Ao contrário do que propõem dois outros grandes edifícios da cultura de massa erigida pelo século XX – o cinema e a televisão, lazeres de pipoca e de evasão –, o rock é uma voragem de desassossego, ondas de encrespações selvagens, é movimento de som e fúria, tem a mesma natureza incontrolável das convulsões tectônicas.
E nunca caiu nas graças da “alta cultura”, embora tenha produzido os seus próprios clássicos e eruditos do porte de um David Bowie, de um Lou Reed, The Who, The Doors, Pink Floyd, Nirvana, o múltiplo Bob Dylan, os Beatles, é claro, e o pioneiro Elvis Presley, entre outros. “Ainda precisa ganhar o respeito que merece como autêntica voz de nosso tempo”, reclama a ensaísta Camille Paglia. “Aonde o rock vai, a democracia vai atrás.”
Mas, contra o bom gosto dos esnobes, vem arrastando ao longo das décadas hordas de romeiros fervorosos pelas trilhas de seu culto iniciático, subgrupos, subculturas, tribos que nem sempre se misturam (perguntem para os fãs metaleiros do Black Sabbath se há rock além do Black Sabbath). Bem, show de rock é o último lugar que deve frequentar quem só quer ouvir uma boa musiquinha – é catarse coletiva, missa profana, barulheira tribal.
Para assistir, hoje, a um espetáculo do U2 ou do Pearl Jam, a gente tem de se acotovelar em arenas cujos cenários megatérios transformam os protagonistas em anões – mesmo quando eles buscam, aos pulos e aos berros, a cumplicidade eletrônica dos telões. Na plateia, os adeptos da fé satânica rezam a ilusão de um constante estado de delinquência juvenil, mesmo quando os peregrinos já têm os cabelos esmaecidos no cinza e mesmo quando, passado o transe pueril na área vip, o máximo que eles consigam imaginar como transgressão é o som reacionário das panelas Le Creuset.
Turnês como este Olé Tour, dos Stones, em 13 escalas latino-americanas além de um show gratuito – e politicamente significativo – em Havana, com estádios cheios e multidões estoicas, exumam a nostalgia histórica dos pioneiros festivais dos anos 60, aqueles que tiraram o rock dos auditórios para expô-lo ao ar livre, levá-lo literalmente para a estrada. Os Stones, em temporada de hits clássicos, continuam extravasando no palco sua aeróbica vitalidade. O serelepe Mick Jagger tem 72 anos, Keith Richards, também, Ron Wood, 68, e Charlie Watts, que, aos 74, preside a bateria com a serenidade de um bonzo taoista.
Elvis e sua geração já eram capazes de gerar frenesi nos salões, fossem recintos de high school, espaços tradicionais como o Madison Square Garden ou shows de tevê coast to coast, como o de Eddie Sullivan. Os Beatles formataram a histeria descabelada (embora o empresário Brian Epstein tenha pago carpideiras profissionais para a cena do aeroporto na “docuficção” A Hard Day’s Night). O rock ainda não havia extrapolado para os descampados da natureza, na simbiose promíscua de lama, sexo, bebida, marijuana, protesto, delírio, orgia, chuva e banheiro químico. Ali, nos festivais ao vivo, a geração dos anos 60 encontrou sua particular ideia de felicidade.
Nas manifestações coletivas do que se passou a chamar paz e amor, uma contracultura florescente e psicodélica adotou o rock como sua língua franca. O poeta beat Gary Snyder flagrou o parto de “uma nova ética e novos estados mentais”. Ou como dizia Jerry Garcia, emblemático band leader do emblemático Greatful Dead, “somos os primitivos de uma cultura desconhecida”.
Tão carismáticos se tornaram Jerry Garcia e o Greatful Dead, nativos daquele santuário hippie de Haight-Ashbury, em São Francisco, que, por onde quer que andassem, um rastro de zumbis chapados os seguia, os deadheads, ou, mais adequadamente, os deadies. Não há banda, metal, grunge, punk, o que for, que dispense seus groupies, seus roadies – companheiros de estrada. Mas, na história do rock, ninguém foi tão mortalmente fiel como os deadies, não tendo despertado nem mesmo depois que Jerry Garcia morreu.
O festival de Monterey, em 1967, no litoral da Califórnia (“apareça com a roupa mais louca que tiver”, convidavam os outdoors), e a avalanche humana de Woodstock, no verão de 1969, onde Dionísio dançou com Malcolm X e Timothy Leary desencaretou Karl Marx, coreografaram uma faceta da revolução que já trepidava nas ruas das metrópoles, Paris, Berlim, Chicago, Rio, com a ferocidade legítima de quem buscava “a imaginação no poder”. Altamont, porém, no norte da Califórnia, ao fechar o ano de Woodstock, acionou o alarme para os passageiros da utopia, subitamente assombrados, em sua redoma de fantasia, pela eclosão de uma violência bem real e sem sentido. Enquanto os Stones tocavam, os Hell’s Angels se atracavam com um ou outro zureta da plateia. A morte de um espectador em Altamont foi como o derradeiro rito sacrificial numa religião de descrentes. Nessa virada para os 70, o rock estava se convertendo em indústria global multimilionária. Por ironia, o dinheiro é que lhe assegura o sonho de ser imortal. Como vem cantando Mick Jagger, é só rock’n’roll – mas a gente gosta.
por Nirlando Beirão
Carta Capital
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