Em 1973, os editores do
New Musical Express puseram Keith
Richards, principal guitarrista e alma musical dos Rolling Stones, no
topo de sua lista anual de “estrelas do rock com maior probabilidade de
morrer” naquele ano. Mesmo para um roqueiro, Richards consumia
quantidades hercúleas de heroína, cocaína, mescalina, LSD, peiote,
Mandrax, Tuinal, maconha,
bourbon e demais refrescos, e todos
os observadores achavam que ele estava com os dias contados. Àquela
altura, a lista de baixas do rock era longa e agourenta: Jimi Hendrix,
Jim Morrison e Janis Joplin eram apenas os nomes mais célebres a
encabeçar o obituário. Em 1969, Richards e seus colegas dos Stones
haviam perdido Brian Jones, que se afogara numa piscina poucas semanas
depois de ser demitido da banda. Em vez de preservar sua mortalidade,
Richards preferia exibi-la de forma acintosa. Registrou para a
posteridade seu quase constante torpor dando livre acesso a Robert
Frank, Annie Leibovitz e outros fotógrafos, que o captaram nos camarins
ou em quartos de hotel, seminu e completamente doidão. Ao ver aquelas
imagens de Richards, largado, chapado e leso, imaginava-se que era uma
questão de dias para que a imprensa anunciasse que ele havia morrido
sufocado em seu próprio vômito.
Na realidade, Richards foi em frente, tropeçando pelos concertos numa
névoa narcótica, dormindo durante os ensaios, sempre à beira do olvido
e, mesmo assim, produzindo junto com Mick Jagger parte da música pop
mais memorável da época. Entre 1968 e 1972, os Stones gravaram
Beggars Banquet,
Let it Bleed,
Sticky Fingers e
Exile on Main St., a essência do repertório deles. Continuaram a tocar essas músicas por tanto tempo quanto Sinatra cantou
Love and Marriage.
A peculiaridade dos Stones se devia menos aos vocais de Jagger do que à
capacidade de Richards de absorver o estilo blues das guitarras de
Chuck Berry e Jimmy Reed, criando algo novo. Havia músicos muito mais
técnicos, solistas muito melhores, mas a noção de ritmo e de
riff
dele, o seu bom gosto, seus acordes sustentados e espaços abertos
marcaram o som dos Stones. E, ao longo de tudo isso, a Indesejada não
conseguiu entrar no camarim. Depois de deixar Keith Richards no topo da
lista de seu observatório da morte por dez anos, o
New Musical Express finalmente jogou a toalha e admitiu que ele era imortal.
Faz trinta anos que os Stones não compõem uma canção importante, mas
eles sobreviveram quatro décadas além dos seus grandes contemporâneos,
os Beatles. E mesmo que a originalidade deles tenha se esvaído, suas
máquinas empresarial e de produção de espetáculos foram afinadas à
perfeição. Desde 1989, os Stones arrecadaram mais de 2 bilhões de
dólares em receita bruta, ajudados por acordos de patrocínio com
Microsoft, Anheuser-Busch e E*Trade. As firmas Promotour, Promopub,
Promotone e Musidor – todas com sede na Holanda por motivos fiscais –
cuidam dos vários ramos das atividades empresariais dos Stones. Tudo é
supervisionado por equipes de contadores, advogados de imigração,
especialistas em segurança e, até muito recentemente, um aristocrático
consultor de negócios chamado príncipe Rupert zu
Loewenstein-Wertheim-Freudenberg. Mesmo nos anos sem excursões ou
discos, os Stones dão um jeito de ganhar algum. Licenciaram
Start Me Up para a Microsoft, quando a companhia lançou o Windows 95, e
She’s a Rainbow para a Apple, quando uma linha de iMacs precisou de promoção. De acordo com a
Fortune,
os Stones estão por trás da comercialização de cerca de cinquenta
produtos, inclusive roupas de baixo vendidas pela cadeia de lingerie
Agent Provocateur. A logomarca deles – uma linguona lasciva para fora de
uma boca que sorri – é tão reconhecível na paisagem dos negócios quanto
os arcos dourados do McDonald’s.
“Essa coisa de negócios depende muito das leis fiscais”, Keith Richards contou à
Fortune.
“É por isso que ensaiamos no Canadá e não nos Estados Unidos. Muitas
das nossas manobras espertas têm a ver fundamentalmente com a natureza
das leis fiscais: aonde ir, onde não pôr nosso dinheiro. Botar debaixo
do colchão ou não. Saímos da Inglaterra porque pagaríamos 98 centavos
por cada dólar ganho. Fomos embora e eles é que perderam. Não vão
receber um tostão de impostos. Não quero ferrar ninguém, muito menos os
governos com quem trabalho. Deixamos 30% numa conta parada até resolver
tudo.” Keith pode imaginar que é um símbolo de 68, mas emprega a
política fiscal do mais radical dos conservadores.
No último tour que fizeram, entre 2005 e 2007, os Stones faturaram mais
de meio bilhão de dólares – foi a mais lucrativa excursão da história.
Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, tocaram para mais de 1 milhão
de pessoas. Poucos espetáculos da vida moderna são tão sublimemente
ridículos quanto os integrantes geriátricos dos Stones tocando os
acordes iniciais de
Street Fighting Man. A plateia costuma
ficar lotada de fãs de meia-idade que, ao sair do escritório, vestiram
um jeans largão, deixaram as crianças com a babá e desembolsaram 200 ou
300 dólares para rebolar junto com Mick Jagger. Este, por sua vez, tendo
treinado para as excursões como se fosse uma final de campeonato,
saracoteia sem parar durante as duas horas de show; nos melhores
momentos, lembra um epígono de James Brown; nos piores, a tia bêbada
decidida a estragar o casamento da irmã mais bonita com uma performance
patética na pista de dança. Desde 1975, “a excursão do pau inflável
gigante”, como gosta de dizer Richards, os Stones tentam se superar com
lances espetaculares. Às vezes, vão longe demais. “Teve aquela coisa de
pôr elefantes no palco em Memphis”, diz Richards, “mas eles destruíram
as rampas e cagaram o palco todo nos ensaios. A ideia não foi pra
frente.” Noves fora os micos, o que acabamos por admirar é a improvável
persistência dos Stones, uma entidade de quase meio século, que, aos
trancos e barrancos, segue cômica e persistentemente adiante. Os rapazes
estão chegando perto dos 70 anos. Enrugados, tingidos e esqueléticos,
eles trovejam um repertório que a esta altura é tão augusto e imutável
quanto as Variações Diabelli, de Beethoven. “De vez em quando, você olha
para os próprios pés e pensa ‘é a mesma merda de sempre todas as
noites’”, disse Richards. No entanto, ele continua a tocar e as
multidões continuam pagando, relutantes em abandonar o último elo com
seus anos dourados.
O mais novo artefato da longevidade da banda é a animada autobiografia de Keith Richards, cujo título desafiador é simplesmente
Vida,
lançada no Brasil pela editora Globo. Parte livro, parte extensão da
marca, trata-se de um monólogo divertido e divagante, uma viagem leve
pela vida de um homem que conheceu todos os prazeres, se permitiu tudo e
nunca pagou o preço. “Você talvez não consiga sempre o que quer”, canta
Jagger em
You Can’t Always Get What You Want. Mas essa regra não se aplica a Keith.
Uma advertência óbvia: as memórias de um homem cuja memória está
enevoada por incontáveis anos de obliteração narcótica são memórias de
um gênero bem particular. Em 1978, quando lhe perguntaram por que os
Stones haviam chamado seu último disco de
Some Girls, Richards
respondeu: “Porque a gente não se lembrava do nome de nenhuma delas.”
Não obstante, a editora americana Little, Brown pagou 7 milhões de
dólares a Richards para produzir o livro. Ele, por sua vez, escolheu um
ghost-writer de talento – James Fox, o autor de
White Mischief,
uma história bem contada do assassinato de Josslyn Hay, o 22º conde de
Erroll, um dos muitos expatriados dissolutos que viveram em Happy
Valley, nos arredores de Nairóbi, no Quênia. Para Fox, escrever sobre as
drogas, as aventuras sexuais e o tédio requintado de Happy Valley foi
uma boa preparação para
Vida.
Richards e Fox sabem por que o leitor desembolsou o dinheiro do livro:
pelo mesmo motivo que, ainda hoje, trinta anos depois de largar a
heroína, Keith cambaleia pelo palco com um sorriso maníaco e diz para a
multidão em delírio: “É um prazer estar aqui! Aliás, é um prazer
simplesmente estar!” É o excitamento de ouvir alguém que jamais passou
um dia entre as quatro paredes de uma fábrica ou de um escritório,
consumiu o que havia para ser consumido e sobreviveu para contar a
história. Esse é o homem que inventou o refrão de (
I Can’t Get No)
Satisfaction enquanto dormia e, no entanto, teve mais satisfações do que jamais imaginou Giacomo Casanova. Assim,
Vida tem
urgência em realçar o Mito de Keef e nos oferecer o que desejamos. O
livro começa com uma longa cena da excursão dos Stones pelo Sul dos
Estados Unidos em 1975, os carros lotados de narcóticos de primeira
classe – “cocaína pura da Merck, o pó farmacêutico fino”. Mas na
cidadezinha de Fordyce, Arkansas, população de 4 237 habitantes,
Richards arranja confusão com a polícia. Segue-se uma narrativa grotesca
de mau comportamento dos Stones diante da Justiça sulista. Richards,
que acabou de se vangloriar para o leitor da posse e ingestão de vastas
quantidades de droga, se faz de desentendido quando lhe dizem que
enfrentará uma possível condenação à prisão. Da qual, como de costume,
ele se esquiva.
Richards se gaba do seu metabolismo. Não somente narra sua “viagem
movida a ácido com John Lennon”, como faz questão de nos dizer que
Lennon “não conseguia acompanhar”. E relembra: “Ele tentava tomar tudo o
que eu tomava, mas eu treinava duro. Um pouco disso, um pouco daquilo,
uns tranquilizantes, umas bolinhas, coca e pó, e depois eu ia trabalhar.
Eu era alucinado. E John acabava invariavelmente no meu banheiro,
abraçado ao vaso.”
Às vezes, o livro parece uma versão sem consequências de
Junky, de William Burroughs. Num trecho longo, Richards descreve sua dieta diária:
Eu tomava um barbitúrico para acordar, de efeito recreativo em
comparação com a heroína, mas nem por isso menos perigoso. Isso era o
café da manhã. Um Tuinal, fazia um furinho com uma agulha, para fazer
efeito mais rápido. Depois tomava uma xícara de chá, e então matutava
sobre levantar ou não da cama. E mais tarde, quem sabe um Mandrax ou
Quaalude. Senão eu ficava com energia demais para queimar. Desse jeito,
você acorda devagar, já que tem tempo. E quando o efeito passa, depois
de umas duas horas, você se sente relaxado, come alguma coisa de café da
manhã e está pronto para o trabalho.
Richards se orgulha de muitas coisas, inclusive de sua capacidade de
ficar acordado durante dias. Seu recorde de todos os tempos foi uma
sequência de nove dias sem dormir à base de cocaína, ao final da qual
ele simplesmente desabou e bateu com a cabeça num alto-falante: “Saiu
uma cortina de sangue.”
Esse aspecto do livro, a narrativa do viciado, é o capítulo mais recente
de uma tradição que data do romantismo e de Thomas de Quincey, com suas
visões causadas pelo ópio, povoadas de crocodilos e outros “monstros
indizíveis”, de
Crabbe, Coleridge, Byron, Baudelaire – uma lista infindável. Mais especificamente,
Vida pertence à subcategoria das memórias de músicos viciados:
Straight Life, de Art Pepper,
High Times Hard Times, de Anita O’Day,
Raise Up Off Me, de Hampton Hawes, e a colaboração fantasticamente obscena de Miles Davis com Quincy Troupe.
Quando terminei o livro de Richards, li várias dessas memórias do jazz,
bem como biografias de outros gênios viciados, como Billie Holiday e
Charlie Parker. Depois de revisitar o desespero, as drogas vagabundas,
as condenações à prisão, as vidas encurtadas, achei que havia algo quase
repugnante no ego e no espírito jovial do sortudo Keith. Ele tem muitos
conselhos disparatados para o candidato a
junkie e
voyeur:
nada de drogas injetáveis, tome apenas as drogas mais puras e de melhor
qualidade e, por favor, nunca exagere. (“Olha, eu não devia dizer
nunca; eu às vezes ficava totalmente cataplético.”)
Richards admira a música de seus predecessores e superiores, mas não
sente a dor deles. Está protegido dos dramas normais dos drogados por
camadas e camadas de advogados, dinheiro, e privilégios. Charlie Parker
compôs
Relaxin’ at Camarillo depois de sair de um manicômio na cidade homônima da Califórnia. Richards fez
Exile on Main St.
quando era um exilado do fisco morando numa propriedade rural em
Villefranche-sur-Mer. Nos intervalos entre picos e ensaios, ele cruzava o
Mediterrâneo numa lancha de corrida atrás de
socialites europeus:
“Dávamos uma parada em Monte Carlo para almoçar. Batíamos papo com a
turma do Onassis ou do Niarchos, que atracavam iates imensos por lá.”
Outro aspecto inevitável das memórias ou biografias do rock é o catálogo
de conquistas sexuais e, sobre esse assunto, Richards é quase tímido.
Ele nos conta que seus colegas Jagger e Bill Wyman tabulavam friamente
suas conquistas. Keith é do tipo passivo. São as mulheres que o
procuram. “Nunca dei uma cantada numa mulher em toda a minha vida”, diz.
E, no entanto, descreve com prazer como roubou a modelo e artista
teutônica Anita Pallenberg de Brian Jones enquanto desciam para o
Marrocos num Bentley:
Anita e eu nos olhamos e a tensão no banco de trás ficou tão alta
que, quando vejo, ela está me pagando um boquete. Aí a tensão se rompeu.
Ufa. E de repente, estávamos juntos. [...] Durante mais ou menos uma
semana é fuque-fuque-fuque lá na Kasbah, nós dois com um tesão de
coelho, se perguntando como tudo isso ia acabar.
No fim das contas, Richards e Pallenberg resolveram morar juntos. Formam um casal e tanto, jovens
junkies apaixonados,
constantemente driblando a prisão. Mas não conseguem driblar a
tragédia. Em 1976, enquanto Keith estava em excursão, o terceiro filho
dele com Pallenberg, um bebê chamado Tara, morreu no berço. Eis a
maneira ponderada como Richards exprime o seu pesar: “Nunca conheci o
filho da puta, ou mal o conheci. Troquei as fraldas dele duas vezes,
acho. [...] Até hoje, Anita e eu não falamos a respeito.” Isso vai muito
além dos limites normais da reserva.
O vício e o mau comportamento de Pallenberg são demais até para
Richards. O problema não é tanto ele estar convencido de que ela teve um
caso com Jagger – seu terceiro Stone! – mas o fato de ela superar os
limites de Keith no departamento “decadência”. “Ela era
incontrolavelmente autodestrutiva”, escreve ele. “Era como Hitler;
queria que todos afundassem com ela.” Por fim, Richards encontra a
felicidade e uma existência muito mais estável com uma modelo americana
chamada Patti Hansen.
Richards é grosseiro com muita gente nesse livro, assim como foi em
numerosas entrevistas dadas ao longo do tempo. Ele acha que isso faz
parte do seu charme de malandro. Diz que os punks não têm talento.
Elogia o U2 uma ou duas vezes, mas desconsidera todo mundo, de Prince
(“um anão supervalorizado”) a Elton John (“uma puta velha”) e Bruce
Springsteen (“Se houvesse coisa melhor por aí, ele ainda estaria tocando
nos bares de Nova Jersey”). Os que não acompanham essas coisas de perto
podem se surpreender ao ver como Richards pode ser duro com Mick
Jagger, ao qual se refere às vezes como “Brenda” ou “Sua Majestade”. Ele
não suporta as pretensões de Jagger, seus “cálculos”, seu excesso de
atenção aos negócios, sua ânsia pela aprovação do
establishment e
sua tendência ocasional de tratar Richards e os outros membros da banda
como empregados. Ele o retrata como cheio de frescuras, triste, alguém
que só pensa em si mesmo: “É quase como se Mick Jagger aspirasse a ser
Mick Jagger, correndo atrás de seu próprio fantasma. Com a ajuda de
consultores de estilo. [...] Eu adorava andar com Mick, mas não entro em
seu camarim acho que faz uns vinte anos. Às vezes, sinto saudades do
meu amigo.” Richards, que vive como um fidalgo em propriedades rurais
muradas na Inglaterra e em Connecticut, concede que Jagger é seu “irmão”
e terá sempre seu apoio, mas claramente se considera mais original como
homem e como músico.
Há leitores que se deliciarão com a autoimagem de Richards como o
espertalhão que sempre se dá bem, mas, para mim, as seções mais
fascinantes do livro são as histórias de sua evolução, o modo como sua
amizade de adolescência com Jagger e o amor que os dois tinham por seus
heróis do blues levaram rapidamente à formação da Maior Banda de Rock do
Mundo. É uma história já narrada muitas vezes, mas Richards e Fox a
contam muito bem.
Keith Richards e Mick Jagger eram crianças na Londres do pós-guerra e
colegas de escola na Wentworth Primary School, em Dartford. Keith era
filho único de pais de classe operária. Seu pai, Bert, era chefe de
seção numa fábrica da General Electric. Criado ouvindo jazz, blues e os
sons emergentes da música pop americana, ele cantava no coro da escola.
Depois que sua voz mudou, perdeu interesse pela escola e começou a
frequentar a sorveteria Dimashio, onde ficava ouvindo o
jukebox.
“Era o único pedacinho de América em Dartford”, escreve ele. “A vida
era em branco e preto; o tecnicolor estava para chegar, mas em 1959
ainda não.” À noite, ele ouvia Buddy Holly, Eddie Cochran, Little
Richard e seu ídolo, Elvis Presley, na Rádio Luxemburgo. Esses foram os
anos do “Despertar”, a recepção entusiástica da música americana na
Grã-Bretanha. Músico iniciante, Richards interessou-se pelos
acompanhantes: o guitarrista de Elvis, Scotty Moore; o arranjador e
trompetista de Fats Domino, Dave Bartholomew. No Sidcup Art College,
escola que preparava gente atrás de um emprego na agência de publicidade
J. Walter Thompson, Richards passava o tempo vadiando e escutando
discos de blues. Então, em 1961, na estação ferroviária de Dartford, ele
topou com Jagger, que, como ele descobriu, era fanático por blues e
colecionador de discos. Jagger tinha todos os discos da Chess Records:
Muddy Waters, Chuck Berry, Howlin’ Wolf, Willie Dixon. Os dois garotos
ouviam os discos sem parar.
Jagger e Richards criaram uma banda chamada, no começo, Little Boy Blue
and the Blue Boys. Na primavera de 1962, eles já tinham incorporado
outro guitarrista maluco por blues, Brian Jones. No mês de janeiro
seguinte, ganharam a companhia de um baterista com gosto por jazz,
Charlie Watts, e um baixista, Bill Wyman, cuja principal qualificação
era ser dono de um amplificador Vox. Esses eram os Rolling Stones.
Enquanto a banda tomava forma, Richards aprendia a copiar a simplicidade
de uma nota só de B. B. King e os solos de corda dupla de T-Bone Walker
– técnica que economizou dinheiro para a banda, porque podia “eliminar a
necessidade de uma seção de sopros”. Richards e Jagger tinham uma
ambição simples: só queriam ser “a melhor banda de blues de Londres e
mostrar àquela gente o que era tocar de verdade”. Com devoção de monge,
moravam em apartamentos baratos e ensaiavam a noite inteira. “Quem saía
do ninho para transar, ou tentar transar, era um traidor”, relembra
Richards.
A banda tocou em clubes nos arredores de Londres com nomes como
Flamingo, Ealing, Crawdaddy, Marquee e Red Lion; e, nos fluidos dias de
1963 – enquanto os Beatles, uma banda relativamente veterana, estava em
ascendência – os Stones lançaram seu primeiro
single, um
cover de
Come On,
de
Chuck Berry. O disco disparou nas paradas e em uma semana os Stones
eram estrelas. Foi o que bastou. “De repente, estavam botando a gente
nuns puta ternos xadrez
pied-de-poule e fomos levados pela maré”, diz Richards. Mas os garotos logo se livraram do
look pseudo-Beatles.
Se deram bem do seu jeito. No início, se apresentaram na abertura de
shows de Little Richard e Bo Diddley (com quem aprenderam incontáveis
lições de ritmo e teatralidade), e depois como atração principal,
causavam tumultos onde quer que fossem.
“Na Inglaterra, acho que durante dezoito meses, nunca conseguimos
terminar um show”, lembra Richards. O repertório curto deles tinha
covers de
Not Fade Away,
I’m a King Bee e
Around and Around, mas a gritaria era tão intensa que em algumas noites a banda tocava
O Marinheiro Popeye
só para ver se alguém notava. Os garotos jogavam tampinhas de garrafa e
moedas; as garotas queriam despedaçar os Stones, tão profundo era o
frenesi erótico. Ainda hoje, Richards parece assustado:
Jamais me esqueci do poder das adolescentes de 13, 14, 15 anos,
quando estão em bando. Elas quase me mataram. Nunca temi mais por minha
vida do que diante daquelas adolescentes – as que me asfixiaram me
deixaram em frangalhos. Se você era apanhado por uma multidão frenética
de adolescentes, é difícil expressar o medo que elas provocam. Seria
preferível estar numa trincheira lutando contra o inimigo do que encarar
aquela onda assassina e irrefreável de luxúria e desejo, ou seja lá o
que for aquilo – uma força desconhecida até por elas.
Depois de um show no norte da Inglaterra, a banda ficou no teatro,
esperando que a multidão fosse embora. Um velho zelador que havia
ajudado na limpeza disse a Richards: “Show muito bom. Nenhum assento
seco na casa.”
Quando os Stones foram pela primeira vez aos Estados Unidos, no verão de
1964, tocaram em shows depois de Bobby Goldsboro e dos Chiffons, e
sofreram os insultos de Dean Martin, que os chamou de cabeludos
primitivos. Chegaram até a dividir o programa com um contorcionista
chamado “Incrível Homem-Borracha”, o qual, pensando bem, talvez tenha
exercido uma influência decisiva nas momices de Jagger no palco. Foi
somente quando, naquele mesmo ano, Jagger e Richards passaram a compor
que os Stones começaram de fato a competir com os Beatles. Em 1965
lançaram
Satisfaction. Num padrão que seria típico da colaboração entre os dois nas décadas seguintes, Richards criou o
riff e Jagger entrou com a letra.
Na imaginação adolescente, a vantagem de ser membro de uma banda é que
você acaba o dia na cama com a parceira, ou parceiras, que quiser. Não é
bem assim, diz Richards: “Você pode estar nadando, ou comendo sua
mulher, mas lá no fundo você está pensando sobre uma sequência de
acordes ou algo relacionado a uma canção. Independente do que estiver
acontecendo.”
Richards demonstra mais prazer quando descreve a sensação de tocar seu
instrumento, em particular a guitarra elétrica que, diz ele, é “como se
agarrar numa enguia-elétrica”. O momento de revelação em
Vida é
puramente musical e ocorre “no final de 1968 ou início de 1969”, depois
que Richards descobre um dos segredos do blues. As seis cordas da
guitarra são normalmente afinadas em mi-lá-ré-sol-si-mi. Depois de
colaborar com o grande instrumentista e arranjador Ry Cooder, Richards
pegou a afinação “em sol aberto”, em que a guitarra é afinada num acorde
em sol: ré-sol-ré-sol-si-ré.
Bluesmen do Mississipi como Robert Johnson, Son House e Charley Patton usavam essa afinação; Don Everly também, em
Bye Bye Love. Richards retirou a corda mais baixa de uma Fender Telecaster afinada em sol-ré-sol-si-ré e produziu os
riffs de
Tumbling Dice,
Brown Sugar,
Honky Tonk Women,
All Down the Line,
Can’t You Hear Me Knocking,
entre outros. Qualquer pessoa que tenha tocado numa banda de garagem
nos anos 60 e 70 lembra da experiência de tentar tocar essas músicas e
descobrir que elas não tinham o ronco, o som ressoante que Keith
Richards produz em, digamos,
Get Yer Ya-Ya’s Out!, o melhor disco ao vivo dos Stones. Agora, evidentemente, é possível ir ao You Tube, escrever, digamos,
Brown Sugar, aula,
e aparece um garoto de 14 anos com uma câmera de vídeo e uma guitarra,
ensinando a usar a afinação em sol aberto e “tocar como Keith”. O
próprio Keith explica melhor: “Se você está tocando o acorde da maneira
certa, consegue ouvir um outro acorde soando por trás, que você não está
tocando, mas que existe. Isso desafia a lógica. O acorde está lá
dizendo: ‘Vem.’”
Keith Richards está com 66 anos. É avô. Fez uma cirurgia de emergência
no crânio, embora por um motivo muito Keith Richards: caiu de uma árvore
em Fiji. Ele diz que leva uma “vida de cavalheiro”. Gosta bastante das
aventuras marítimas de Patrick O’Brian e dos romances de George
MacDonald Fraser em que o protagonista tem 90 anos e se chama Flashman.
Cabe informar que ele também caiu da escada de sua biblioteca. Antes,
tinha um cachorro
wolfhound chamado Sífilis, hoje tem um
labrador amarelo chamado Abóbora. Ele e sua mulher põem Abóbora num
jatinho particular e vão espairecer na propriedade que eles têm nas
ilhas Turks e Caicos, no Caribe.
Gimme Shelter para valer. Ele vive como um pirata do
private equity.
A idade deu a Richards um pouco de compreensão a respeito de suas
próprias contradições. Ele vibra com sua vida, mas também está
consciente da natureza oca de sua imagem de fora da lei: “Não há como
desatar os nós do quanto representei o papel que foi escrito para mim. O
anel de caveira, o dente quebrado e o lápis de olho”, escreve. “De
certo modo, a persona, a imagem de como eu era antes acaba sendo um
grilhão. As pessoas ainda acham que eu sou um
junkie. Faz
trinta anos que larguei a droga! A imagem é como uma sombra comprida.
Mesmo quando o sol se põe, ainda dá para ver. Acho que em parte é porque
há tanta pressão para ser daquele jeito que você acaba se
transformando, pelo menos até onde dá. É impossível não acabar sendo uma
paródia do que você achava que era.”
Um dos momentos mais tocantes do livro é quando os jovens Rolling Stones
chegam aos estúdios de gravação da Chess, em Chicago, a Meca do blues.
Um operário está pintando o teto. O nome do operário é McKinley
Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters. Os Stones estavam a
caminho de uma vida de milionários e o mínimo que poderiam fazer era
render homenagem aos seus heróis. Batizaram a banda com o título de uma
música de Morganfield e cantaram louvores a ele e a todos os outros
antepassados mais talentosos do que eles.
Richards havia escapado da Indesejada, mas não da dívida mais importante
que tinha, a qual nunca deixou de reconhecer com lealdade: “Eu?”, disse
Keith certa vez. “Eu só quero ser Muddy Waters. Embora eu jamais vá ser
tão bom ou tão preto.”
"Curtindo adoidado"
A vida e as tentações de Keith Richards
por
David Remnick
piauí
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