sábado, 31 de agosto de 2013

Cidade Cemitério - uma entrevista.

De gente que ainda continua a praguejar contra o estado, a pátria e a religião, nenhum grupo poderia ser melhor representante que o Cidade Cemitério. O nome da banda, assim como de seu espetacular disco de estréia, Asa Morte, são homenagens nada lisonjeiras à cidade em que seus membros residem: Brasília.

Tema pra blasfêmia é o que não falta, como é de se esperar. Só que esse papinho de “vamos queimar Brasília e acabar com essa corja de políticos” virou um jargão escroto na mão da galerinha bem nutrida e reaça da rede mundial de computadores — mal aí, anarquistas. Como dá pra ver nesta entrevista com o Pedro Poney (ele também toca no Violator, um ícone do thrash nacional), guitarrista do quarteto brasiliense, o pessoal aqui faz jus ao polegar opositor e cria críticas nervosas e mais contundentes do que essa bravataria de taxista virgem. E numa boa: dá uma puta alegria ver gente se voltar contra o status quo com tanta propriedade e embalada num som foda.

VICE: "Feita na prancheta, imaginada e não vivida, Brasília é uma cidade construída em amor ao poder" (retirado do site da banda). Em Brasília boa parte da população trabalha em funções relacionadas à manutenção do poder. A questão é: de onde vocês vêm? Como vivem?
Pedro Poney: Meus pais são cearenses, vieram pra Brasília no começo dos anos 80. O Manga (vocalista) também é cearense, mas veio pra cá só três décadas depois. A mãe da Jully (baixista) também é nordestina, e isso não é uma coincidência — quando existem tantas forças envolvidas, existe pouco espaço pra coincidência. Os pais do Daniel (bateria) não, são de Minas, acho. Meus pais são servidores públicos, misto de regra-geral e meta-sonho da cidade cemitério. Destino compartilhado por mim também, espero que não pro resto da vida. Dá pra dizer que eles estão de alguma maneira trabalhando pra manutenção desse poder, então. Eu também. A minha única defesa é também minha fuga, poder responder entrevistas como esta durante o expediente na repartição. 

A primeira música do Asa Morte é um recado direto ao próprio éthos da cena punk/hardcore (sem contar que é um soco no ânus dos comentaristas reaças de internet). Queria saber como é essa cena no Distrito Federal — ou até mesmo se existe atualmente — e como vocês se sentem em relação a ela. Quando vi vocês ao vivo, tive a impressão de que essa crítica e outras que vão sendo perfiladas no decorrer do disco se ancoram na própria prática de vocês, que é 100% dentro desse ativismo mais faça-você-mesmo, correto?
Correto e correto, acho. Bem, "Contra o Mundo", a música que abre o Asa Morte, se disfarça de mensagem enaltecedora do punk "sou eu sozinho contra o mundo" [a saber: “Sua ideia de resistência / Nada mais que egolatria / Sua enorme prepotência / Te faz agir como polícia / Você contra o mundo / Mas o mundo nem sabe de você”] pra na verdade criticar todo a egolatria desvairada que existe em acreditar numa bobagem dessas. O que existe é uma profunda indiferença do mundo com relação à nossa insignificância, e acho que não há problema nenhum em assumir a nossa pequenez. Pelo contrário, pode ser bonito pra caramba. Justamente porque a partir desse ponto de vista com mais humildade existencial, a gente vê que não está sozinho, que podemos fazer coisas juntos e que tem muita gente criando coisa legal por aí. E assim é no pedaço que a gente faz parte da cena punk hardcore do DF, acredito. Um espaço bem pequeno, que congrega várias bandas e pessoas diferentes (de banda de garage rock a crust e death metal) e que, na minha opinião, nos últimos tempos tem se preocupado bastante com os aspectos não-musicais da "cena", o que é bem legal. Bem, mas pra além disso, muita coisa diferente vem sendo feita por aqui e as coisas estão bem segregadas nos últimos anos. O que eu acho que está longe de ser um problema. Me interessa produzir e compartilhar com pessoas com quem eu possuo algum tipo de afinidade, não sou a favor de um discurso de união vazio que pretende juntar pessoas com visões de mundo muitas vezes inconciliáveis porque compartilhamos uma palavra, ainda mais uma palavra tão genérica como "hardcore" ou "punk". Finalmente, vejo essa ética do "faça-você-mesmo" como o aspecto mais encantador e politicamente interessante do punk rock. Enquanto o resto do mundo inteiro parece funcionar de uma maneira brutalmente verticalizada, em que é preciso deter o conhecimento de uma série de procedimentos, práticas ou técnicas, no punk a gente pode ir lá e simplesmente fazer. Isso permite muita coisa ruim, é claro, mas a gente aprende durante o processo também. Abraçar a precariedade em vez de pretender exorcizá-la me parece uma coisa muito bacana de se levar pra vida. E, é claro, todo esse lance do DIY tem tudo a ver também com não criar fronteiras muito definidas entre "o que" se faz e o "como" se faz. Ambos são igualmente importantes e isso é legal pra caramba.

Queria que você fizesse um “roteiro pra se entreter” em Brasília, pra não acabar enlouquecendo na cidade feita pra carros e escritórios, como vocês dizem. Acredito que deve ter gente aí que dá seus pulos pra humanizar o lugar...
Sim, sim. Acho que a banda mesmo é uma tentativa de dar um desses pulos. A nossa relação com a cidade não é de simples desprezo ou raiva, é bem mais complexa do que isso. Existe algum amor incompreensível por esse lugar também e uma vontade que ele fosse melhor. O verso final de Asa Morte tenta dar conta dessa confusão de sentimentos: "Não sei explicar, mas nessa cova rasa, me sinto em casa". Talvez a gente possa dizer de maneira mais simples que tentamos cultivar uma visão crítica da cidade em que vivemos por meio do punk rock. O que, pra mim, é um exercício bem legal, de trazer essa cultura bastante colonizada do punk pra uma realidade mais local, mais próxima, mais própria. E até mesmo por ser uma cidade que promove tanto o desencontro, parece que quando conseguimos promover um esbarrão parece que as coisas ganham um peso simbólico que dá pra sentir no ar. É o caso de um show punk em um buraco qualquer ou da Bicicletada que acontece uma vez por mês. É quase como se ecoasse mais alto por causa do silêncio da cidade. Bem, eu sou da brigada antibalada (risos), então minhas sugestões vão ser bem zelas pra quem curte um agito (Brasília não é a cidade pra isso mesmo). Recomendo ir tomar banho de piscina natural, ver os micos e comer milho na Água Mineral (Parque Nacional de Brasília), andar de bicicleta nos eixos aos domingos e de skate à noite no Museu Nacional, nadar no Lago Paranoá na Ermida Dom Bosco, virar hippie em alguma cachoeira aqui perto, dar um rolê cívico se você nunca veio aqui, além de curtir uma arquitetura e não escutar Legião Urbana. 

Não dá pra deixar passar: a morte do Niemeyer parece que serviu só pra nego fazer proselitismo ideológico de esquerda e direita em cima do nome do Matusalém. Então... Brasília seria melhor sem as obras arquitetônicas dele?
Tudo que posso falar é a partir do ponto de vista de alguém que nasceu, cresceu e adora andar de bicicleta nesta cidade. Não tenho pretensão nenhuma de articular um discurso de técnica arquitetônica pra falar do ancião. Que nem eu vi a maioria das pessoas tentando fazer por aí, feião.
Minha relação cheia de contradições com esta cidade também está refletida na maneira como eu vejo as obras do Niemeyer. Apesar de achar que são visualmente muito agradáveis (aquelas mais "rolê Varsóvia" são minhas favoritas), acho que o Niemeyer e suas criações são brutalmente responsáveis por transformar Brasília em uma cidade em que simplesmente não existe espaço público. Sem encontro, sem compartilhamento, sem vida. A morte da cidade, de certa maneira. As praças do Niemeyer são desagradáveis, ninguém quer sentar lá naquele cimento duro. São espaços gigantes, mas vazios, de amor ao poder, sempre com alguma homenagem a algum herói que, certeza, foi um sacana. Mas na real, a culpa mesmo é do Lucio Costa (risos). Tem até um relatório dele dizendo que a cidade tinha que ser pensada com o automóvel como um membro da família, acredita?

Faz uma lista de bandas punks de Brazoca pra além do punk do Legião Urbana (risos) e do Capital inicial (RISOS). Sua hora de educar a juventude esperta do país...
Das bandas novas eu gosto muito do Subterror, The Squintz, Gulag, Dualid, Dança da Vingança, Soror, Gracias por Nada, Caim, Ameaça Cigana. Não vou ficar descrevendo uma por uma, consulta o oráculo que tá tudo aí, mas tem desde neocrust fresquinho até punk rock primário. No começo dos anos 2000 aconteceu uma retomada faça-você-mesmo por meio de bandas como Terror Revolucionário, Mayombe e Innocent Kids, que foram a minha escola pra esse tipo de música barulhenta e raivosa. Daí pra trás, tem um monte, né? TFP, CSM, Besthoven, Death Slam, Swankers, Dick Heads (a maioria bem difícil de encontrar material hoje em dia)... As primeiras de hardcore foram o ARD (que na época tinha um nome em alemão) e o BSB-H, que teve várias fases, sendo a mais legal uma época crossover meio Suicidal Tendencies no fim dos anos 1980. Uma bem desconhecida do começo dos anos 90 e que fazia um punk rock bem legal era o Desakato à Autoridade, lembrava bastante o Câmbio Negro HC, de Recife. E não, eu não tenho relativismo com o Plebe Rude (risos), mas eu curto um Escola de Escândalo e, posteriormente, um Arte no Escuro (risos).

Pra acabar, você dá muito rolê tanto com o Cidade Cemitério como com o Violator. Então, que cidade consegue ser mais cemitério que Brasília e qual seria uma cidade paraíso?
São Paulo, em alguns sentidos, é muito mais cemitério que Brasília. Fico angustiado com tanto concreto, tanta fumaça, tanto cinza. Algumas cidades do Japão são assim, de certa maneira, uma hiperurbanização que é sufocante. Palmas, no Tocantins, talvez por ter muita inspiração em Brasília, tem uma pegada parecida de muita fluidez pros automóveis e pouco espaço pras pessoas. Pela miséria e sofrimento acumulado, a cidade na periferia de La Paz, El Alto, também poderia ser considerada uma "cidade cemitério", ainda que com um sentido radicalmente diferente de Brasília. Cidade paraíso é difícil de dizer sem uma vivência mais longa, mas definitivamente existem muitas cidades por aí que extrapolam vida e comunhão nas ruas, mesmo que isso signifique contradições e conflitos. Gosto muito de Bogotá e toda a maneira que as ruas são compartilhadas por lá; Buenos Aires, com as pessoas sentadas nos gramados a tarde inteira e as praças cheias de gente até a noite; Cidade do México, com as pessoas dançando e tocando música em plena rua e um monte de gente andando de um lado pro outro; Amsterdã (e aquele tanto de bicicleta), Barcelona e Rio de Janeiro seriam bons exemplos também, acho. 

NOTA: Cidade Cemitério é uma das atrações do programa de rock de hoje.
 
Ouça o Asa Morte aqui.

Ouça o split deles com o Skate Pirata aqui.

por Arthur Dantas

Vice

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