O tijolo de 768 páginas é exatamente o que o título anuncia: um compêndio de verbetes em ordem alfabética com tudo sobre Morrissey: The Smiths, vida, músicos, ídolos, hábitos, preferências, amigos, cidades etc. Por exemplo: The Boy With The Thorn in His Side, primeiro single dos Smiths lançado no Brasil (e hit instantâneo nas rádios em 1985), relata “suas experiências pessoais em relação à indústria da música (...) e suas ansiedades sobre as conclusões equivocadas sobre ele publicadas na imprensa”, diz o verbete, entre outras informações.
Eterna interrogação, sua orientação sexual é discutida no verbete “homossexualidade”, sem chegar à uma conclusão. De forma esperta, Goddard conclui citando uma entrevista em que Morrissey responde se ele era ou não gay assim: “Eu estou acima disso, para ser franco”. Nada mais Morrissey.
Tema de tese de doutorado
Ídolo de milhões e um dos roqueiros mais influentes das últimas décadas, o enigma Morrissey não assustou a professora baiana Renata Spínola. Fã “desde muito nova”, ela é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, aonde desenvolve sua tese As canções que salvaram sua vida: reflexões sobre as noções de fã e fandom em Morrissey.
Como se pode imaginar, a Mozipedia tem sido uma mão na roda para Renata, que adquiriu seu exemplar na Inglaterra, quando lá fez sua pesquisa de campo, em 2011. “Fica claro para quem lê a Mozipedia que Simon Goddard é um grande admirador de Morrissey”, diz. “Há um cuidado, um zelo muito grande em apresentar as informações sobre ele, especialmente quando elas são de cunho pessoal”, afirma.
E nem poderia ser diferente, já que o ídolo costuma rogar pragas a quem se atreve a biografá-lo. “Talvez pelo receio de receber o mesmo tratamento, Goddard tenha sido tão cuidadoso nos verbetes sobre desafetos e temas polêmicos, como sua sexualidade ou o processo movido pelo baterista dos Smiths, Mike Joyce”, percebe. Ainda assim, trata-se de “um livro indispensável para os fãs. E não só para eles”, diz Renata.
Mozipedia - A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths / Simon Goddard / LeYa / 768 p. / R$ 89,90 / www.leya.com.br
Entrevista com Renata Spínola
Fã desde "muito nova" do bardo de Manchester, Renata transformou seu interesse em Morrissey em tese de doutorado (em desenvolvimento) no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA, sob o título provisório "'As canções que salvaram sua vida': reflexões sobre as noções de fã e fandom em Morrissey". Em 2011, ela e o marido, o músico Arthur Caria (baixista do roqueiro baiano Pàulinho Oliveira) seguiram a turnê britânica do homem, cidade após cidade. Ela nasceu em Salvador e foi levada aos estudos de língua inglesa e literatura por influência das canções dos Smiths e Morrissey. É formada em Letras com Inglês, tem mestrado em Letras e Linguística pela UFBA. Atualmente é professora das Faculdades Maurício de Nassau. Nesta entrevista, a especialista fala sobre seu objeto de estudo, a Mozipedia e sua experiência cruzando o Reino Unido seguindo o assim chamado "Mais Adorável Ser Humano do Planeta".
Por que exatamente Morrissey é tão adorado? Quem é Morrissey? O que ele representa dentro da história do rock?
Renata Spínola: Como fã, e agora como pesquisadora, eu acredito que Morrissey seja tão adorado pelo fato de que ele próprio é um modelo de fã. Toda a sua produção apresenta uma forte interferência de seus ídolos e se constrói a partir da sua dedicação e admiração a eles. As frequentes remissões aos ídolos é um dos traços mais característicos de sua produção artística. Partindo da exposição de suas preferências, Morrissey destaca a condição de fã, dotando de importância este papel, e constrói um corpo de artista que é constituído pelo seu repertório de leituras, pelas preferências artísticas e pela sua relação com a cultura. Além disso, enquanto ídolo, Morrissey também define um padrão de comportamento para os seus fãs. Há em Morrissey uma preocupação intensa com a preservação da memória. Através da exposição de gostos e preferências, Morrissey oferece uma leitura particular acerca dos ídolos e suas produções, renova o interesse do público sobre eles e, acima de tudo, evita que caiam no esquecimento, conferindo-lhes permanência. O trabalho de preservação da memória, porém, não é desinteressado. Preservando os ídolos, ele preserva a si próprio, já que constrói um modelo de fã que é repetido e reencenado pelos seus seguidores. É ele quem define, com base em suas próprias ações, o comportamento que o seu fã deve adotar. Por outro lado, ao mesmo tempo em que é tão apaixonadamente amado pelo seu público, Morrissey é capaz de provocar recusas violentas. A sua atuação artística parece colocá-lo sempre entre extremos: ou é loucamente amado ou é ferozmente odiado. Acredito que o estilo provocador adotado desde o início de sua carreira, a transgressão às normas e aos modelos preestabelecidos (o que pode ser mais transgressor do que um ícone do rock que se declara assexuado e celibatário quando a tríade sexo, drogas e rock and roll era o comportamento esperado?), as bandeiras que Morrissey levanta – como o ativismo em favor da causa animal, por exemplo, ou simplesmente a sua inclinação às polêmicas, são alguns dos elementos que o posicionam e o associam de maneira muito forte ao contexto do rock, que se constitui exatamente como um espaço de convergência, de militância, de transgressão da norma. É isso que o define como artista e que o coloca definitivamente na história do Rock.
O que você achou da Mozipedia? Li uma critica que dizia que o livro era coisa de um fã para outros fãs. Você recomenda o Mozipedia para quem quer conhecer o artista ou só para quem já é fã?
RS: Fica claro para quem lê a Mozipedia que o Simon Goddard é um grande admirador de Morrissey. Há um cuidado, um zelo muito grande em apresentar as informações sobre o homem, especialmente quando estas informações são de cunho pessoal. Morrissey não costuma ter em alta conta aqueles que se aventuraram a escrever biografias sobre ele ou sobre os Smiths. Aliás, um dos livros mais conhecidos e vendidos sobre o The Smiths, o “Morrissey & Marr: the severed alliance”, foi repudiado por Morrissey e ao seu autor ele desejou que acabasse os seus dias num trágico acidente. Talvez pelo receio de receber o mesmo tratamento, o que seria uma morte quase real para um fã, Goddard tenha sido tão cuidadoso nos verbetes que definem os desafetos de Morrissey, naqueles que falam de temas polêmicos, como as questões acerca de sua sexualidade, ou naqueles que apresentam assuntos delicados como o processo movido pelo baterista dos Smiths, o Mike Joyce, na busca pela divisão igualitária dos royalties da banda. A Mozipedia é sem dúvida um livro indispensável para os fãs, mas não se restringe a este público específico. É um texto de grande valia para quem se interessa por música, cinema, literatura. Os verbetes apresentados por Goddard remetem, obviamente, a Morrissey e aos Smiths, mas trazem ricas informações sobre o cinema kitchen-sink, sobre a produção e a biografia de nomes como Oscar Wilde, James Dean, Elizabeth Smart, sobre bandas como o New York Dolls, Ramones e tantas outros temas que se acham ligados à produção de Morrissey. É, portanto, um texto fundamental para os iniciados na carreira de Morrissey e que desejam saber mais sobre o ídolo, é um texto esclarecedor para aqueles que ainda se acham presos a rótulos e ideias preconcebidas, como a classificação da música de Morrissey e dos Smiths na categoria pejorativa do “rock triste”, é um texto instrutivo para quem ainda nada sabe sobre o assunto e deseja saber. Neste estilo de vida apressado que parece ter sido adotado por todas as pessoas de nossa época e que acaba por restringir o tempo dedicado à leitura pelo prazer, um dos trunfos da Mozipedia é o fato de dispensar uma leitura linear, ordenada, podendo ser consultado de acordo com a necessidade e a curiosidade de cada leitor.
Qual a maior surpresa que você teve lendo a Mozipédia? Um fato que você nunca imaginou e descobriu lendo este livro? E a maior decepção?
RS: O livro em si já foi uma grata surpresa. Encontrar disposto, num só lugar, diversas informações sobre Morrissey, desde detalhes sobre as canções e os discos lançados a uma extensa lista de suas influências artísticas, é como um tesouro para quem desenvolve uma pesquisa sobre o assunto. Não há dúvidas de que o livro tem ajudado e muito a minha pesquisa e tem me dado a chance de conhecer histórias divertidíssimas que despertam a curiosidade de qualquer fã, como, por exemplo, o episódio em que Jonnhy Marr toca os acordes que futuramente se transformariam na canção Hand in glove e, por receio de esquecer, mantém-se tocando no banco de trás de um fusca dirigido por sua então namorada Angie por quase dez km, até chegar à casa de Morrissey, onde havia o gravador mais próximo em que poderia registrar a ideia. Ainda não encontrei um assunto relativo a Morrissey que não tenha sido contemplado pela enciclopédia e nem mesmo experimentei qualquer decepção com as informações sobre Morrissey dispostas no texto. Procuro entender tudo que Morrissey faz de uma maneira contextualizada. Memo quando ele assume uma postura da qual eu discordo, acredito que tenha uma razão de ser. Uma coisa tenho aprendido desde que comecei a minha pesquisa sobre ele e, claro, com o auxílio de livros como a Mozipedia: nada em Morrissey é definido ao acaso. Vejo a sua produção musical e a constituição de sua persona como algo muito bem articulado, planejado, como um projeto cuidadosamente montado por ele e que até mesmo as contradições e paradoxos são partes integrantes desta performance.
Conte-nos um pouco de sua experiência pessoal quando você seguiu a turnê do homem em 2011.
RS: Foi um sonho realizado. Sou fã de Morrissey desde muito nova e a única vez em que ele esteve no Brasil até então tinha sido no ano 2000. Naquela época eu não tinha grana para sair de Salvador e viajar para o Rio, São Paulo ou qualquer outra cidade que o recebeu a turnê para vê-lo ao vivo. Em 2011, já cursando o doutorado e com uma vida financeira mais equilibrada, vi a chance de realizar dois desejos com o anúncio de uma nova turnê: o de vê-lo ao vivo e o de começar a minha pesquisa conhecendo um pouco mais sobre o lugar em que Morrissey iniciou a sua carreira: a cidade de Manchester. É interessante destacar que, como os shows aconteceram em cidades pequenas – as grandes cidades foram preteridas nesta turnê – era visível a movimentação que Morrissey provocava nesses lugares. Era gente de vários pontos do Reino Unido e da Europa, seguindo a turnê de carro, de trem, de avião, hotéis lotados, clones do Morrissey desfilando pelas cidades, filas que se formavam diante dos locais dos shows desde o dia anterior, fãs mais exaltados entoavam o já tradicional canto em que gritam o nome de Morrissey na mesma melodia da marcha patriótica americana “Stars and Stripes Forever” pelas ruas, em manifestações de adesão que eu só conseguia associar ao fanatismo dos torcedores em dia de jogo de futebol no Brasil. Foi uma experiência riquíssima. Além de testemunhar e vivenciar essas experiências de fã, tive a chance de vê-lo em várias performances ao vivo e, fugindo um pouco do roteiro dos shows, visitar a cidade em que ele nasceu e iniciou a sua carreira, conhecendo diversos lugares que se tornaram marcos para os fãs de Morrissey. Esta experiência saciou o meu desejo de fã e também rendeu parcerias interessantes. Com Luciana Kaross, estudante brasileira que desenvolve pesquisa de doutorado na cidade de Manchester, a parceria resultou na produção de um artigo publicado na revista acadêmica Vozes dos Vales (http://www.ufvjm.edu.br/site/revistamultidisciplinar/files/2011/09/Words-which-could-only-be-your-own_the-crossroad-between-lyrics-translation-culture-Brazilian-fans-and-non-professional-translators_luciana-1.pdf), Com Arthur Caria, companheiro de viagem e de vida que foi arrastado para o mundo de Morrissey desde que passamos a dividir o mesmo teto, produzi pequenos documentários dando conta da experiência de fã que sai de tão longe para acompanhar a turnê do ídolo (http://england-is-moz.blogspot.com.br/). Além da grata surpresa de conhecer e trocar ideias com toda a banda que acompanha Morrissey em turnê. Só faltou conhecer o próprio homem! Mas isto pode ser uma boa desculpa para uma próxima viagem!
Você pode falar um pouco do seu trabalho? Do que se trata? O que você defende em relação à Morrissey no Instituto de Letras da Ufba? O pessoal lá não estranhou seu tema não?
RS: A pesquisa que venho realizando como doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA, sob o título provisório "'As canções que salvaram sua vida': reflexões sobre as noções de fã em fandom em Morrissey", é exatamente sobre a faceta fã de Morrissey e como esta condição constrói um campo favorável à constituição de um público tão devotado a ele. Basicamente eu discuto a maneira como o seu discurso – e a sua produção como um todo – está impregnado pelas produções dos seus ídolos e pelo seu desejo de preservar esses ídolos no imaginário popular. Eu defendo a ideia de que Morrissey seria um “ultimate fan”, um exemplar da atuação do fã enquanto sujeito ativo e participativo. A produção de Morrissey está claramente envolvida com os seus objetos de admiração e pode ser definida como uma escrita em parceria com os ídolos. As constantes apropriações e referências explícitas permitem ao público enxergar a sua produção de maneira contextualizada, oferecendo um panorama fundamental através do qual é possível compreendê-la e criar um laço semelhante com o artista. A atuação artística de Morrissey, portanto, envolve um aparato que reúne, a um só tempo, a homenagem aos ídolos, a constituição de um corpo de artista que é formado, antes de tudo, por um leitor, por um admirador em diálogo com aqueles a quem admira, e a construção de um modelo de fã bem diverso daquele que era concebido como sujeito alienado, manipulado e incapaz de pensar por si. Esse fã que se desenha hoje, e do qual Morrissey pode ser considerado como um modelo, é um sujeito ativo, que participa de atividades sociais, que é produtor de um material que poderá até interferir na história do artista que admira. É claro que um projeto sobre a produção Morrissey chamou a atenção e provocou certo estranhamento quando apresentado pela primeira vez. Mas quando organizada e disposta em termos acadêmicos, fica impossível não despertar a curiosidade de conhecer mais sobre um material tão rico! É interessante que se antes Morrissey era um completo estranho, depois de iniciar a pesquisa em Letras, parece que ele foi adotado pelo meus colegas, professores e amigos que começaram a prestar mais atenção nele e passaram a compartilhar comigo todo tipo de notícia e informação sobre ele. E com o recente interesse do mercado editorial brasileiro em Morrissey – além do lançamento da Mozipedia pela editora Leya, a Globo acabou de arrematar, em disputadíssimo leilão, os direitos de publicação da sua autobiografia no Brasil – a minha pesquisa acabou se tornando um tema bastante atual e de interesse geral. Acho interessantíssimo que um cantor que está sem gravadora e sem lançar um disco novo desde 2009 tenha a capacidade de se reinventar e de renovar o interesse do público pelo simples fato de se manter como o velho Morrissey de sempre.
por Franchico
rock Loco
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