segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Há 18 anos, Nirvana no Brasil

Há exatos 18 anos eu tive uma noite traumática. Sempre aproveitava para matar dois (ou mais) coelhos numa cajadada só e agendava minhas visitas periódicas a uma tia querida e a meus correspondentes em Sp para que coincidissem com shows que me interessassem e estivessem ocorrendo na cidade. Foi assim quando eu soube da vinda do Nirvana ao Hollywood Rock.

Tudo teria corrido bem se eu não tivesse me atrasado na volta de Santos, para onde tinha ido para conhecer, pessoalmente, meus grandes amigos Marly, Angelo, Morto e cia., do No Sense, banda pioneira do grindcore no Brasil. Foi ótimo, aproveitei e assiti a um ensaio deles, mas por conta disso, me atrasei e teria que sair dali correndo pro Morumbi, não sem antes me encontrar com uma amiga que tinha comprado meu ingresso. Liguei pra casa dela e, para meu desespero, a mãe dela atendeu e me falou que ela tinha esperado minha ligação mas que já tinha ido para o estádio. Com meu ingresso ! Não havia telefone celular nesta época. Minha única chance de não perder o show seria ir ao estádio arriscar uma compra de última hora, via cambista talvez, mas meu orçamento estava apertado e eu fiquei constrangido de pedir a grana emprestada a minha tia, além de não ter muita desenvoltura para andar por Sampa sozinho na época. Resultado: voltei para a casa de minha tia, onde estava hospedado, e fiquei lá, literalmente tentando, sem muito sucesso, conter o choro. Por sorte estava passando um clássico do cinema na globo (é, meus amigos, nesse tempo a vênus platinada ainda exibia bons filmes com uma certa regularidade), "Festim Diabólico", de Alfred Hitchcock, mas não teve jeito: não conseguia esquecer que estava perdendo aquela que seria, provavelmente, minha única oportunidade de ver uma de minhas bandas favoritas ao vivo.

No dia seguinte perguntei a um amigo de Goiânia (Oscar F.) que tinha ido como tinha sido e ele me disse que foi horrível, a banda se auto-sabotou e praticamente não tocou nada, só ficou fazendo barulhos desconexos no palco. Voltei pra casa a tempo de ver a apresentação do Rio pela TV e vibrei: Achei simplesmente sensacional a atitude dos caras de simplesmente não fazer nada daquilo que se esperava deles, e ainda por cima cuspir e simular uma punheta ao vivo para todo o Brasil, pela tela da Globo ! Antológico - e olha que, segundo relatos, o show de São Paulo tinha sido ainda mais caótico. A maioria de meus amigos, no dia seguinte, estava decepcionadíssima, mas eu me orgulho em dizer que fui um dos que entenderam e aplaudiram desde o início o conceito do "anti-show".

Em todo caso, fiquei por um bom tempo conhecido como "o cara que perdeu o show do Nirvana".

A.

* * *

"Com vocês, a maior banda underground de todos os tempos: Nirvana!" - assim João Gordo anunciou a presença de Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl no estádio do Morumbi, em São Paulo, no sábado, 16 de janeiro de 1993, para uma multidão de cerca de 110 mil pessoas, a maior para a qual o grupo já tocou. A banda era uma das estrelas do festival de música Hollywood Rock, que aconteceria em São Paulo e no Rio e que contou também alguns outros grandes nomes da época, como Alice in Chains, L7 e Red Hot Chili Peppers.

O Nirvana havia confirmado sua vinda ao Brasil em novembro de 1992. O show em São Paulo era o primeiro do ano e o primeiro depois de um hiato de três meses - a última performance tinha acontecido em 10 de outubro de 1992, em Buenos Aires, Argentina. Finalmente o país recebia não só uma banda no auge de sua forma, mas também a última grande corrente forte do rock and roll: aquilo que todos adoravam chamar de grunge. "Heavier Than Heaven: Mais Pesado que o Céu: Uma Biografia de Kurt Cobain", obra que examina a vida do guitarrista, traz em suas páginas momentos da excursão do Nirvana pelo Brasil.

Kurt Cobain chegou a São Paulo na manhã do dia 15 com a sua banda e desembarcou sobre um carrinho de bagagens empurrado por sua mulher, Courtney Love. Vários fãs aguardavam a chegada da banda no aeroporto internacional de Guarulhos (Grande SP), com a expectativa de conseguir alguns autógrafos. Krist, ao desembarcar, saudou o público com um gesto fascista. Mais irônico, impossível. Era o Nirvana.

As exigências para a montagem do camarim e para a estadia da banda no Brasil haviam sido feitas dias antes e contaram com psicólogo, estúdio e um cozinheiro exclusivo, mas o grupo acabou desistindo das duas primeiras demandas. O estúdio acabou sendo remarcado apenas para o período posterior, no Rio. Na lista inicial de exigências, o Nirvana proibia todo tipo de cogumelo na composição de qualquer refeição da equipe.

A banda e todos os outros artistas que se apresentariam no festival se hospedaram no hotel Maksoud Plaza, na região da Avenida Paulista. Ali havia uma loja de presentes que vendia Valium, um benzodiazepínico. No dia do show, Dave Grohl foi procurar por Cobain e, horrorizado, o encontrou ali tomando um calmante atrás do outro.

O Nirvana conversou com a Folha naquele dia 15. Falando do seu quarto no Maksoud, o baterista Dave Grohl negou que o grupo teria pedido um psicólogo. "Vocês da imprensa são foda! (risos) Escrevem o que querem, é essa mentalidade de tabloide que existe na América. Sei lá, escreve o que você quiser, escreve aí que eu pedi quatro psicólogos", disse, divertindo-se. Novoselic, bem humorado, declarou que veio ao Brasil para fazer o impeachment de Fernando Collor de Melo, que havia renunciado ao cargo de presidente em 29 de dezembro de 1992, pouco antes de ser condenado pelo Senado por crime de responsabilidade. Sobre as comparações entre Bill Clinton (presidente dos Estados Unidos em 1993) e Collor, disse, irônico: "não sabia que eles tinham uma relação homossexual". Novoselic deu uma entrevista assim que chegou ao hotel, às 8h30.

Krist havia entrado numa polêmica depois de conceder, de Seattle, uma longa entrevista à revista "Veja", dias antes de seguir para o Brasil. A partir de suas declarações, a ele foi atribuída a fala de que 80% dos fãs do Nirvana eram idiotas, ao passo que Krist tentava demonstrar sua insatisfação com a situação vivida pelos Estados Unidos no começo dos anos 90: americanos que davam total apoio à Operação Tempestade no Deserto ou que celebravam o enforcamento de um condenado à morte eram os mesmos que compravam os discos do Nirvana. Mas sua banda tinha um mecanismo de autodefesa: ela era sarcástica e cínica com esse público na sua música. Novoselic tentava dizer que 80% da população mundial não fazia ideia do que acontecia ao seu redor. À Folha, ele diz não ter ofendido fãs. Segundo ele, houve um erro de interpretação na entrevista. "Seria idiota se dissesse isso. Também gosto de rock, como eles", contou.

Já Kurt, disse à Folha ter achado as fãs apaixonantes e bonitas. Mas, um pouco incomodado, teve que interromper uma mousse de chocolate comprada no restaurante do hotel por causa da chegada de fãs e fotógrafos. Descalço e de óculos escuros, ele falou ao jornal e reclamou das agruras do sucesso. "Não tem onde fazer compras aqui, está 'fucking hot', ninguém me deixa em paz. Não entendo essa gente querendo me olhar, me assistir o tempo todo. Eu não me importo, mas estou de saco cheio. Estou cansado. Vou mudar de profissão, não vou aguentar isso a minha vida inteira. Serei lixeiro, um feliz e saudável lixeiro", resmungava. Mas tudo não passava de charme. E charme maior ele guardava para depois, para quando fosse matar a saudade de sua filha com Courtney Love, a pequena Frances Bean Cobain, então com cinco meses de idade, que tinha ficado em casa.

Com um Kurt devagar, sofrendo com problemas vindos da fama, da conturbada relação com Courtney Love e da abstinência de heroína, o Nirvana seguiu para o estádio do Morumbi no dia 16 para uma das performances mais doidas, estranhas, lendárias, insanas e emblemáticas de sua história, senão a mais. Foram apresentadas cerca de 32 músicas no total, entre covers surreais de bandas como Iron Maiden, Led Zeppelin, Clash e Queen, e faixas dos discos "Bleach" (1989), "Nevermind" (1991), "Incesticide" (coletânea de sobras e lados B, 1992) e "In Utero" (1993), que até então não tinha sido sequer gravado. Com Kurt extremamente debilitado e irritado por saber de João Gordo que Hollywood era marca de cigarro, que o festival não apoiava bandas undergound e que tinha ingressos caros, a banda não executou uma performance técnica que fazia jus ao auge vivido pelo grupo. Mas o jus viria de outra maneira, na forma de loucura, diversão e descompromisso.

O concerto começou com uma microfonia violenta para a entrada de "School", primeira canção da noite, tocada num ritmo lento e totalmente fora do convencional. Era só o começo da zona. "Tocamos num estádio para umas 110 mil pessoas em São Paulo. Tivemos uma pane mental no palco e tocamos 'Seasons in the Sun' e 'Rio', do Duran Duran. Foi muito divertido", contou Krist à MTV em outubro de 1993. "Foi uma bagunça", disse Dave. "Foi ótimo", completou Kurt.

O que se seguiu foi uma baderna gigantesca. Muita gente virou as costas e fugiu do Morumbi. Era uma doideira atrás da outra. Flea, baixista dos Chili Peppers, entrou no palco com seu trompete e tocou o solo de "Smells Like Teen Spirit". No meio do show, o técnico de guitarra da banda, Earnie Bailey, jogou um melão no palco, como se tivesse arremessado uma bola de boliche. "Num formal ato de protesto, arremessei um melão na direção de Kurt enquanto ele tentava tocar algo que vagamente lembrava uma canção. E aí ele logo se prontificou a triturar o bagulho inteiro, com as cordas da guitarra, enquanto tocava sua Fender Jaguar. Foi um negócio sórdido, e tenho certeza que ainda existem pedaços de melão naquela guitarra", contou Earnie em 2002 para o fã-clube do Nirvana na internet. Depois de uns 30 minutos de show, Krist jogou o baixo contra Kurt, foi embora do palco e sumiu. Como a banda estava sob contrato e tinha que tocar por pelo menos 45 minutos, ele teve que ser encontrado e convencido a voltar. Quando retornou, pegou seu baixo, que havia sido arremessado a uma distância de cerca de 10 metros, e prontamente começou a tocar a próxima música, sem nem ter acertado a afinação do instrumento.

Depois de "Territorial Pissings", Kurt arranhou um cover de "Run to the Hills", do Iron Maiden. Era o preparativo para mais um surto psicótico do cantor, que logo começou a destruir a Fender Stratocaster preta que tocava. Com o instrumento em cacos, desceu ao público para entregar os pedaços, em vez de jogar. Voltou inteiro. O jornalista Lúcio Ribeiro escreveu sobre o paradeiro da relíquia para a Folha, em 2004.

Mas o ápice da noite ainda estava por vir, quando os músicos trocaram de instrumentos. Dave foi para o baixo, Krist para a guitarra e Kurt para a bateria. Com essa formação, uma das faixas tocadas foi "Seasons in the Sun", música com letra do poeta norte-americano Rod McKuen que ficou famosa em 1974 quando teve Terry Jacks como intérprete. A canção, que Cobain lembra-se de ter chorado ao ouvir durante a infância e que fala sobre os bons momentos vividos pelo eu-lírico, com tons de despedida que giram em torno da morte e/ou do suicídio, é uma adaptação da música "Le Moribond", escrita originalmente pelo compositor belga Jacques Brel.

"Aquilo [a troca de instrumentos] simplesmente não funcionava em um estádio imenso no Brasil. Podia ver essa doideira como sendo o limite alcançado pelo punk rock como performance de arte, mas num clube pequeno, como o Vogue, em Seattle", diz Bailey. "Eles terminaram o show destruindo um monte de equipamentos. Foi demais, mas teríamos um outro show dias depois, e eu tinha que despachar tudo para outra cidade durante a madrugada para depois consertar e ter tudo funcionando no Rio de Janeiro. Acabamos pagando mais ou menos 300 dólares para consertar cada peça de alto-falante que teria custado coisa de 75 dólares nos Estados Unidos ou na Europa. Enchemos um galpão no hotel Intercontinental, no Rio, e consertamos tudo nos dias que se seguiram. Foi uma loucura, me lembrou mecânicos tentando reconstruir um avião que acabou de sofrer uma queda. Depois ainda me preparei para ver tudo se transformar num amontoado de sucata durante o show no Rio, mas lá nem mesmo uma única corda de guitarra foi quebrada", finaliza Bailey.

Assim mais alguns covers foram tocados, como "Should I Stay or Should I Go" (The Clash) e "Rio" (Duran Duran), até a banda reassumir a formação normal, para a saideira, quando executou as últimas faixas da noite, do álbum "In Utero". Durante a jam em cima de "Scentless Apprentice", mais uma sessão de quebradeira iniciava-se. Kurt arrebentou uma Fender Telecaster que ele pintou a frente de azul, desenhou um coração e escreveu "Courtney" e a utilizou para estraçalhar alguns alto-falantes. Krist e Dave haviam caído fora. O que restou no fundo do palco foi um Cobain praticamente sozinho, sob o silêncio da plateia e das estrelas, destruindo lenta e quase que delicadamente todo o resto do equipamento que conseguia. Sua esposa também havia subido no palco para ajudar na destruição. Courtney que, ao final do show, teve que se esforçar para retirar o marido dali.

Numa crítica publicada na versão impressa da Folha em 18 de janeiro, a matéria classificou o show como uma "apresentação impossível e plateia impassível". O artigo lembra que Kurt, solitário, "derrubou as paredes de amplificadores e chutou a bateria. Quando tentava decidir onde enfiar o último pedestal de prato, o amigo Chris, gentil, voltou e jogou a toalha. E foi só isso. Dá para gostar de um show desses?"

Para o jornalista Marcelo Orozco, dá. Não só dá como o espetáculo "acabou sendo histórico pelo momento único", diz. Marcelo conversou com exclusividade com a Livraria da Folha e foi ao concerto como mero espectador. "Um distanciamento que prefiro ter", conta. "Gostei muito do show no Morumbi no dia e sigo gostando até hoje, ao contrário de uma grande maioria que seguiu rumo aos portões com o show ainda no meio. Foi meio um ato de sabotagem/autosabotagem que muito me satisfez", recorda Orozco, que hoje trabalha na revista "VIP", integrou a redação do "Notícias Populares" e já colaborou com a Folha, "Showbizz", "Trip", entre outros veículos importantes. O jornalista é também autor do livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Editora Conrad, 2002), que analisa as letras e a personalidade de Kurt. A obra, referência no assunto, está fora de catálogo, mas deve ganhar uma reedição ainda este ano.

"O que gostei naquele dia e sigo gostando ainda é que foi um show fora do previsto. Rock como rock, não como empreendimento. Nada de camisas de seleção brasileira nem frases em português ensaiado nem gritos de 'hello, São Paulo! Are you ready to rock?'. Um show para correr riscos, como talvez desde então não seja mais possível. As multidões que se dirigiam aos portões do Morumbi estavam nitidamente insatisfeitas, até revoltadas, de não ter visto o Nirvana tocar seus sucessos iguaizinhos aos discos, que é o que parece que o público está condicionado a esperar", relata Orozco. A troca de instrumentos, lembra o jornalista, teve covers "tocadas com um desleixo amador mas, ao mesmo tempo, com um ímpeto de diversão que transformou aquela parte final no maior show de boteco já feito, uma vez que era em um estádio".

"Se a banda tivesse feito um show competentíssimo e altamente profissional, talvez fosse apenas mais um na longa lista de gente de renome que veio ao país antes e desde então. Pelos padrões de hoje, de suposta exigência de um público que apenas espera ver algo igual ou muito parecido ao que já viu no DVD e também de alto preço cobrado pelos ingressos, se esse show do Nirvana acontecesse agora, banda ou organizadores seriam esfolados ali mesmo com uma turba indignada exigindo seu dinheiro de volta. Alguns podem achar que esse público estaria certo. Outros podem se prender à ideia de que rock não é, ou pelo menos não era, pintura por números", conclui Marcelo.

Durante o Hollywood Rock, o Datafolha realizou uma pesquisa para apurar a reação do público em relação ao festival. De acordo com o instituto, 71% dos entrevistados consideraram o show do Nirvana de bom a ótimo. Nirvana foi escolhido como o melhor da noite por 37% da plateia que assistiu ao espetáculo. A maioria ficou com o L7 (39%).

Sobre a apresentação em São Paulo, Krist Novoselic disse à Folha que "foi um show de desconstrução de imagem do grupo". Entrevistado por uma repórter do jornal no dia 17 de janeiro de 1993, enquanto, um pouco desanimado, aguardava a saída para o Rio, falou: "achei o ritmo da apresentação muito lento". O baixista mencionou que a participação de Flea foi premeditada, mas que se tratava de um elemento surpresa para o público. Contou que a banda não combinou trocar os instrumentos. "Fizemos ali mesmo e escolhemos aquelas músicas, na hora", falou. Foram várias as vezes que o trio parou de tocar as músicas depois dos acordes iniciais. "São coisas que acontecem. Não sempre, mas acontecem. Acho isso ruim porque pode parecer pouco profissional. Mas ali, não tínhamos nada combinado. Começávamos a tocar uma música e mandávamos brasa", explica Krist.

A performance do Nirvana no Morumbi tornou-se o verdadeiro Santo Graal do grunge: ela é a mais procurada no mundo inteiro pelos fãs da banda, já que não circula na íntegra, nem em áudio muito menos em vídeo. Apenas alguns trechos foram disponibilizados ao longo dos anos durante a elaboração de reportagens de TV, em imagens feitas pela Rede Globo, TV Cultura e MTV Brasil.

Na Folha, o jornalista Lúcio Ribeiro informou que a íntegra do show foi procurada nos arquivos da Rede Globo e da MTV Brasil, mas sem sucesso. Apesar de a emissora carioca ter exibido o show do Rio em rede nacional, é sabido que a produção executou a filmagem do show inteiro de São Paulo. No entanto, como o material nunca foi encontrado, é provável que as fitas tenham ido para a reciclagem, eliminando uma possibilidade de se obter acesso à integra do show. Na internet ouve-se boatos de que alguns colecionadores possuem cópias com boa quantidade do show, mas acaba não sendo possível constatar a existência desses vídeos.

Ao término da apresentação que entraria para a história, Krist e Grohl voltaram para o hotel e foram dormir. Kurt e Courtney, não. Já passava das 3h da madrugada quando, acompanhados de Flea, João Gordo, Alê Briganti (então namorada de João e ex-integrante da banda Pin-Ups) e a baterista do Hole foram todos para uma noitada na Rua Augusta, região central de São Paulo. O lugar escolhido foi o Der Temple, antiga casa noturna especializada em grunge e rock dos anos 60. Lá ferveram muito, até amanhecer. Beberam, dançaram, sem serem incomodados por ninguém. Flea voltou antes, mais cedo. Courtney ficou dançando com João e Kurt conversando com Alê. Cobain foi convidado até a botar som na casa, e escolheu bandas como Beat Happening e Action Swingers para embalar a trilha sonora da madrugada.

O casal Cobain chegou ao Maksoud depois das 8h da manhã, completamente lesado e feliz por ter se divertido. João Gordo, em entrevista para a revista "Caros Amigos", em 2004, contou que eles queriam heroína, mas tudo que conseguiram foi cocaína. "Fiz uma balada com os caras, acho que eles nunca cheiraram tanto na vida deles", disse João.

Depois o Nirvana partiu para o show no Rio de Janeiro, que aconteceria no dia 23. Kurt andava deprimido, principalmente devido à falta de heroína. O carioca Luiz Oscar Niemeyer, o homem por trás de vários grandes shows de rock no Brasil (e pelo Hollywood Rock, inclusive), contou à "Veja" que, no Rio, viu Kurt andar pelo parapeito de uma janela do vigésimo andar, invadir o apartamento vizinho e jogar as roupas de Courtney Love pela janela após uma briga. A "Veja" escreveu, numa edição de janeiro de 1993, que após um desentendimento com sua mulher, Cobain quis andar sem rumo pelas ruas do Rio, mas foi contido pelos seguranças e voltou para o quarto acompanhado de várias garotas, informação que cheira a boato. A discussão com Courtney fez Kurt ameaçar se jogar lá de cima. Temendo o pior, o jeito foi procurar um andar baixo, em outro hotel. A solução encontrada foi o primeiro andar de uma pocilga qualquer, enquanto que o resto da banda dormia no alto e luxuoso Hotel Intercontinental.

Quando conversou com a Folha, Novoselic prometeu que o show no Rio não teria o mesmo destino que teve o de São Paulo. "Devemos seguir a lista das músicas previstas", afirmou. E foi o que aconteceu. O show na Praça da Apoteose acabou sendo muito mais técnico que o de São Paulo. Mas isso não livrou o show de boas doses de zoação, quando, por exemplo, o trio começou a falar ironicamente sobre a marca de cigarros que patrocinava o festival ao longo do show - Kurt chegou até a mudar a letra de "Polly" como forma de cutucar a empresa. Algumas jams foram feitas, uma em cima de "Sweet Emotion", do Aerosmith, e Flea também solou em "Teen Spirit" com seu trompete. A maior loucura aconteceu durante a jam de "Scentless Apprentice" - Cobain cuspiu nas câmeras de transmissão e brincou com sua genitália. Quando fez o intervalo para o bis, Kurt voltou com um vestido e Grohl de sutiã. O concerto acabou com "Territorial Pissings". Kurt deixou o palco engatinhando. Algumas imagens do show na Apoteose estão no vídeo oficial da banda "Live! Tonight! Sold Out!!".

Kurt Cobain e o Nirvana decidiram também aproveitar o Rio. Enquanto esteve na cidade maravilhosa, no intervalo de um show para outro, Kurt saltou de asa-delta, bateu um papo com a galera de um fanzine nacional e se trancou junto com a banda num estúdio, onde gravaram algumas faixas e ensaiaram para o próximo álbum. Kurt ainda saiu do Brasil com a discografia inteira dos Mutantes debaixo do braço. Ele havia conhecido a banda através de um amigo, que o presenteou com gravações dos dois primeiros álbuns do grupo brasileiro. Cobain gostou muito do que ouviu e encomendou todos os discos que pôde. Tentou conhecer Arnaldo Baptista pessoalmente, mas acabou não conseguindo e deixou então um bilhete para o "lóqui", que dizia: "Arnaldo, tudo de bom para você. Tenha cuidado com o sistema, ele te engole e o cospe como um caroço de cereja marasquino".

O voo de volta para casa aconteceu no dia seguinte ao show. Em casa, Kurt arranjou uma entrevista com a "Advocate", um periódico gay de circulação nacional. Com essa sacada, Kurt fez com que os fãs do Nirvana comprassem a revista direcionada ao público homossexual e expôs a banda a leitores que tendem a não gostar de bandas de rock como a dele. Kurt brincou e disse ser "gay em espírito", enquanto falava sobre os direitos dos homossexuais, bandeira levantada pela banda. "Eu não sou gay, mas gostaria de ser só para irritar os homofóbicos", escreveu Kurt certa vez em seus diários.

A partir de então a banda se concentrou na gravação de seu próximo disco, "In Utero", que o Brasil já tinha conhecido um pouco naquele janeiro de 1993. País que também havia conhecido o outro lado de Kurt Cobain: o que mostrava um ser humano comum, que tinha problemas, mas que era amável com todos. O músico que mostrou não ser um mito, mas sim um cara ponta firme.

Abaixo, leia um trecho de "Heavier Than Heaven: Mais Pesado que o Céu: Uma Biografia de Kurt Cobain", a mais completa e importante biografia de Kurt Cobain, escrita por Charles R. Cross. O autor conta na passagem a seguir um pouco da viagem de Kurt e da banda pelo país.

por RENATO NOVIELLO

Fonte: Folha online

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Duas semanas antes do Natal, Incesticide, a coletânea de refugos e lados Bs do Nirvana, era lançado. O disco entrou nas paradas da Billboard no 51º lugar, um feito notável, considerando que não se tratava de material novo. No prazo de dois meses o disco venderia meio milhão de cópias sem grandes campanhas promocionais nem excursões.

Os únicos shows que o Nirvana fez naquele mês de janeiro foram dois megashows no Brasil, pagos por enormes cachês. O show de 16 de janeiro em São Paulo atraiu a maior multidão para a qual o Nirvana já tocou - 110 mil -, e tanto a equipe como a banda se lembram dele como a pior apresentação que já haviam feito. O show se realizou com um ensaio de última hora Kurt estava nervoso; para piorar as coisas, ele havia misturado bolinhas com bebida alcoólica, o que o deixou lutando para encontrar um acorde.

A apresentação da banda incluía mais covers do que canções do Nirvana. Eles tocaram "Seasons in the Sun" de Terry Jacks, "Kids in America" de Kim Wilde, "Should,I Stay or Should I Go" do Clash, além de "Rio" do Duran Duran. Para um cover de "We Will Rock You" do Queen, Kurt mudou a letra para "We Will Fuck You". Com trinta minutos de show, Krist atirou seu baixo em Kurt e saiu correndo. "Era a comédia dos erros", lembra o técnico de guitarra Earnie Bailey. "Todo mundo começou a jogar frutas neles, no clássico gesto de vaudeville. Estávamos nos perguntando se conseguiríamos sair de lá sem que a van fosse destruída." Por fim, Krist foi localizado e arrastado de volta para o palco pela equipe - se a banda não tocasse 45 minutos, eles não cumpririam o contrato, o que significaria nada de cachê. Como se verificou, nem o enorme cachê cobriu os custos do equipamento que a banda destruiu. Krist mais tarde descreveu o show como uma "pane mental", enquanto uma revista brasileira era menos gentil: "Eles não eram o verdadeiro Nirvana; ao contrário, era apenas um Cobain deprimido fazendo barulho com sua guitarra".

Kurt estava deprimido e se tornara suicida naquela semana. A banda tinha uma semana até seu próximo show no Rio e o plano original era trabalhar no disco que seria lançado. Mas quando se registraram no altíssimo prédio do hotel no Rio, Kurt, depois de uma discussão com Courtney ameaçou se jogar lá de cima. "Eu pensei que ele fosse pular de uma janela", lembra Jeff Mason. Por fim, Mason e Alex MacLeod o levaram para procurar outro hotel. "Ficamos passando de hotel para hotel, mas não conseguíamos ficar porque entrávamos em um quarto e havia uma sacada e ele ficava pronto para saltar", explica Mason. Finalmente MacLeod encontrou um quarto de primeiro andar, uma tarefa não muito fácil no Rio. Enquanto o resto da banda dormia em um prédio alto e luxuoso, Kurt ficou em um pulgueiro de um único andar.

Grande parte do abatimento de Kurt derivava da abstinência da droga. Na excursão, sob os olhos atentos de sua banda e equipe, ele não conseguia fugir e se drogar, pelo menos sem sentir vergonha. Mesmo quando ele conseguia escapulir da redobrada vigilância, um de seus maiores temores na vida era o de ser preso comprando drogas e de isso acabar nos jornais. Uma coisa era os críticos de rock especularem que ele estava drogado - ele sempre poderia negar isso ou fazer o que ele normalmente fazia, que era admitir nas entrevistas que havia usado drogas no passado. Mas se ele fosse detido, nenhuma negação que pudesse inventar diminuiria o fato da prisão. Para reduzir seu desejo ardente por heroína, ele usava qualquer intoxicante que conseguisse encontrar - bolinhas ou birita -, mas esta era uma fórmula muito menos confiável.

A noite passada no hotel térreo pareceu ajudar. No dia seguinte, Kurt apareceu no estúdio aliviado, com vontade de trabalhar. Ele tocou a primeiríssima versão de "Heart-Shaped Box", uma canção que resultava de uma parceria com Courtney: Apesar do humor anterior de Kurt na viagem, assim que ele começou a gravar, saiu de sua melancolia. "Houve alguns momentos que foram musicalmente positivos", observa Mason. Durante os intervalos entre as canções do Nirvana, Courtney e a nova baterista do Hole, Patti Schemel, trabalhavam em algumas canções de Courtney.

A viagem da banda ao Brasil se encerrou com outro concerto gigante, no dia 23 de janeiro, na Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro. Este show foi mais profissional que o de São Paulo e eles fizeram a estreia de "Heart-Shaped Box" e "Scentless Apprentice", que, neste formato, se estendia por dezessete minutos. Quando voaram de volta para casa no dia seguinte, Kurt e os integrantes da banda estavam mais uma vez otimistas quanto às próximas sessões de gravação do novo disco.

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