Eu confesso: tenho dificuldade para parar e colocar para
ouvir, com a devida atenção, discos de bandas sergipanas de cuja quantidade de shows
a que fui eu já perdi a conta. É o caso da Karne Krua, que eu conheço desde o II
Festcore de Aracaju, minha primeira experiência como publico de um festival de
rock underground, há muito tempo atrás, numa galáxia muito distante. De lá pra
cá, acompanhei todas as fases da banda – que nunca parou! Já enjoei, desenjoei,
virei fã, desgostei e voltei a gostar. Sou um entusiasta da atual formação, que
considero a melhor desde a clássica, com Almada, Marlio e Marcelo – na verdade
desconfio que esta já seja
A melhor, superando todas as outras, mas isto
é assunto para outro texto – ou não.
Eu
sabia que “Inanição” é primoroso, certamente o melhor disco da banda e um dos
melhores do estilo lançado no Brasil nos últimos - e raquíticos - tempos. Mas
nunca tinha parado para ouvir como se deve: em CD, num aparelho de som decente,
com o encarte nas mãos e acompanhando as letras. Fiz isto hoje, e fiquei “de
cara”. Que puta disco do caralho !!!! Puta que o pariu, porra, caralho, é bom
pra cacete !!!!
Já
começa impressionando com a excelente letra de “Dois Cumes”, de autoria do
conterrâneo Ricardo “guerrilheiro”. Dizer que somente a letra é boa seria
injustiça: a música, de Silvio Campos, é igualmente matadora! O cara tem que
ter muito talento pra musicar um texto de forma tão primorosa! Destaque para o
final, que faz referência ao clássico do cinema politizado nacional “Cabra
marcado pra morrer”. Na sequencia, duas regravações de petardos hardcore de
duas fases distintas: “lixeiras da cidade”, que nos remete aos primórdios do
punk rock em Aracaju, e “cobaias”, uma das muitas que vi a banda lapidar e
polir nos anos 90. Esta última é inteligentemente linkada com outra mais
recente que trata do mesmo tema, “Animais indefesos”, que tem excelente letra
de Silvio e musica em parceria com Alexandre Gandhi. O refrão trás uma imagem poderosíssima: “são as cobaias trancadas em
jaulas torturadas queimadas e envenenadas”. Morrissey assinaria embaixo.
A
quinta faixa, “infinitivos”, também tem letra de Ricardo “Guerrilheiro” e
musica de Silvio – só que, desta vez, com um resultado bem inferior à primeira.
É, provavelmente, a mais fraca de todo o álbum. Mas a peteca não cai, pois em
seguida entramos numa espécie de sequencia conceitual dentro do disco, com várias
canções dedicadas a um tema caro a Silvio, o sofrimento do homem do campo
nordestino. Por muito tempo reclamei com ele deste direcionamento que ele às
vezes tomava. Via a Karne Krua como uma banda eminentemente urbana e, por isto,
achava meio forçada essa faceta, digamos, “regionalista”. Com “inanição”, mudei
de idéia. Aqui eles encontraram o equilíbrio perfeito entre a influencia da
musica folclórica do nordeste, notadamente os “aboios” entoados pelos vaqueiros
durante a condução do gado, e a agressividade do punk rock. E percebi, de uma
vez por todas, que a Karne Krua canta o canto dos esquecidos, sejam eles os párias
sociais que gravitam na periferia das grandes cidades, os sertanejos
eternamente castigados pela “política da seca” ou mesmo os animais ditos “irracionais”,
vítimas inocentes da “racionalidade” humana.
A primeira
faixa da sequencia “sertaneja” é uma junção de duas músicas, “Terra Morta” e “o
vaqueiro e a boiada”. Perfeita. Silvio parece ter sido vaqueiro nalguma vida
passada, pois encarna muito bem o personagem sofrido do interior. É seguida por
um dos grandes clássicos de uma das formações anteriores, “o guerreiro”, assinada
por Wendell, Mazinho, Silvio e Thiago, com seu refrão solene que reverencia
aquele que é, segundo a definição de Euclides da Cunha, “antes de tudo, um
forte”. E então temos “Lamento dos esquecidos”, uma faixa com um andamento mais
lento, quase uma “balada”, que destoa de praticamente todo o repertorio da
banda. Evidencia uma das muitas caracteristicas positivas da Karne: sua coragem
para ousar sempre, indo além dos cânones estabelecidos pelo estilo na qual
foram forjados. E segue ousando com uma espécie de rap/repente de letra quilométrica,
“Do sol latente ao cinza das ruas” – letra de Max Alberto. É emendada, encerrando
a sequencia semiconceitual, com a excelente “No cinza da cidade eu morrerei” –
letra e musica de Alexandre Gandhi.
Somos
brindados então com a regravação de mais dois clássicos de tempos remotos, “Hienas
na Carcaça” e “Perdidos”, ambas de autoria de Marcelo Gaspar. É uma pena que a
letra da primeira não tenha sido reproduzida no encarte, pois é primorosa – fala
dos “homens que constroem catedrais”. Tão boa quanto a de “Mensões do futuro”,
de Valdeleno, ex-baterista. A esta altura já fica evidente outra característica
positiva: a Karne Krua é e sempre foi uma banda, não um projeto personalista
centralizado na figura de Silvio, como alguns erroneamente já interpretaram. Todos
os que passam por suas fileiras têm amplo espaço para desenvolver suas
habilidades tanto como músicos quanto como compositores, o que fica evidente
nos créditos reproduzidos no encarte. Eu, por exemplo, não sabia que Valdeleno
compunha, e bem! Foi uma agradável surpresa. Há espaço, inclusive, para a
colaboração de pessoas de fora da banda, como o poeta Nagir Macaô, o já
mencionado Ricardo e Marcos Aurélio, autor da letra de “Navalha no pescoço”. O
que já não é surpresa é o talento de Alexandre Gandhi, que além dos riffs
matadores de guitarra compôs algumas das melhores canções da fase recente da
banda, a exemplo de “Inanição”, a música. Uma obra-prima. A Master piece – para
que fique claro, inclusive para os gringos que por um acaso passarem os olhos
por aqui ...
Fechando o disco com mais um toque conceitual, “O vaqueiro e a boiada”,
de volta. “Inanição” é um registro de uma fase de transição da Karne Krua. Foi
gravado com Alexandre Gandhi assumindo o baixo e Thiago “Babalu” ainda na
bateria. Posteriormente a banda encontraria aquela que parece ser sua formação
definitiva, com Ivo Delmondes nas quatro cordas e Adriano empunhando as
baquetas. Seguem tocando e compondo e, a julgar pelo que vi e ouvi durante a já
célebre sessão de lançamento do disco no programa de rock, vem coisa muito boa
ainda aí pela frente.
Acima
de tudo, “Inanição” é a comprovação de algo que eu já sabia: Sergipe tem uma
banda clássica de punk rock/hardcore. Uma banda que, caso tivesse nascido e
atuado em São Paulo
ou algum outro centro urbano com maior visibilidade midiática, seria colocada
no mesmo panteão de nomes como Cólera, Olho Seco e Ratos de Porão. Acho isto
desde que os vi em ação pela primeira vez. Digo isto o tempo todo, pra quem
quiser ouvir. Não sou bairrista - até prefiro Recife a Aracaju e Aracaju à
minha cidade natal, Itabaiana. Digo isto porque acho mesmo. De verdade.
Viva a
Karne Krua!
por Adelvan
Fotos acima por Reinaldo & Walber. A foto ao lado é da Snapic, trabalhada por Thiago "Cachorrão"
Deu vontade de ouvir depois de tantos elogios, com certeza merecidos. Belo texto.
ResponderExcluirNão sei se vc vai gostar pq é rock "pauleira", mas é muito bom no que se propõe.
ResponderExcluirRealmente este álbum é magnífico.
ResponderExcluirFoda esse albúm e fico muito feliz por ter participado produzindo a capa, vida longa a Karne!!!!
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