Quando o rock se popularizou no Brasil, na década de 1980, já não era somente mais um “enlatado” importado ou “empurrado” goela abaixo pelos Estados Unidos da América, tal como o vislumbrava a elite letrada dos anos 60 e 70, mas, graças ao poder das gravadoras multinacionais, fazia já parte do dia-a-dia de parcelas cada vez maiores da população, até se tornar um dos produtos mais vendáveis do mercado fonográfico nacional nos primeiros anos da década seguinte. Nesse processo de massificação, chama a atenção o fato de a produção do “rock nacional” ter dois aspectos que só poderiam ser capazes de emergir no horizonte de expectativas dos observadores, críticos e historiadores do rock do Brasil nesse novo milênio. Isso por conta não somente do desenvolvimento da sociologia, da antropologia e dos estudos culturais, no campo acadêmico, na década de 1990, mas também da consolidação dos movimentos organizados como discurso proselitista e força política, no mesmo período. Assim, os que acreditavam na rebeldia das letras das músicas daquelas bandas tão populares na década de oitenta mal prestavam atenção para duas marcas que tornavam aquelas manifestações elitizadas. Primeiro, era produzida por um grupo de jovens brancos e bem nascidos do Sudeste e Sul do país, os quais tiveram acesso privilegiado às informações musicais que vinham dos Estados Unidos e da Inglaterra, mas também aos instrumentos importados, às guitarras Fender, aos amplificadores e caixas Marshall, a tudo que costumávamos ver nas fotos publicadas pelas revistas daquela época ainda sem MTV e Internet.
Mas essa elitização econômica e étnica foi rompida com o movimento punk
em São Paulo, que se notabilizou em 1982 com o festival Começo do Fim do Mundo, realizado no SescPopeia, já decantado em prosa por Antônio Bivar em seu livrinho O que é Punk.
Pela primeira vez, o público de São Paulo e do resto do país, através
dos documentários e matérias exibidas na televisão, tomaram conhecimento
desse grupo de garotos brancos, mulatos e negros que, saídos dos
subúrbios e de uma vida dura de officeboy, divulgavam para o mundo seu
rock cru de letras de protesto, tocado com guitarras nacionais
vagabundas e desafinadas, com três acordes mal aprendidos. Esse espírito
punk do faça você mesmo, que se manifestava pela música e pela imprensa
subterrânea dos fanzines, tendo seu paradigma mítico na Inglaterra e
nos SexPistols, tal como a tradição das narrativas eurocêntricas nos
ensinou a entender tais fenômenos, espalhou-se pelo Brasil e, com
diferença de datas, manifestou-se ao seu modo em cada região.
Em Sergipe, pela atitude, os primeiros punks surgiram por volta de 84 e
85, com as bandas da época que tocavam e publicavam seus fanzines sem
infraestrutura ou apoio, mas musicalmente o movimento corporificou-se
com o surgimento do Karne Krua e com a capacidade
empreendedora de Silvio Campos,
vocalista/idealizador/mentor/compositor/produtor da banda. A primeira
formação do Karne Kruacontava com Sílvio nos vocais,
Vicente Coda na guitarra, Tony Almada na bateria e Marcelo Gaspar no
baixo, mas a banda se consolidou mesmo com a entrada de Márlio no baixo.
Marcelo passou para a guitarra e Vicente montou o projeto Fome Africana.
Isso nos anos 80, no underground do circuito alternativo mais ou menos
“inventado” pelas bandas de Aracaju, que também produziam, como ainda
hoje, os cartazes dos shows e os zines. Depois cada um tomou seu rumo,
mas os agentes principais de toda aquela empreitada se mantiveram
persistentes, mesmo tendo que se agarrar a seus empregos ou trabalhos
para se manterem na persistência. Durante as décadas de 90 do século XX
e de 10 do século XXI, vários outros músicos tocaram no Karne Krua (lembro, de cabeça, de Soneca, Fábio, Valdeleno...).
Apesar de ter se transformado musicalmente, passando a fazer um som
mais elaborado, o que se manifesta também nas timbragens das distorções
de guitarra, no aprimoramento das batidas, nos contratempos da bateria
e, finalmente, no domínio de Silvio da arte do canto, com sua voz
possante e toda peculiar, o KarneKrua é o maior exemplo
dessa persistência, num estado que, como muitos outros do Brasil,
quando não importa os produtos musicais de sucesso, (co)opta por
selecionar, durante as sucessivas gestões municipais e estaduais dos
órgãos de cultura, um grupo reduzido de artistas locais para absorver a
pequena parte da verba que sobra para os eventos culturais, as quais são
periodicamente superfaturadas e manipuladas no processo de contratação
dos grandes nomes nacionais da música, sobretudo na celebração de
eventos tradicionais, como os festejos juninos, o carnaval e o ano novo.
O Karne Krua passou por todos os modismos e por
sucessivas gerações de roqueiros, mantendo-se firme e fiel aos seus
princípios até agora. Isso se deve a uma espécie de sacerdócio ou
militância que Silvio, com sua loja Freedom, único
reduto genuinamente roqueiro da cidade, na rua Santa Luzia, faz questão
de deixar vivo e atuante. Silvio foi o primeiro a realizar o grande
sonho de toda banda da década de 80: um disco de vinil. Fui num dos
shows de lançamento, nos idos de 94, no extinto Mahalo, quando o bar era
situado em frente à Faculdade Tiradentes, no centro da cidade. Antes de
Karne Krua (1994), a banda já tinha produzido em fita cassete As Merdas do Sistema (1986) eLabor Operário (1989). Em 1995, lançou Instantes Irreversíveis, e em 2002 o cd Em Carne Viva, que trazia na capa, de maneira muito justa, uma bela e sinistra foto do rosto de Silvio.
É significativo que, entre 2011 e 2012, os últimos remanescentes da
primeira geração dos roqueiros seguidores da filosofia do “faça você
mesmo” de Aracaju – eu, Vicente Coda e Silvio Campos –
tenham resolvido lançar trabalhos novos, produzindo suas músicas e
discos com o auxílio indispensável da produtora instituída no país por
Itamar Assunção, “Às Próprias Custas S/A”. Não há testemunho mais
eloquente da persistência, da energia que se renova mesmo depois de
tantos tapas tomados pela vida, e de tanta desilusão. Sobre o disco de
Vicente, A viagem de Christine ao universo da beatgeneration, não escrevi, mas fiz um texto sobre o seu show de lançamento no Teatro Atheneu, do qual participei. O do CroveHorrorshow, Depois do Rock, ao que tudo indica, sairá somente depois do carnaval, no próximo ano, e o do Karne Krua, Inanição, embora tenha ficado pronto já há um tempinho, só há alguns dias tive acesso, quando o comprei diretamente das mãos de Silvio.
Ouvi o cd faixa por faixa e decidi escrever um texto sobre ele. Silvio me disse que Inanição encerra um ciclo do Karne Krua
com temática concentrada no problema da seca do Nordeste. Gostei muito
do disco, desde sua concepção gráfica, cujo encarte,assinado por Alê
(aledg.com), em fundo verde, traz todas as letras, com os títulos das
músicas grafados em fonte muito coerente com os desenhos e fotos
editados, até o desenho da capa, que, embora de longe possa ser “lido”
como uma flor, tem a sua estrutura montada com caveiras e no seu botão
traz a imagem macabra de cruzes, o que logo nos remonta à temática e à
imagética principal do disco: o sol causticante, a seca, a perda, a
carência, a morte. Silvio canta a saga do que considera “O Guerreiro”,
título da faixa 7, que, ao invés do tradicional estilo hardcore, nos
traz um rock sabor anos 80 com batida mais lenta, no gênero de “Garoto
do Subúrbio”, dos Inocentes. “O Guerreiro” é aquele que trabalha sob o
sol com sua enxada. O seu refrão, que diz: “lá vai o guerreiro”, com sua
“família morta de fome”, transmite certa dignidade à imagem mítica do
sertanejo forte, tal como o pintaram Portinari e Euclides da Cunha. Mas
esse sertanejo é também um “cabra marcado para morrer”, como em “Navalha
no Pescoço”, hardcore genuíno e sem frescuras assinado por Marcos
Aurélio (letra) e Alexandre Ghandi, que também produziu o disco, compôs
várias músicas – incluindo a faixa-título, Inanição –,
no qualSilvio declara: “a minha mente é tão forte, move morro e tem
força de leão”. A ambiência sertaneja persiste em todas as faixas,
embora o disco traga também músicas de outras fases do Karne Krua, como “Lixeiras da Cidade”, que nos anos 80 se chamava “Lá na Soledade”.
A novidade nesse disco fica por conta da versatilidade de Silvio, que,
quando não rememora seu lado “bluseiro”, mais explorado em seu
outro projeto musical, Máquina Blues, se transforma
numa espécie de Zé Ramalho/Alceu Valença endiabrado, com voz rouca e
grave, gritando seus refrões ao som da bateria rápida de Thiago Babalu e
dos riffs e solos precisos da guitarra de Alexandre Ghandi. O baixo,
que também foi tocado por Alexandre, faz o fundo pulsivo e agressivo,
preparando com a bateria a cama sonora ideal para os rasgos vocais de
Silvio. E Silvio sempre foi fã da música nordestina produzida nos anos
70/80. Lembro que ouvíamos juntos os discos de Zé Ramalho nos anos 80.
Em “O Vaqueiro e a Boiada”, ele chega a entoar aboios e cantos não
distorcidos, o que transforma o Karne Krua numa das mais
inusitadas bandas do país e do mundo. O disco traz ainda efeitos
sonoros, como cânticos religiosos, um cantador fazendo um repente na
faixa “Do sol latente ao cinza das ruas”, assinada por Max Alberto
(letra), Silvio, Alexandre e Thiago.
Assim, a sua excelente sonoridade e arte gráfica andam de mãos dadas, compondo um dos trabalhos mais importantes do Karne Krua em toda a sua carreira. Num momento em que se faz death metal em Angola, e em que muitos dos antigos chavões do punk rock dos anos 80 perderam sua razão de ser, Inanição – tanto o disco quanto a música – é uma amostra de que o rock de protesto ainda faz sentido, principalmente quando parte de um dos mais originais poetas contemporâneos, Silvio, que canta suas letras – e as de seus parceiros – sobre um rock duro, pesado e ágil, tão ágil quanto seus rasgos vocais, que, por sua vez, combinam com as distorções da guitarra e com a alta pulsação do baixo e da bateria. Se Inanição termina um ciclo, por outro lado inicia uma fase em que o Karne Krua se consolida não como uma banda punk reconhecida nacional e até internacionalmente, pois assim já o era no final dos anos 80, mas como uma banda original, que trouxe – acho – pela primeira vez a temática dos oprimidos pela indústria da seca do Nordeste para o “rock punk”. Escrevo “rock punk” porque, como o próprio Silvio nos ensina numa de suas letras, o punk não é rock. O rock é que é punk.
Fotos P&B: snapic, lançamento do CD "inanição" ao vivo no programa de rock.
Fotos coloridas: (CC BY SA)
Fora do Eixo/Nando - em Batalha, Alagoas.
Karne Krua forever!!!
por Luiz Eduardo Oliveira
Fonte: Portal UFS
Nenhum comentário:
Postar um comentário