De gente que ainda continua a praguejar contra o estado, a pátria e a religião, nenhum grupo poderia ser melhor representante que o Cidade Cemitério. O nome da banda, assim como de seu espetacular disco de estréia, Asa Morte,
são homenagens nada lisonjeiras à cidade em que seus membros residem:
Brasília.
Tema pra blasfêmia é o que não falta, como é de se esperar. Só que esse papinho de “vamos queimar Brasília e acabar com essa corja
de políticos” virou um jargão escroto na mão da galerinha bem nutrida e
reaça da rede mundial de computadores — mal aí, anarquistas. Como dá pra
ver nesta entrevista com o Pedro Poney (ele também toca no Violator,
um ícone do thrash nacional), guitarrista do quarteto brasiliense, o
pessoal aqui faz jus ao polegar opositor e cria críticas nervosas e mais
contundentes do que essa bravataria de taxista virgem. E numa boa: dá
uma puta alegria ver gente se voltar contra o status quo com tanta propriedade e embalada num som foda.
VICE: "Feita na prancheta, imaginada e não vivida, Brasília é uma cidade construída em amor ao poder" (retirado do site da banda).
Em Brasília boa parte da população trabalha em funções relacionadas à
manutenção do poder. A questão é: de onde vocês vêm? Como vivem?
Pedro Poney: Meus pais são cearenses, vieram pra
Brasília no começo dos anos 80. O Manga (vocalista) também é cearense,
mas veio pra cá só três décadas depois. A mãe da Jully (baixista) também
é nordestina, e isso não é uma coincidência — quando existem tantas
forças envolvidas, existe pouco espaço pra coincidência. Os pais do
Daniel (bateria) não, são de Minas, acho. Meus pais são servidores
públicos, misto de regra-geral e meta-sonho da cidade cemitério. Destino
compartilhado por mim também, espero que não pro resto da vida. Dá pra
dizer que eles estão de alguma maneira trabalhando pra manutenção desse
poder, então. Eu também. A minha única defesa é também minha fuga, poder
responder entrevistas como esta durante o expediente na repartição.
A primeira música do Asa Morte é um recado direto ao próprio éthos da cena punk/hardcore (sem contar que é um soco no ânus dos comentaristas reaças de internet). Queria saber como é essa cena no Distrito Federal —
ou até mesmo se existe atualmente — e como vocês se sentem em relação a
ela. Quando vi vocês ao vivo, tive a impressão de que essa crítica e
outras que vão sendo perfiladas no decorrer do disco se ancoram na
própria prática de vocês, que é 100% dentro desse ativismo mais
faça-você-mesmo, correto?
Correto e correto, acho. Bem, "Contra o Mundo", a música que abre o Asa Morte,
se disfarça de mensagem enaltecedora do punk "sou eu sozinho contra o
mundo" [a saber: “Sua ideia de resistência / Nada mais que egolatria /
Sua enorme prepotência / Te faz agir como polícia / Você contra o mundo /
Mas o mundo nem sabe de você”] pra na verdade criticar todo a egolatria
desvairada que existe em acreditar numa bobagem dessas. O que existe é
uma profunda indiferença do mundo com relação à nossa insignificância, e
acho que não há problema nenhum em assumir a nossa pequenez. Pelo
contrário, pode ser bonito pra caramba. Justamente porque a partir desse
ponto de vista com mais humildade existencial, a gente vê que não está
sozinho, que podemos fazer coisas juntos e que tem muita gente criando
coisa legal por aí. E assim é no pedaço que a gente faz parte da cena punk hardcore do DF,
acredito. Um espaço bem pequeno, que congrega várias bandas e pessoas
diferentes (de banda de garage rock a crust e death metal) e que, na
minha opinião, nos últimos tempos tem se preocupado bastante com os
aspectos não-musicais da "cena", o que é bem legal. Bem, mas pra além
disso, muita coisa diferente vem sendo feita por aqui e as coisas estão
bem segregadas nos últimos anos. O que eu acho que está longe de ser um
problema. Me interessa produzir e compartilhar com pessoas com quem eu
possuo algum tipo de afinidade, não sou a favor de um discurso de união
vazio que pretende juntar pessoas com visões de mundo muitas vezes
inconciliáveis porque compartilhamos uma palavra, ainda mais uma palavra
tão genérica como "hardcore" ou "punk". Finalmente, vejo essa ética do
"faça-você-mesmo" como o aspecto mais encantador e politicamente
interessante do punk rock. Enquanto o resto do mundo inteiro parece
funcionar de uma maneira brutalmente verticalizada, em que é preciso
deter o conhecimento de uma série de procedimentos, práticas ou
técnicas, no punk a gente pode ir lá e simplesmente fazer. Isso permite
muita coisa ruim, é claro, mas a gente aprende durante o processo
também. Abraçar a precariedade em vez de pretender exorcizá-la me parece
uma coisa muito bacana de se levar pra vida. E, é claro, todo esse
lance do DIY tem tudo a ver também com não criar fronteiras muito
definidas entre "o que" se faz e o "como" se faz. Ambos são igualmente
importantes e isso é legal pra caramba.
Queria que você fizesse um “roteiro pra se entreter” em
Brasília, pra não acabar enlouquecendo na cidade feita pra carros e
escritórios, como vocês dizem. Acredito que deve ter gente aí que dá
seus pulos pra humanizar o lugar...
Sim, sim. Acho que a banda mesmo é uma tentativa de dar um desses
pulos. A nossa relação com a cidade não é de simples desprezo ou raiva, é
bem mais complexa do que isso. Existe algum amor incompreensível por
esse lugar também e uma vontade que ele fosse melhor. O verso final de Asa Morte
tenta dar conta dessa confusão de sentimentos: "Não sei explicar, mas
nessa cova rasa, me sinto em casa". Talvez a gente possa dizer de
maneira mais simples que tentamos cultivar uma visão crítica da cidade
em que vivemos por meio do punk rock. O que, pra mim, é um exercício bem
legal, de trazer essa cultura bastante colonizada do punk pra uma
realidade mais local, mais próxima, mais própria. E até mesmo por ser
uma cidade que promove tanto o desencontro, parece que quando
conseguimos promover um esbarrão parece que as coisas ganham um peso
simbólico que dá pra sentir no ar. É o caso de um show punk em um buraco
qualquer ou da Bicicletada que acontece uma vez por mês. É quase como
se ecoasse mais alto por causa do silêncio da cidade. Bem, eu sou da
brigada antibalada (risos), então minhas sugestões vão ser bem zelas pra
quem curte um agito (Brasília não é a cidade pra isso mesmo). Recomendo
ir tomar banho de piscina natural, ver os micos e comer milho na Água
Mineral (Parque Nacional de Brasília), andar de bicicleta nos eixos aos
domingos e de skate à noite no Museu Nacional, nadar no Lago Paranoá na
Ermida Dom Bosco, virar hippie em alguma cachoeira aqui perto, dar um
rolê cívico se você nunca veio aqui, além de curtir uma arquitetura e
não escutar Legião Urbana.
Não dá pra deixar passar: a morte do Niemeyer parece
que serviu só pra nego fazer proselitismo ideológico de esquerda e
direita em cima do nome do Matusalém. Então... Brasília seria melhor sem
as obras arquitetônicas dele?
Tudo que posso falar é a partir do ponto de vista de alguém que nasceu,
cresceu e adora andar de bicicleta nesta cidade. Não tenho pretensão
nenhuma de articular um discurso de técnica arquitetônica pra falar do
ancião. Que nem eu vi a maioria das pessoas tentando fazer por aí,
feião.
Minha relação cheia de contradições com esta cidade também está
refletida na maneira como eu vejo as obras do Niemeyer. Apesar de achar
que são visualmente muito agradáveis (aquelas mais "rolê Varsóvia" são
minhas favoritas), acho que o Niemeyer e suas criações são brutalmente
responsáveis por transformar Brasília em uma cidade em que simplesmente
não existe espaço público. Sem encontro, sem compartilhamento, sem vida.
A morte da cidade, de certa maneira. As praças do Niemeyer são
desagradáveis, ninguém quer sentar lá naquele cimento duro. São espaços
gigantes, mas vazios, de amor ao poder, sempre com alguma homenagem a
algum herói que, certeza, foi um sacana. Mas na real, a culpa mesmo é do Lucio Costa (risos). Tem até um
relatório dele dizendo que a cidade tinha que ser pensada com o
automóvel como um membro da família, acredita?
Faz uma lista de bandas punks de Brazoca pra além do punk do
Legião Urbana (risos) e do Capital inicial (RISOS). Sua hora de educar a
juventude esperta do país...
Das bandas novas eu gosto muito do Subterror, The Squintz, Gulag,
Dualid, Dança da Vingança, Soror, Gracias por Nada, Caim, Ameaça Cigana.
Não vou ficar descrevendo uma por uma, consulta o oráculo que tá tudo
aí, mas tem desde neocrust fresquinho até punk rock primário. No começo
dos anos 2000 aconteceu uma retomada faça-você-mesmo por meio de bandas
como Terror Revolucionário, Mayombe e Innocent Kids, que foram a minha
escola pra esse tipo de música barulhenta e raivosa. Daí pra trás, tem
um monte, né? TFP, CSM, Besthoven, Death Slam, Swankers, Dick Heads (a
maioria bem difícil de encontrar material hoje em dia)... As primeiras
de hardcore foram o ARD (que na época tinha um nome em alemão) e o
BSB-H, que teve várias fases, sendo a mais legal uma época crossover
meio Suicidal Tendencies no fim dos anos 1980. Uma bem desconhecida do
começo dos anos 90 e que fazia um punk rock bem legal era o Desakato à
Autoridade, lembrava bastante o Câmbio Negro HC, de Recife. E não, eu
não tenho relativismo com o Plebe Rude (risos), mas eu curto um Escola
de Escândalo e, posteriormente, um Arte no Escuro (risos).
Pra acabar, você dá muito rolê tanto com o Cidade Cemitério
como com o Violator. Então, que cidade consegue ser mais cemitério que
Brasília e qual seria uma cidade paraíso?
São Paulo, em alguns sentidos, é muito mais cemitério que Brasília.
Fico angustiado com tanto concreto, tanta fumaça, tanto cinza. Algumas
cidades do Japão são assim, de certa maneira, uma hiperurbanização que é
sufocante. Palmas, no Tocantins, talvez por ter muita inspiração em
Brasília, tem uma pegada parecida de muita fluidez pros automóveis e
pouco espaço pras pessoas. Pela miséria e sofrimento acumulado, a cidade
na periferia de La Paz, El Alto, também poderia ser considerada uma
"cidade cemitério", ainda que com um sentido radicalmente diferente de
Brasília. Cidade paraíso é difícil de dizer sem uma vivência mais longa, mas
definitivamente existem muitas cidades por aí que extrapolam vida e
comunhão nas ruas, mesmo que isso signifique contradições e conflitos.
Gosto muito de Bogotá e toda a maneira que as ruas são compartilhadas
por lá; Buenos Aires, com as pessoas sentadas nos gramados a tarde
inteira e as praças cheias de gente até a noite; Cidade do México, com
as pessoas dançando e tocando música em plena rua e um monte de gente
andando de um lado pro outro; Amsterdã (e aquele tanto de bicicleta),
Barcelona e Rio de Janeiro seriam bons exemplos também, acho.
NOTA: Cidade Cemitério é uma das atrações do programa de rock de hoje.
Ouça o Asa Morte aqui.
Ouça o split deles com o Skate Pirata aqui.
por Arthur Dantas
Vice
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