quarta-feira, 26 de junho de 2013

A Batalha do Circo voador

Foi uma verdadeira saga até que eu conseguisse chegar, finalmente, ao Circo Voador, naquela noite de quinta-feira em que o Brasil quase parou. Uma saga bem mais emocionante do que a do “João do Santo Cristo” que vi na tela do Cine Odeon minutos antes – porque real, pulsante, sem maquiagem. Sem Globo Filmes.

Mas consegui. Cheguei e entrei, achando que estaria finalmente seguro. Até certo ponto, sim, mas não foi possível evitar os efeitos colaterais do que acontecia ao redor: a policia caçava impiedosamente não apenas os manifestantes, mas qualquer um que estivesse nas ruas. É como se, em pleno Estado de direito, o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral Filho, tivesse decretado uma espécie de toque de recolher. Com direito a balas de borracha, bombas de gás lacrimogênico e até veículos blindados – chamados pelo povo das favelas de “caveirão”.  O Circo, que é aberto, protegido apenas por uma frágil cerca (que atualmente é revestida por uma lona com uma programação visual sensacional com todas as datas de shows que aconteceram por lá) foi invadido pelas nuvens de gás que, em contato com os olhos e a boca, provocam severas irritações. Desagradável – o que não deixa de ser, ironicamente, apropriado, já que é esse o nome do DVD que estava sendo lançado pela Gangrena Gasosa.

“Quando a gente fala que o clima fica pesado sempre que a Gangrena toca ninguém acredita”, disse Chorão 2 (foi promovido depois da morte do vocalista do Charlie Brown) ao iniciar sua participação naquela que seria uma noite muito especial. Ele era um dos diversos ex-integrantes que abrilhantariam a apresentação. Apresentação que teve que ser interrompida por dez minutos, logo no início, para esperar até que o gás lacrimogênico se dissipasse.

Voltaram com um gás renovado – outro tipo de gás. Aquele que corre nas veias sempre que somos provocados. A raiva, afinal, é um dos principais combustíveis do rock “pauleira”. Paramentados como entidades, como sempre, os caras (e a “mina”) mandavam uma porrada atrás da outra do mais puro e autêntico “Black Metal” brasileiro, o “saravá metal”, gênero do qual eles são os fundadores e, até onde eu saiba, únicos praticantes. Para o delírio dos mais velhos que acompanharam a carreira da banda, ao vivo ou de longe, como no meu caso – era minha primeira vez num show da Gangrena, no Circo Voador e em manifestações de rua violentas – as participações especiais foram se sucedendo: primeiro Paulão, vocalista de uma das formações clássicas, com seu visual “mezzo” rapper “mezzo” “Burzum”, depois o Chorão, Magrão e Cid – os dois últimos desalojando o pequeno grande Renzo, ex-DFC e Zumbi do Mato, da bateria. Magrão com a mão pesadíssima e Cid surpreendentemente competente, com direito a baquetas giradas na mão e stage dive “versão meia idade” ao final.

Foram vários os momentos antológicos. Os mais emocionantes foram aqueles em que o público participou ativamente, como em “Centro do Pica-pau Amarelo”, onde na paradinha para o refrão todos gritavam a plenos pulmões que “EMÍLIA POMBA-GIRA É UMA BONECA DE VODU”. Ou em “A Supervia deseja a todos uma boa viagem”, quando Ângelo e Chorão comandam a massa na invocação do capeta – Chorão, o autor da letra, se orgulha de que esta seja, provavelmente, a música que mais tem o nome de Satanás em toda a história do rock.

Os músicos são muito competentes, com destaque para o vocalista que substituiu Chorão sob o “fiá de Omolu”. Excelente, muito melhor do que o que gravou o show que está registrado no DVD – sim, já é outro! Chega a ser chocante comparar a atual formação da Gangrena com a dos primórdios. Outro nível, definitivamente. Inclusive nas composições: as mais recentes combinam perfeitamente a percussão “candomblezistica” com as palhetadas nervosas e os “blast beats”. Foi, no entanto, emocionante ver os “hits” dos primeiros anos, muito mais toscos, musicalmente falando, sendo interpretados pelos caras que os criaram, além de vê-los “arreando” o despacho em cima da galera – algo que, segundo o Marcos Bragatto, ao lado de quem eu assisti parte do show, ele nunca mais tinha visto. No final, Ângelo decreta: “PAU NO CU DO SERGIO CABRAL, PAU NO CU DO EDUARDO PAES E PAU NO CU DA POLÍCIA”.

O show da Gangrena foi precedido pelo de uma competente banda de Death Metal local, Fórceps, e sucedido por um dos pais sagrados do estilo, o Cannibal Corpse. Que instituíram o inferno sonoro sobre a terra assim que subiram ao palco, com brutalidade e competência, mas também com uma uniformidade de ritmo um tanto quanto maçante – isso dito por alguém que aprecia mas não é exatamente um fã do estilo, evidentemente. Foi um tapa no pé do ouvido atrás do outro, especialmente quando o guitarrista resolvia fazer um de seus raros solos - o som que saía dos amplificadores ficava ensurdecedor.

Imaginei que eles iriam se manifestar a respeito do que acontecia ao redor, mas nem uma palavra. A primeira coisa dita entre as músicas pelo vocalista, do qual ainda nem tínhamos visto o rosto, já que ele não parava de girar a cabeça transformando sua longa cabeleira numa hélice, foi que “pussy” era a coisa que ele mais gostava na vida. Depois, só apresentava algumas músicas, especialmente as mais “clássicas”. No final, dedica a apresentação a Jeff Hanneman, sob a aprovação do público ensandecido que passa a gritar “Slayer!”. “Sem ele, a gente não estaria aqui”. Mais do que justo.

Não vi nenhuma bomba caindo dentro do circo em si, como noticiado em alguns locais, mas parece que um dos proprietários da casa foi alvejado por uma bala de borracha ao tentar fotografar a ação dos “pigs”. Meu camarada Heron, vocalista da banda Uzômi, contou que, ainda lá fora, recebeu uma bomba de gás direto no peito, o que o fez passar muito mal, com ânsias de vômito. Fora isso, ao fim da noite, tudo em paz. Os combates haviam cessado e a madrugada avançava tranqüila. Fui resgatado das ruas por um argentino super gente fina (ou CB, Çangue Bom, em bom carioquês) que me acolheu de forma até comovente, de tão hospitaleira. Especialmente porque mal nos conhecemos, embora tenhamos vários amigos em comum – e eles ou não foram ao show ou não puderam ficar até o final, daí meu “abandono”.

Uma noite para ficar na história do Brasil – e da minha vida.

Fotos: Daniel Croce

texto: Adelvan

SARAVÁ!

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