Poucas pessoas mudaram sozinhas o curso de uma época a partir de suas
ideias e conceitos – e a maioria destes revolucionários solitários são
artistas. São raros músicos, artistas plásticos, cineastas e escritores
que com uma forma de tocar um instrumento, um tipo de narrativa
contagiante ou trazendo visões pessoais cativam toda sua
contemporaneidade. Nomes como Stanley Kubrick, Miles Davis, Picasso e
João Gilberto trouxeram versões personalíssimas de mundo que se
espalharam para toda sua época e transformaram a cultura de seu tempo
sem participar de um movimento artístico, correntes ideológica, política
ou estética, quase sempre inaugurando novas linguagens. E um destes
nomes completou 70 anos no último dia 06 – ou melhor, teria completado, caso não tivesse
sucumbido às mesmas drogas que o transformaram em um ícone dos anos 60.
Há sete décadas nascia na Inglaterra o menino Roger Keith Barrett, que
ficou mais conhecido por seu apelido Syd e por ser o progenitor daquilo
que nos referimos como música psicodélica.
Syd Barrett já teria
seu lugar na história do século passado apenas pelo fato de ser o
fundador do Pink Floyd. Mesmo não tendo participado dos discos mais
populares do grupo inglês, sua influência é sentida em toda a carreira
da banda e dois de seus principais discos – Dark Side of the Moon e Wish
You Were Here – são homenagens ao legado do músico ao grupo e à amizade
que fez o Pink Floyd existir.
Mas a força torta que fez o Pink
Floyd extrapolar o padrão das bandas de rock inglês da época – tirando-o
do meio das dezenas de bandas de blues ou rhythm'n'blues que tentavam
transformar Londres em uma Chicago branca – foi a mesma que começou a
retomar a autoestima da cultura inglesa num mundo em que esta havia sido
ultrapassada pela norte-americana. O contato de Syd Barrett com as
drogas lisérgicas – especificamente com o LSD, ainda permitido à época –
fez com que ele vislumbrasse um futuro bem diferente para seu grupo,
que à medida em que se distanciava da cultura hooligan chique dos mods e
dos milhares de filhotes dos Rolling Stones começava a tornar a
paisagem inglesa mais colorida e menos cafona. O país já tinha saído dos
dias pesados depois da Segunda Guerra Mundial mas ainda pintava-se com
os tons cinzentos de uma austeridade que não tinha mais eco frente à
máquina de marketing que era a cultura dos Estados Unidos.
Syd
começou a apontar outra direção. Pegou a Inglaterra pela mão e a levou
para o final do século 19, quando contos de fada e um início de
surrealismo coloriam o antigo império em que o sol nunca se punha com
uma audácia e ousadia que pareciam nunca terem existido no século 20.
Buscou o surrealismo inglês, o humor absurdo de escritores, pintores e
dramaturgos esquecidos após duas guerras mundiais para começar a colorir
a Londres dos anos 60. E aquele colorido começou a se espalhar pelo
resto do planeta.
A Swinging London já estava acontecendo quando a
banda de Syd Barrett apareceu. Era uma manifestação cultural que
modernizava a velha capital europeia, trazendo-a para os dias de consumo
frívolo e transgressões sociais da nova década. Uma série de
transformações que misturava artes plásticas, rock'n'roll, drogas, a
cultura mod, programas de rádio e de TV, moda e cinema e tornava a
capital inglesa um ponto focal para o resto do mundo, farol de
tendências e referência mundial de comportamento. Mas quando Syd Barrett
e seu Pink Floyd sintonizaram-se àquelas transformações, as coisas
começaram a mudar drasticamente.
Barrett apresentou a psicodelia para as massas, liderando uma banda
que fugia de estereótipos rock'n'roll e experimentava jam sessions
intermináveis alternando-as com canções dóceis e épicos audazes que
descreviam cenas especiais, viagens no tempo, gnomos e viagens de ácido.
Projetados sobre a banda, jogos de luzes gelatinosos criavam cenas
multicoloridas que aumentavam ainda mais o grau das viagens sonoras do
grupo. Os shows aconteciam em festivais que duravam a noite toda,
precursores das futuras raves, e a banda vestia-se com roupas coloridas,
cheias de franjas e babados, enquanto Syd dominava o público com sua
presença magnética.
O carisma de Syd Barrett pode ser percebido
nos poucos registros em vídeo que sobreviveram à sua fase na banda,
quando começou a espalhar ondas tecnicolor que foram se espalhando pelo
mundo, criando cenas psicodélicas em cidades como São Francisco, Los
Angeles, Berlim, Paris e Nova York, além de dar origens a novos grupos e
artistas no mundo todo. Essa distorção colorida da realidade
influenciou até mesmo os Beatles e até hoje discute-se quem influenciou
quem quando o Pink Floyd gravou seu primeiro disco no estúdio ao lado
que os Beatles gravaram seu clássico Sgt. Pepper's. Graças à psicodelia
difundida por Syd Barrett a música pop começou a buscar outros rumos e
criar novos gêneros musicais, como o próprio heavy metal e o rock
progressivo.
Mas o impacto foi muito maior que musical: a
psicodelia tornou possível as transformações culturais propostas por
David Bowie e Marc Bolan, programas de TV que hoje são ícones ingleses
como a série O Prisioneiro e o Flying Circus do grupo Monty Python. Os
quadrinhos ingleses foram influenciados diretamente por ela (e, assim,
nomes como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison puderam reinventar
os super-heróis nos anos 80), o culto ao Senhor dos Anéis de J.R.R.
Tolkien ganhou mais força, como a influência da obra de Lewis Carroll no
imaginário inglês. Até subprodutos distantes como a acid house, a cena
de Manchester dos Stone Roses e Happy Mondays, a obra do cineasta Danny
Boyle, a cultura clubber e a moda inglesa foram são marcas fortes da
influência de Syd Barrett na cultura inglesa e mundial. Isso sem contar a
própria carreira do Pink Floyd.
Mas as mesmas drogas que abriram a
cabeça de Barrett a fundiram de vez. Logo após o lançamento do primeiro
disco da banda – o clássico The Piper at the Gates of Dawn, de 1967 –
Barrett começou a criar problemas no palco, às vezes tocando um único
acorde, às vezes sem se mexer ou não responder aos entrevistadores em
programas de TV. Sua socialização foi se tornando cada vez mais
comprometida e logo ele não poderia continuar na banda, sendo
substituído pelo velho amigo guitarrista David Gilmour. A saída de
Barrett não encerrou a relação da banda com o amigo, que continuou
lançando discos (dois discos solo) com a ajuda dos integrantes do Pink
Floyd mas, pouco a pouco, foi se fechando em casa e se tornando
incomunicável. Largou a vida pública ainda nos anos 70, quando cortou o
cabelo e começou a pintar. Morreu na Cambridge que o viu nascer, há dez
anos, no dia 7 de julho de 2006. De lá para cá a família vem organizando
o material do ícone psicodélico e, no aniversário deste ano, apresentou um novo site, repleto de informações inéditas (e muitas, muitas fotos, inclusive de suas telas e dos móveis que construía),
que foi tão visitado em sua estreia que ficou fora do ar. É um bom fio
da meada para quem não conhece o trabalho e a vida deste pioneiro
psicodélico, um Ícaro moderno que queimou suas asas ao voar perto demais
do Sol.
por Alexandre Matias
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