Já faltava tinta na caneta para anotar o nome das músicas quando Robert
Smith começou a mostrar sinais de cansaço, numa versão mais lenta de
“Boys Don’t Cry”. Mas ele estava lá liderando o The Cure
e cumprindo a promessa - e como Bob falou à imprensa brasileira - de
tocar um set longo e cheio de músicas: redondas 40 canções em três horas
e 20 minutos. E olha que foi pouco, se consideramos a lista original
fornecida pela produção, com sete músicas a mais, e a compreensível
tolerância com o terrível trânsito do Rio para a HSBC Arena, que atrasou
o início em meia hora. Definitivamente um show para iniciados, mas que
os não acostumados com os 37 anos dessa lenda viva do rock também podem
curtir, embora muitos tenham saído antes do fim.
Isso porque logo na primeira parte já aparecem hits do naipe de “In
Between Days”, do bombado álbum “The Head Om The Door”, obrigatório na
época em que o rock dava as cartas por aqui, na mídia e nas pistas. Mas o
quesito rock pra dançar, Bob Smith, que não é bobo, deixaria para o
último bis, avaliando a resistência dois fãs e a sua própria. Pode até
não parecer, mas há conceitos fornecidos numa noite como essa, aqui e
acolá. Por mais que os músicos pareçam combinar quase tudo ali no palco,
não é por acaso que a noite começa com “Open” e termina com “End”,
muito menos a alternância entre momentos alegrinhos, do tipo “Friday,
I’m In Love”, que todo mundo adora, com outros soturnos ao extremo, como
em “One Hundred Years”, cujas imagens no telão só ampliavam a mais
profunda tristeza. A música do Cure - se você não se deu conta - é para
tocar as profundezas da alma. E o grupo ainda teve a ousadia de tocar
quase a íntegra do álbum “Disintegration” (sete de 10 músicas, num bis
só para ele, com três), um dos discos mais tristes e sombrios de que se
tem notícia.
A banda passa a maior parte do tempo paradona no palco, e são as
dancinhas do desengonçado Robert Smith que chamam a atenção em algumas
músicas. Ele reclama de ter demorado 17 anos para voltar ao Brasil e de
não ter aprendido português, mas sabe que carisma é muito mais do que
ler frases feitas em um pedaço de papel ou ficar dizendo “oi, tudo bem”
com sotaque carregado. No caso do Cure, a música é hipnótica e prende o
público por si só, sem pataquadas afins. E quem está no palco é Robert
Smith, um dos nossos super heróis mais emblemáticos, do tempo em que,
para se subir em um palco, não podia ser com qualquer roupa do
cotidiano, era preciso um personagem. Tanto que Bob encarna seu alter
ego, há 37 anos, dentro e fora do palco. Um personagem que atravessa
gerações incólume, jamais envelhece e ainda faz dos quilinhos a mais que
carrega desde a juventude um plus inerente ao conjunto da obra. Robert
Smith permanece sendo o ursinho de pelúcia em carne, osso e vida própria
que o mundo do rock eterniza dia após dia.
Há muitas maneiras de se encarar um show como esse do Cure - pense bem
-, são 40 músicas! Em “Trust”, por exemplo, lá pela metade, a sequência
das músicas sugere um reinício, e “Want”, logo nem seguida, com um
crescente instrumental que beira o dramático, só não representa o ápice
da melancolia porque Bob Smith sempre se supera nos extremos e coloca a
cabeça do público em parafuso. “Shake Dog Shake”, por sua vez, é tão
espessa e arrastada, até explodir no refrão, que desfaz o mito e
converte bandas de doom, black, gothic e o caralho a quatro metal em
anjinhos que desceram do céu. Bob Smith e o Cure chegam muito mais perto
e mais profundamente aos males do ser humano do que todos eles reunidos
num palco de festival nos cafundós da Alemanha. Na inesperada “From the
Edge of the Deep Green Sea”, o clima profundo é enfatizado por efeitos
que reproduzem a imagem da banda no telão ao infinito, num tom azulado
de arrepiar, que traria ainda mais melancolia ao set. Toda a produção de
palco, com canhões de luz laterais e no fundo, são de um simplicidade
atroz e funcionam que é uma beleza.
Bem misturado, com direito a celebrities de plantão, o púbico é
unânime e vibra até nas músicas com longas passagens instrumentais, como
a de “Push”, em que a primeira parte da letra é antecipada no gogó. A
banda é ok, tem bons baterista e baixista, com destaque para o
guitarrista Reeves Gabrels, cedido por David Bowie.
Ele investe mais em texturas e climas, como pede o som do Cure, mas tem
performances arrojadas em músicas como “End”, do martelante
verso/refrão “Stop loving me”, e especialmente no final destrambelhado
de “Wrong Number”, num show à parte. Mas é no bisão final, com 10
músicas que o bicho pega, numa pista de dança gigante só com hits, desde
a fase pós punk clássica (”The Caterpilar”, Let’s Go to Bed”) até o
flerte com o funk rock de “Why Can’t I Be You?”. Um show de proporções
bíblicas para ser recordado e repassado pelos séculos e séculos. Amém,
Robert Smith. Amém.
por Marcos Bragatto
rock em geral
Set list completo
1- Open
2- High
3- The End of the World
4- Lovesong
5- Push
6- In Between Days
7- Just Like Heaven
8- From the Edge of the Deep Green Sea
9- Pictures of You
10- Lullaby
11- Fascination Street
12- Sleep When I’m Dead
13- Play for Today
14- A Forest
15- Bananafishbones
16- Shake Dog Shake
17- Charlotte Sometimes
18- The Walk
19- Mint Car
20- Friday I’m in Love
21- Doing the Unstuck
22- Trust
23- Want
24- The Hungry Ghost
25- Wrong Number
26- One Hundred Years
27- End
Bis
28- Plainsong
29- Prayers for Rain
30- Disintegration
Bis
31- Dressing Up
32- The Lovecats
33- The Caterpillar
34- Close to Me
35- Hot Hot Hot!!!
36- Let’s Go to Bed
37- Why Can’t I Be You?
38- Boys Don’t Cry
39- 10:15 Saturday Night
40- Killing an Arab
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