperdícios absurdos e deixa as pessoas envolvidas nisso enlouquecidas com fama e poder… Se você está pouco se fodendo para Hollywood, o Oscar não significa nada. E, em Washington DC, ir a um jantar na Casa Branca é considerado uma grandessíssima honra. Mas se você reconhece que o governo federal é também uma indústria nojenta, cheia de segredos escusos e gente enlouquecida com o poder, então essa honra não tem valor nenhum. Está vendo que a coisa é um pouquinho mais complicada? As pessoas acham que as letras são bem diretas ao ponto, mas a coisa é um pouco mais sutil. É claro que entendo quando as pessoas lêem essa letra e pensam logo de cara: “Ah, esta é uma música sobre George Bush”. E talvez eu tenha mesmo sido inspirado por ele… Claro que eu acho que George Bush é um criminoso, claro que eu acho! Claro que eu acho que sua administração tem causado um dano terrível ao mundo! Seres humanos têm sido brutais uns com os outros desde o início dos tempos, até onde eu sei. E repetidamente as pessoas que estão no poder, governos de países do mundo inteiro, em algum período da história passam a se comportar de maneira absolutamente criminosa. Por exemplo, o que está acontecendo no Iraque neste momento não é uma guerra, não existem sequer dois lados ali, não passa de um crime militar, não passam de assassinatos. Este país (EUA) passa por um momento do qual não consegue sair. É óbvio que eu estou puto com George Bush. Mas mais do que achar que George Bush é um cara mau, eu estou puto com o fato de que ele tem um séqüito o seguindo. E essas pessoas não têm levado em consideração o valor da vida humana, elas simplesmente não pensam nisso. Eu sei que você, vivendo no Brasil… Bom, eu sei que sua história é repleta desse mesmo tipo de merda. 

Ou até mesmo pior…

Exato. Então, bem, eu tenho certeza que no Brasil existem alguns tipos de honra como jantar com o presidente. E, porra, quem se importa?! Se você não reconhece esse governo como algo de fato legítimo e que valha à pena, então isso não significa nada para você.

Então, meu ponto é que, na maioria das vezes, eu escrevo sobre o que eu penso e o que sinto, mas não é tão simples assim. Às vezes, eu tento ser bem direto ao ponto porque eu quero que as pessoas se envolvam, não quero que as pessoas achem que estou tentando confundi-las. No início do Minor Threat, eu dei às pessoas algumas idéias bem simples. Tentei ser o mais direto possível. O que eu descobri é que sendo tão direto, dando às pessoas idéias que, essencialmente, parecem completas, elas podem tomar essas idéias e usá-las como bem entenderem. Por exemplo, uma música como “Straight Edge”, que é uma música sobre auto-definição e autodeterminação, sobre viver a vida como você acha que é melhor para você, sobre rejeitar pressão de grupo e não ser forçado a fazer coisas que você não quer fazer, esta é uma idéia completa que pode ser usada por fundamentalistas para promover intolerância. Ou fazer pessoas obedecerem alguns tipos de tipo de estruturas. E isso nunca, nunca, nunca foi minha intenção.

Eu já usei essa analogia várias vezes antes, mas o que eu percebi é que, escrevendo mensagens extremamente diretas nas minhas músicas, eu posso ter criado “uniformes” que qualquer um pode usar. E uma vez o sujeito o veste, sejam lá quais forem suas intenções, este “uniforme” torna-se sua missão. Então, mais tarde, me dei conta de que ao invés de fazer “uniformes”, eu deveria “costurar” idéias do mesmo modo como se costura tecidos e tramas mais complexas para que as pessoas se envolvessem com isso, para elas construírem algo de positivo a partir disso.

Posso estar errado, mas a letras do Evens, de um modo geral, me passam uma sensação de que o mundo parece muito perdido — e consigo detectar até uma pontinha de desesperança…

Nas minhas letras? 

Sim.

Não! 

(risos) É o que eu sinto às vezes, mas deixe-me concluir: mesmo assim, existe um apelo, explícito ou não, para a reconstrução do senso de coletividade…

Sim, mas tenho que te dizer: minhas letras são muito positivas! 

Sim, mas tem alguma coisa de tristeza entre as camadas. Mesmo porque é um mundo triste às vezes.

Claro, parte dele é. Mas o mundo é alegre também. Mas isso é interessante. Numa música como “Shelter Two”, tem um refrão: “It’s all downhill from here” (É só ladeira abaixo a partir daqui). Não sei como é em português, mas esta frase tem uma conotação negativa no inglês. Mas eu e Amy estávamos pensando que quando nós cantamos “É só ladeira abaixo a partir daqui” significa que estamos num lugar elevado. Deve ser um lugar muito bom. Então, o jeito que vemos isso é que é uma música sobre eu e Amy nos encontrando e nos dando conta que daqui de cima é só ladeira abaixo. Estarmos juntos é tão bom, nos coloca num lugar tão elevado… Tem uma linha que diz “we keep on climbing and never find the top” (nós continuamos a escalar e nunca achamos o topo), ou seja, só fica cada vez melhor. A verdade é que eu jogo bastante com as palavras. 

Eu estou vendo. As letras parecem não ser tão simples quanto eu estava pensando. Acho que te subestimei um pouco…

Não, não, a coisa trapaceia um pouco mesmo. Várias partes das minhas músicas são meio tapeadoras. Nos EUA, sempre vem alguém até mim dizendo “cara, você é tão pra baixo…” Não! Se envolva com a música. Não leia o livro apenas, pense sobre ele. Não ouça a música apenas, se envolva, seja parte da música, deixe que as palavras façam efeito sobre você. Não entre nessa de “se é isto que está sendo dito, é isso que significa”. Não seja tão rápido. Tente entender o que a voz está dizendo naquele tom. Acho que indo tocar no Brasil, as pessoas vão poder de fato nos ver, e quando você assiste à performance de alguém é bem mais fácil ter uma idéia do que há por trás da música.

Mas, sim, eu canto mesmo sobre coisas que sinto e/ou com as quais me preocupo. Parte disso tem a ver com o fato de que durante a última década havia pouquíssimas bandas que cantavam sobre alguma coisa. Elas realmente mascaravam a coisa toda ou escondiam sentimentos por trás referências imagéticas esquisitas. Aí você tinha um monte de músicas sobre peças de carro e coisas do gênero, gente cantando sobre motores sendo ligados. (risos) Acho que nesse período as pessoas se tornaram muito retraídas para cantar sobre coisas com as quais elas se importavam. Na cultura americana, pelo menos, tornou-se bem não-cool se importar com algo. É o pânico de ser “politicamente correto”. O que é extremamente bizarro para mim. É errado ser correto politicamente falando? (risos) 

É, as pessoas tornaram-se cada vez mais cínicas e se sentem ridículas quando se preocupam com algo maior do que suas vidas particulares…

Na minha opinião, isso tem a ver com a “Revolução Reagan”, com as operações psicológicas dessa “Revolução Reagan”, que estimulou o cinismo e a fazer piada com as pessoas que se importam. E todo mundo se tornou irônico, o que é bem cômodo. Ironia se tornou tão habitual nesta cultura… 

Bem, mas eu não acho que seja exclusivamente relacionado a Reagan, é algo relacionado à falha do Projeto da Modernidade, sabe?

Hmmm… Quando disse “Revolução Reagan” eu não quis dizer que… Bom, o que eu sei é que quando Reagan assumiu o cargo de presidente, ele começou a bater forte no ativismo político de qualquer espécie. Porque, lembre-se, nos 70, a esquerda era um pouco mais forte, e havia Jimmy Carter. E Carter dizia: “Use um suéter!” Era sensacional! Um presidente dos Estados Unidos da América dizendo à população do país: “Desligue essa porra de aquecedor e use um suéter! Poupe energia!” Era inacreditável para mim um presidente americano dizer uma coisa daquela. Então, quando Reagan assumiu a Casa Branca, o lema era: “Ligue seus aquecedores, vão às compras, e não se preocupem, os EUA são o nº1 do mundo. Vocês não têm que se preocupar em serem responsáveis.” E quando eu disse “Revolução Reagan”, não estava me referindo a Ronald Reagan, mas a um todo, todo o levante da direita americana. E ele foi claramente bem sucedido. Veja só o que está acontecendo agora! 

Você acha que a administração de Bush é, de alguma forma, uma volta a esses tempos? Eu tenho falado com gente como Mission of Burma, Henry Rollins, Mike Watt, Gary Panter, e todos eles me disseram que sentem que, política e moralmente, os EUA estão voltando aos anos 80, ou ainda pior, aos anos 50.

Eu acho que as sociedades se movem em círculos. E, sim, eu sou obrigado a acreditar que estamos presenciando uma forte guinada à direita. Não dá para ir mais à direita que isso. Uma hora vamos ter que voltar um pouco para esquerda, uma hora as pessoas vão despertar. 

Pelo menos a maioria do Congresso americano não é mais republicana.

Exatamente. Acho que a população americana está começando a reconhecer que ela tem que dar um fim a esse seu sono profundo, a reconhecer que crimes estão acontecendo. Parece que estão começando a sentir a uma pontada de dor. Isso, no geral, é só uma sensação minha. Mas parece que as pessoas estão começando a sentir que terão que ser mais responsáveis. E, bom, se você sente alguma coisa, já é o primeiro passo para se importar com algo. Se você não sente, você não se importa com nada.

Sabe, eu sou de esquerda, eu acho que as pessoas têm que se importar. Eu acho que deveríamos ser politicamente corretos. Pense nessas palavras, no que isso significa: é sobre ser correto politicamente, não incorreto. Nós temos que reclamar de volta a língua, retomá-la dos republicanos e da direita. Eles definitivamente dominaram a língua e usaram a seu bel prazer. E a população americana, por causa desse seu sono profundo e da mídia, e em virtude de sua isolação e falta de senso coletivo, se rendeu a essas idéias. Mas eu acho que, coletivamente, as pessoas começaram a se dar conta de que as coisas estão fodidas. 

Bom, já que falamos tanto sobre a era Reagan, sou obrigado a falar dessa nostalgia em volta do punk hardcore oitentista que tem sido aquecida por alguns livros e documentários lançados recentemente. Vi você falando, no programa de Ian Svenonius, Soft Focus, que não está interessando em ler e ver esses livros e documentários porque ler o que outros têm a dizer sobre o que você fez pode interferir no que você está fazendo agora. Isso aí tem a ver com o fato de que enquanto para alguns o punk rock foi um fenômeno passageiro, você sempre deixa claro que você ainda faz música punk.

Sim! Claro! 

Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que existe uma continuidade do conceito punk?

Porque sabe quando você freqüenta o ensino médio e aí você se forma, e então esse período da sua vida fica para sempre no passado? Na sua cabeça, o ensino médio foi aquilo lá que você fez naquele tempo e naquele lugar. Algumas pessoas encaram o punk rock assim. Elas se graduam em punk rock. E uma vez graduadas, pronto, o punk está morto. Mas eu não penso em vida em termos de graduação, é tudo uma linha só para mim. Eu nunca deixei de ser um punk rocker. E mesmo quando eu descobri o punk, em 1979, foi muito importante para mim, mas não foi como “pôxa, estão aí algumas idéias nas quais nunca tinha pensando antes”. Foi mais como “Ah! Aqui está o lugar onde deveria estar!”.
As pessoas falam: “o punk está morto”, e eu digo: “não, o seu punk está morto”. O punk não morre. Aqui vai uma imagem para você: você está sentado na beira de um rio, vendo o fluxo, e percebe que num ponto do seu curso a água está ficando agitada porque está passando por cima de uma pedra. O rio é calmo, mas neste ponto a água borbulha e esguicha. Isto é punk rock. As pessoas podem prestar atenção na pedra por algum tempo e depois simplesmente seguir o fluxo. Para elas, a rocha ficou para trás, mas ela sempre estará ali, na contramão do rio. Enquanto houver mainstream, haverá underground. Enquanto o houver tédio e inércia, e a tentativa de convencer a garotada que este é o jeito como as coisas são, ela vai dizer: “nós rejeitamos isso”. A coisa pode mudar de nome, mas nunca morre.

Olha só, eu vi Leonard Cohen tocar uma vez aqui em Washington DC. Eu adoro Leonard Cohen. Sua filha é fã de Fugazi e ela nos convidou para o show. E no palco, Leonard Cohen dedicou uma música para o Fugazi. 

Sério? Caralho! Você viu isso?

Sim, eu estava lá! Eu levei minha mãe comigo! 

Você deve ter ficado doidão.

Ah, sim, eu fiquei maluco! (risos) Bom, mas ele disse do palco: “Fugazi é uma banda que trava uma batalha num mundo melhor descrito como fodido. E eu os vejo claramente como um elo da corrente da qual sou parte”. E, bom, é isso aí! 

Cacete… E quantos anos ele tem? 70 e alguma coisa?

Isso foi há uns 10 anos, então ele devia ter uns 60 e alguma coisa, caminhando para os 70… Mas o ponto é que ele vê os elos dessa corrente. É como uma linha cronológica: um elo, depois outro elo, outro elo, outro elo, mais um elo… E eu vejo da mesma forma.

Mas voltando àquela coisa da relação das pessoas com a história do punk rock, isso vem de querer ser parte da história. Eu não estou nem aí pra isso, eu quero é ser parte do presente. 

Mas você não acha que esses livros e documentários podem ser úteis para as novas gerações?

Eu não disse que eles não deveriam existir. Tudo que eu disse é que eu não estou interessado. Claro que as pessoas devem escrever sobre isso. Eu acho importante. 

Mas você nem quer saber disso…

Eu não quero ler sobre a minha própria história porque será escrita da maneira errada. Quem pode escrever a sua história de um jeito certo? Tipo, eu posso escrever um livro sobre a sua carreira e sua biografia corretamente? Eu consigo escrever um livro tão certo sobre você que você pode lê-lo sem problemas? Sem chance alguma!

Em alguns momentos, eu me deparei com livros e comentários de algumas pessoas sobre a minha história e falavam por que eu fiz isso ou aquilo… E eram tão errados! Era inacreditável! Uma vez eu li uma coisa sobre uma música que eu escrevi no Minor Threat e dizia lá que eu estava tão puto com a política de Reagan em El Salvador… E, porra, era pura bobagem! Essa música específica foi escrita porque eu estava chateado, porque eu estava puto pra caralho com alguns amigos, porque tinha alguns problemas de relacionamento com uma pessoa, ficava nervoso só de pensar nessa pessoa… Então, sejam quais forem suas intenções, o escritor sempre vai se colocar no meio do assunto. A sua abordagem da minha história vai ser errada. Eu não digo errado para todo mundo, mas para mim. Eu não posso ler isso, seria depressivo. E se eu lesse, talvez eu deixaria de fazer as minhas coisas. E não quero parar de fazer as minhas coisas. 

Beleza, mas por que você contribui com esse tipo de coisa então? Você está por todos os lados quando o assunto é o registro da história do hardcore.

Eu acho que dou essas entrevistas porque é importante alguém falar sobre coisas positivas. Porque, nesses registros, tem tantas pessoas que estão tão despregadas da sua própria história que quando elas falam sobre isso só enfatizam o aspecto sensacionalista da coisa: “era tão violento”, “éramos tão malvados e loucos”, “isso era negativo”, “aquilo era tão diabólico”. Todos os livros e filmes dos quais me falaram sempre enfatizam o quão fodido, perigoso e violento era o hardcore durante os anos 80. Mas, para mim, a história nunca foi sobre a violência. A história é que, apesar da violência, apesar da insanidade, apesar dos obstáculos e dificuldades, havia uma paixão pela música e por aquela comunidade e isso era o que nos mantinha produzindo. Esta é a história. Você conhece Michael Azerrad? 

Que escreveu “Our Band Could Be Your Life”, certo?

Isso. Eu não li o livro dele, mas eu o conheço pessoalmente. Uma vez, eu fui vê-lo fazer uma leitura de seu livro. Ele leu umas quatro ou cinco coisas diferentes do livro. Todas elas eram sobre: “oh, alguém jogou um saco cheio de vômito no palco”, “alguém bateu em outrem”, “um fulano sofreu uma overdose”… Depois da leitura, nós nos cumprimentamos e eu disse para ele: “Eu estou chocado de verdade com a seleção que fez do seu livro. Porque tudo que você falou está relacionado ao sensacionalismo. Tudo é negativo e violento. Você falou de destruição, mas nós éramos construtores! Nós estávamos criando algo.” Eu não me sentava numa porra de van por dias e dias, dirigindo de costa a costa, porque eu queria quebrar as coisas, eu queria criar coisas. Mas este sou eu. E espero que quando eu dou essas entrevistas, as pessoas possam comparar as coisas que eu falo com as que os outros entrevistados falam e perceber que eu vejo o punk rock como uma coisa profundamente positiva e construtiva. Eu nunca me interessei pelo aspecto nilista disso. Eu sempre pensei isso como música, como uma comunidade, e isso é bom, não ruim.

Sinto muito, mas é frustrante, para mim, ter dividido quartos e palcos com pessoas que eram cheias até o estômago de violência, que não perdiam a oportunidade de espancar alguém. É triste ter que ter dividido palcos e espaços com pessoas que tinham demônios tão internos que só podiam mitigá-los por meio de drogas e suicídio. Sinto muito ter visto pessoas tão confusas a respeito de sua própria sexualidade que acabavam abusando, manipulando ou tirando vantagem de outras. Estas são coisas frustrantes, mas, por outro lado, a vida é assim, o mundo em que vivemos é assim. No meu ponto de vista, o que era importante é que éramos garotos trabalhando juntos, montado suas próprias bandas, fazendo suas próprias músicas, organizando seus próprios shows e turnês, fazendo todas essas coisas completamente à parte da indústria. A indústria reclamava para ela a propriedade e o direito a todo tipo de música e nós dizíamos: “Vai se foder! Você não é dona de tudo! Você não pode nos ter!” 

É, isso que você está dizendo faz muito sentido, porque no final daquele livro “American Hardcore”, de Steven Blush, há um capítulo que se dedica a listar depoimentos que explicam porque o punk acabou. E você, um cara extremamente presente no livro, não consta nesse capítulo.

Pois é! Não tem. E no filme (American Hardcore, de Steven Blush e Paul Rachman), ele me fez a mesma pergunta novamente e eu lhe falei: “Eu não deixei o hardcore, o hardcore é que me deixou. No meu ponto vista, eu nunca deixei de ser um punk rocker, eu nunca deixei de ser hardcore. Sou mais hardcore do que antes. O problema é que a palavra foi associada a uma imagem bem particular”. Deixe-me te contar uma coisa: eu acabo de voltar de uma turnê de um mês na Austrália, onde eu e Amy dirigimos todos os dias, carregamos e montamos nosso próprio equipamento, tocamos em lugares onde nenhuma banda toca. A coisa toda foi muito desafiadora. Isso foi hardcore para caralho!. Nós não maquiamos nossa música com volume, figurinos, luzes ou cenário. Nós simplesmente tocamos praticamente no chão a uma distância de um metro da platéia. Dá para ser mais hardcore que isso? 

Quase a mesma coisa nos início dos anos 80…

Exatamente a mesma coisa! Nós estávamos levando a música até as pessoas e tentando nos fazer entender. Minor Threat não era alto, nós éramos rápidos. Mas nada se compara com o sistema de PA’s que hoje vemos em shows. É insano o tamanho dos PA’s de hoje! E o Minor Threat tocava com caixinhas! Claro que éramos furiosos e rápidos e tudo mais, mas tocávamos em porões das casas das pessoas! Hoje, nós vemos por aí shows para 40 mil pessoas e os PA’s têm o tamanho de containers de navio…

Você precisa usar protetores auriculares para ouvir música? Imagine você comendo um prato qualquer, e a comida é tão apimentada que você tem usar uma espécie de aparato de borracha na sua boca. Para mim, isto é ouvir música com protetores auriculares. Isso é loucura! Não faz o menor sentido! Quando você coloca protetores auriculares no seu ouvido, você filtra os mais belos tipos de texturas sonoras e nuances. Tudo se torna um zumbindo só. Obviamente, você usa isso porque está tentando salvar a sua audição. Mas, porra, por que tão alto então? As pessoas, confusamente, equacionam poder e volume, pensam que são a mesma coisa. E não são a mesma coisa. 

É, o volume no rock às vezes corre o risco de ser uma coisa meio fálica…

Sim, é como em Mágico de Oz. Ele está atrás das cortinas, emitindo uma voz altíssima, imensa, soprando tudo a sua frente! Aquilo é o rock ‘n’ roll, baby!
(risos) 

Você sempre diz que o melhor jeito de evitar a super exploração econômica de majors e o mainstream não é destruindo-os, mas criando um novo ambiente artístico independente. A Internet está mudando as regras da indústria musical. Há quem diga que ela está expandindo a ética d.i.y. (do it yourself, faça você mesmo) do punk e redemocratizando a música. Você acha que as coisas estão realmente mudando nesse sentido?

Hmmm… Talvez a coisa não seja tão revolucionária assim. Mas idéia da música poder escoar globalmente é bem interessante. Por exemplo, muitos de nossos discos não chegam até o Brasil e agora qualquer um com acesso a um computador pode comprá-lo ou pegá-lo de graça. É claro que, no momento, uma parte importante dessa equação é ter acesso a um computador. Mas, sim, no mundo ocidental, onde muitas pessoas têm acesso a um computador, está acontecendo algum tipo de democratização. Mas ainda é bem cedo para constatar qualquer coisa.

De qualquer forma, existem aplicações excelentes referentes a computadores. É maravilhoso para mim a idéia de que se eu estou interessado em um determinado tipo de música, eu posso encontrá-lo no computador. Eu não acho que soa bem, mas pelo menos eu posso ouvir e ter uma idéia de como é. Eu não tenho um Ipod, e, pessoalmente, não escuto muita música digital. Eu ouço música em vinil, cds ou em fitas. Este sou eu. Mas é ótimo isso. Na Austrália e Nova Zelândia, eu perguntava às pessoas: “quantos de vocês baixaram nossos discos?” E um monte de pessoas tinha feito isso. E de graça! Eu dizia: “obrigado!” É para isso que fazemos música, para as pessoas ouvirem.

O simples fato de você me perguntar sobre o The Evens já me deixa feliz. Significa que nossa música chegou aí. Este é o ponto, é por isso que fazemos música. Eu não faço música para fazer grana. (risos) Eu faço para que as pessoas se envolvam com a minha música. O fato de ir ao Brasil e as pessoas daí terem uma idéia de como soamos me deixa muito feliz.

Nesse aspecto, internet é um excelente instrumento. E eu não me importo com downloads gratuitos. Para mim, está legal. É claro que as pessoas devem apoiar os artistas, dar suporte ao trabalho deles e não esperar que Bill Gates faça isso. Porque fazer música não é de graça. Estamos indo ao Brasil e isso não é de graça.

Mas, bem, acho que vai ser interessante ver o que vai acontecer. Primeiro é necessário que todos tenham acesso a computadores. Aí, sim, poderemos falar sobre democratização.

Uma coisa que é louca sobre isso é que a internet é vastíssima. É de longe a maior loja de discos do mundo. Por onde começar? Eu estava aqui me lembrando que quando eu comecei a me apaixonar por punk rock foi numa pequena lojinha de discos… E, pense só nisso: eu e você estamos aqui falando por, sei lá, quase uma hora, e enquanto nós falamos, no resto do mundo, foi criada música suficiente para ouvirmos pelo resto de nossas vidas. Então, está tudo lá fora. Sempre esteve, mesmo antes da internet. E, sinceramente, eu realmente não sei quantas opções a mais eu preciso. Se uma música me parece interessante, vou atrás dela, faço uma pequena pesquisa e procuro comprar os discos, se ela me diz alguma coisa. Mas ter tudo em termos de música, ter toda a música do mundo disponível no meu computador… Eu não dou a mínima pra isso. Isso é loucura.

Vou te dizer a última coisa sobre internet: se a internet de fato destruir a indústria fonográfica um dia e devolver a música ao ar, será como ver a União Soviética ruir. E ficarei mais do que satisfeito em ver minha pequena gravadora ruir junto. Desde o advento da energia elétrica, a indústria da música tem sido um imenso monopólio. Antes disso, a música estava no ar, não pertencia a ninguém, não havia como vendê-la. Óbvio que você pagava para ver alguém tocando, pagava por uma partitura, mas a música em si era de graça. E de mais ou menos uns 100 anos para cá, a indústria construiu um monopólio completamente totalizante da música. Mas se a internet conseguir falir todo o sistema da indústria da música, está ótimo para mim, que a Dischord vá pro ralo junto. É mais importante que música esteja nas mãos das pessoas. É difícil para eu entender o pânico em torno disso. Se os músicos arrumarem um jeito de conseguir dinheiro, está tudo bem. E não há porque temer isso, músicos sempre arranjaram um jeito de serem pagos.

30/03/2007

por Sávio Vilela

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