Lemmy se foi e ficamos privados de ouvir
novamente a voz de Deus caso Ele fosse chegado em um litro de uísque e dois
maços de cigarro todo santo dia. Quero acreditar que ele agora está aqui ao meu
lado, com um copo de Jack Daniels e Coca-Cola em uma mão, um cigarro na outra,
com as indefectíveis botas brancas e jaqueta de couro surrada, dizendo em meu
ouvido “Viu como vale a pena ser genuíno, cagar e andar para o que as pessoas
pensam ou esperam de você e viver do jeito que se deve?”
Sempre foi divertido pensar que Lemmy, Keith Richards, Ozzy
Osbourne e Iggy Pop seriam os únicos a pisar nas baratas sobreviventes a uma
hecatombe nuclear que mataria a todos nós, menos a eles. Hoje isto não é mais
engraçado. Nenhum deles é imortal. Um dia, estaremos aqui lamentando a partida
de cada um. Que pena…
Um dos últimos baluartes da trindade de
artistas que pareciam indestrutíveis mesmo depois de décadas e décadas de todos
os excessos que você possa imaginar em termos de drogas e bebidas, ao lado de
Keith Richards e Iggy Pop, Lemmy vinha mostrando acelerado estado de
deterioração física nos últimos meses mesmo para um cara de 70 anos de idade. O
que começou com o surgimento de uma alergia a uma determinada fruta semelhante
à framboesa – sim, é isto mesmo o que você acabou de ler! – se transformou em
reações alérgicas cada vez mais graves e que acabaram afetando seu coração.
Depois de uma cirurgia cardíaca e da imposição de uma mudança total no seu
hábito etílico – ele tinha que parar de beber, cheirar e fumar de maneira
radical e rápida -, Lemmy ameaçou deixar seus vícios de lado, mas não resistiu.
Relatos dão conta que ele substituiu as doses cavalares de Jack Daniels com
Coca-Cola que tomava diariamente por vodka com suco de laranja e que, digamos
assim, ele não parou totalmente com tudo o que devia. Foi por isto que ele
acabou desidratado e com distúrbios gástricos sérios no dia da apresentação do
Motorhead na última edição do Festival Monsters of rock brasileiro, o que o levou
a uma internação em um hospital de São Paulo.
É inexplicável. Bem, pensando com um pouco mais de
racionalidade, talvez não seja tão inexplicável assim o verdadeiro fascínio que
a figura de Ian “Lemmy” Kilmister exerce em qualquer pessoa que ame o rock and
roll. E quando escrevo “qualquer pessoa”, não estou sendo bondosamente
genérico, mas afirmando categoricamente que não há um ser humano roqueiro
sequer que: a) não tenha o devido respeito e paixão pelo Motörhead; b) que não
considere “Lemmy” como uma espécie de divindade.
No fundo, é fácil e difícil – e desconcertante – ao mesmo
tempo entender porque a figura de Lemmy suscita reverência. Para isto, é
preciso deixar de lado os pudores politicamente corretos e encarar a verdade:
no fundo, bem lá no fundo, todos nós queremos ser como Lemmy.
Buscamos obter o mesmo grau de respeito que a sua figura e
suas palavras causam nas pessoas. Buscamos causar a mesma sensação que Lemmy
propicia quando entrava em qualquer ambiente: um silêncio que chegava a ser
ensurdecedor. Buscamos envelhecer como Lemmy, dono de seu próprio nariz e sem a
menor intenção de agradar a quem quer que seja.
Com seu inseparável chapéu preto, roupas de coloração idem e
as inacreditáveis botas brancas, Lemmy era uma versão roqueira e real do cowboy
sem nome eternizado por Clint Eastwood no cinema. Para os adolescentes, ele é
um personagem de histórias em quadrinhos – ou videogame, se preferir – que
ganhou vida. E se o Motörhead existiu até hoje é porque Lemmy comandou as
coisas da maneira que levava a sua vida: integridade em relação a tudo aquilo
em que acredita. Quer uma prova disto? Assista ao espetacular documentário “Lemmy
(49% Motherfucker, 51% Son of a Bitch)”.
Nos shows, noventa minutos transcorriam com uma rapidez
supersônica. A famosa saudação de abertura de cada uma das apresentações que a
banda fazia – “Nós somos o Motörhead e tocamos rock ‘n’ roll” – já faz parte do panteão
das grandes frases da história da música, recebida com o mesmo entusiasmo
dedicado a qualquer um dos 438 clássicos do repertório do trio. E quando você é
testemunha de uma apresentação que começa com uma dobradinha do naipe de “Iron
Fist” e “Stay Clean”, é inevitável sentir certa vergonha ao ver a palavra
“rock” associada a grupelhos formados por gente sem talento e sem um pingo de
carisma.
Ao lado de Lemmy estavam, nos últimos anos, o comedimento e
exuberância sônica do guitarrista Phil Campbell – nos shows, havia um “momento
solo” em que ele desfilava uma sucessão de notas surpreendentemente sublimes
para o conceito ensurdecedor do trio. E atrás de ambos havia a energia
aparentemente inesgotável do baterista Mikkey Dee, cuja fúria ao tocar seu
instrumento fazia uma locomotiva desgovernada parecer um carrinho de
supermercado com as rodinhas enferrujadas. Os dois formavam os adereços
perfeitos para a mitológica presença de palco de Lemmy, tocando seu baixo como
se fosse um violão de acampamento e extraindo timbres que qualquer baixista daria
o braço esquerdo para conseguir. É impossível ouvir canções como “Going to
Brazil”, “Ace of Spades” e “Overkill” e não chacoalhar o esqueleto como se
estivéssemos tomando um banho gelado sentado em uma cadeira elétrica.
Certa vez, quando era editor das revistas Cover Guitarra e
Cover Baixo, fiz minha única entrevista com Lemmy, uma das melhores em toda a
minha carreira como profissional da música. Quando terminamos as questões a
respeito de equipamentos e de todos os assuntos a respeito do Motörhead,
ficamos ainda um bom tempo conversando sobre outros assuntos, incluindo os
motivos que nos levaram a gostar de Beatles, psicodelia dos anos 60 e 70,
livros e… ABBA! Foi inacreditável: passamos uns bons minutos discutindo a
respeito de qual foi o melhor disco do quarteto sueco. Suas observações eram
tão impagáveis quanto difíceis de entender – Lemmy tem um dos sotaques mais
indecifráveis do planeta.
Em outra ocasião, ao entrevistar Dave Grohl na época em que
estava lançando o disco de seu projeto Probot, ouvi a frase que resume
perfeitamente o que Lemmy realmente representa no imaginário de cada um de nós.
Quando perguntei a ele sobre a participação do baixista no projeto, Grohl
explicou como aquilo havia acontecido e encerrou com a seguinte exclamação:
“Pau no c… do Elvis Presley! O rei do rock é o Lemmy!!!”
por Regis Tadeu
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por Regis Tadeu
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