domingo, 18 de novembro de 2012

A Foice e a guitarra

Mariana Reis, Do "Gazeta Russa"

O Rock and Roll surgiu nos Estados Unidos no início da década de 1950 e, em pouco tempo, se espalhou pelo mundo: no Brasil chegou em 1955 e, na Rússia, mais precisamente na antiga União Soviética, um pouco mais tarde, em 1957. Nesta época, a URSS era comandada por Nikita Krushchiov, que em seu “Discurso Secreto” no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, denunciou os crimes cometidos por Stalin (uso desmedido da violência, execuções, fraudes etc.), dando início ao processo de “desestalinização” da política soviética.

Apesar da censura aos artistas se tornar um pouco mais branda neste período, os músicos ainda deveriam seguir os padrões artísticos estabelecidos pelo governo. Havia uma seleção de estilos musicais oficiais que eram permitidos de serem executados publicamente, por exemplo, a música clássica (na verdade, nem todos os compositores eram tidos como oficiais) e o jazz (que caiu na ilegalidade no período de Stálin e, após sua morte, foi gradativamente reabilitado pelo Kremlin). Quanto às letras das canções, críticas ao período de Stalin eram permitidas, mas as que eram feitas ao modo socialista de governo e sociedade não eram toleradas; a censura também valia para temas que fossem considerados nocivos à população como o alcoolismo, o sexo, a violência etc.

Havia uma única gravadora na União Soviética – a Melodiia (Мелодия) – que tratava-se de uma companhia pública administrada pelo Ministério da Cultura. Os estúdios de gravação também eram estatais, assim como as Casas de Cultura onde ocorriam as grandes apresentações. A seleção e distribuição de instrumentos musicais também eram por conta do governo. Desta forma, se o estilo musical e as letras das músicas fossem aprovados pelo Ministério da Cultura, o cantor ou conjunto receberia todo o apoio que precisasse para seguir a sua carreira. Caso fosse rejeitado, teria que se adequar às exigências do governo. Ou se virar sozinho.

Os músicos que quisessem se aventurar em estilos musicais não-oficiais, como era o caso do rock (sempre acusado de contaminar a juventude com um estilo de vida “degenerado” - lembram-se do trio sexo, drogas e rock'n'roll?), desde que não criticassem o governo e ameaçassem a ordem pública, eram tolerados e poderiam se apresentar em locais controlados pelas autoridades, como os bailes estudantis e alguns cafés, sem direito a gravar discos e a ter bons instrumentos musicais.

Timothy W. Ryback, no seu clássico estudo sobre o rock soviético Rock Around the Bloc (1990, Oxford University Press), aponta que o mês de julho de 1957 foi a data que o rock and roll fez sua primeira aparição pública em território soviético, numa apresentação musical que antecedia o 6º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Moscou. O Kremlin, tentando demonstrar que já havia deixado para trás a xenofobia do período do pós-guerra, convidou diversos conjuntos de jazz da Tchecoslováquia, Romênia, Polônia, Grã-Bretanha, França, Alemanha e Islândia para se apresentarem na abertura do Festival.

Alguns desses conjuntos apareceram com instrumentos inusitados na bagagem (guitarras) e algumas canções que não estavam no repertório original. Essas canções “barulhentas” (possivelmente músicas de Bill Halley & His Comets) acabaram passando batido pela censura e foram executadas no Festival por grupos da Grã-Bretanha. As reações do público foram diversas: enquanto muitos jovens se maravilharam com aquele ritmo diferente, críticos musicais se horrorizaram com tamanho primitivismo e alguns oficiais do governo ficaram desconfiados com o fascínio que aquela música exercia no público. Curiosos para saber mais sobre aquele estilo musical tão empolgante, alguns estudantes começaram a trocar informações sobre bandas e músicas.

Como já mencionamos, o rock não foi incluído na lista dos estilos “oficiais” porque o Ministério da Cultura o considerava uma ameaça à juventude ao incentivar práticas como o alcoolismo, o fascismo, a violência, a perversão sexual e, principalmente, por conter mensagens contra o socialismo. Desta forma, era praticamente impossível encontrar discos, fitas e qualquer tipo de publicação sobre este gênero musical. Os fãs acabaram usando a criatividade para conseguir os discos de suas bandas favoritas.

Já que os LP's de música ocidental eram proibidos de serem comercializados e reproduzidos, os poucos que conseguiam chegar em território soviético (oriundos de outros países que faziam parte do Bloco Soviético, como a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia) eram pirateados, inscrevendo-se as ranhuras dos discos em chapas de raio-X (os famosos roentgenizdatque também eram utilizados por fãs de jazz na época em que esse estilo musical era ilegal). Mas, ao descobrir essa prática, em 1958, o governo passou a confiscar os LP's e destruiu dezenas de centros de produção e distribuição dos “discos de raio-X”. Mas a investida do governo contra a difusão do rock acabou não dando certo.  
Alguns anos depois, em 1964, as páginas dos jornais soviéticos não poderiam deixar de noticiar a nova mania que atingiu os EUA, os quatro rapazes de Liverpool conhecidos como The Beatles. É claro que os críticos musicais “desceram a lenha” nos Beatles, acusando-os de serem garotos propaganda do estilo de vida capitalista. Mas a simples menção ao Fab Four foi o suficiente para atiçar a curiosidade das pessoas, e não demorou muito para cópias de discos do grupo aparecerem. As roupas, os cortes de cabelo, a música e tudo o mais que se referisse à banda se tornou uma febre entre os jovens soviéticos.

Foi nessa época que surgiram as primeiras bandas de rock soviéticas. Elas tocavam, na sua grande maioria, versões cover dos Beatles em instrumentos musicais artesanais, já que não tinham acesso aos instrumentos de ponta que eram fornecidos pelo governo. Em pouco tempo, começaram a mesclar outros grupos ocidentais em seu repertório e a fazer versões rock de canções populares soviéticas. Apesar de muitas delas se tornarem relativamente famosas entre os jovens, sem apoio e recursos técnicos adequados não havia mais para onde irem a não ser se conformarem com o underground.

O Ministério da Cultura percebeu que a tal “febre do rock” era realmente séria. Como uma contrapartida às bandas ocidentais, o governo passou a aceitar alguns elementos musicais do rock, com algumas restrições: foi estabelecido um termo próprio para a expressão banda de rock,Vokal'no-instrumental'nyi ansambl' (вокально-инструментальный ансамбль, conjunto vocal-instrumental ou simplesmente VIA); mais de 60% do repertório deveria ser composto por canções de origem soviética (ou seja, de compositores “oficiais”) e as letras das músicas não deveriam fazer menção aos assuntos considerados “tabus” que já explicitamos anteriormente. Em contrapartida, o governo daria todo o apoio técnico e financeiro necessário para os grupos. Muitos músicos acharam a proposta interessante e não perderam a oportunidade de se tornarem “oficiais”, cedendo em alguns pontos ao governo para, finalmente, seguirem uma carreira profissional.

Há muitos grupos VIA interessantes e eles foram os pioneiros ao levar um pouco do rock aos locais públicos, ao rádio e à televisão. Apesar da constante vigilância ideológica, alguns eram extremamente criativos e conseguiam transformar canções oficiais insonsas em ótimas peças psicodélicas. Poderia citar diversos nomes, como o cantor russo Aleksandr Gradskii e sua banda Skomorokhi (Скоморохи), que mesclava diversos estilos como o folk e o rock progressivo; o grupoAriel' (Ариэль), de Tcheliabinsk (cidade localizada próxima aos Montes Urais), também com uma pegada mais folk e elementos de prog aqui e acolá; e o Vesiolye rebiata (Весёлые ребята), que na década de 1970 contou com a participação da famosa cantora pop Alla Pugatchiova. Apesar de estes conjuntos serem muito populares e importantes, gostaria de destacar em especial outros dois nomes: Poiushchie Gitary (Поющие Гитары) e Pesniary (Песняры).
         
Poiushchie Gitary foi formado em 1966 na cidade de Leningrado (atual São Petersburgo), e foi uma das primeiras bandas soviéticas de rock a se tornar famosa. Foi uma das principais referencias dos grupos VIA e muitos acabaram imitando o seu estilo. Fortemente influenciada por The Beatles, The Shadows e The Ventures, o grupo costumava fazer versões em russo de músicas dessas bandas, adaptando as letras às exigências do Ministério da Cultura – algumas letras não precisaram ser censuradas, como foi o caso de Byl odin paren' (Был один парень), uma versão da canção C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, de Gianni Morandi (também imortalizada no Brasil pela banda Os Incríveis). O Poiushchie Gitary está em atividade até os dias de hoje.

Já o Pesniary foi formado em 1969 em Minsk, capital da atual Bielorrússia. Era um conjunto extremamente criativo e seus integrantes músicos de primeira linha. Utilizavam instrumentos tradicionais eslavos de sopro, cordas e percussão em conjunto com as guitarras e o órgão eletrônico. Essa combinação de tradição e modernidade deu à banda uma sonoridade única que muitas vezes tocava o rock psicodélico. Além de fazerem versões de músicas ocidentais, também transformaram canções folclóricas bielorrussas em verdadeiras viagens psicodélicas. Apesar de algumas indas e vindas, o grupo ainda está em atividade.

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