... e de insolência. Por trás da banda Pussy Riot, o rosto de uma juventude russa irrequieta com o país da era Putin.
por DORRIT HARAZIM, na revista piauí
Da antiga União Soviética elas só conheceram o período de implosão e
desmantelamento. Nasceram na virada dos anos 90, numa Rússia já em
transição do comunismo para um regime mais assemelhado às democracias
ocidentais. Cresceram dentro das fronteiras de uma nova classe média
emergente, urbana e de sotaque europeu.
Nadezhda Tolokonnikova, de 22 anos,estuda filosofia e é mãe de uma
menina de 4 anos. Maria Alyokhina, de 24, cursa jornalismo e letras e
atua em causas ambientais. Tem um filho de 5 anos. A mais velha do
grupo, Yekaterina Samutsevich, de 30, além de formada em fotografia, é
programadora de computação. Trabalhou durante dois anos no
desenvolvimento de um software para o submarino nuclear K-152 Nerpa.
A identidade individual das três integrantes da banda feminista de nome
atrevido, Pussy Riot, era tão obscura quanto a de outros coletivos
artísticos contestatórios de voz estridente e presença na internet.
Permaneceram anônimas por trás de suas simpáticas bataclavas coloridas
até se tornarem cause célèbre no Ocidente, muito além das
expectativas mais desvairadas da banda. Tudo por um erro de calibragem
política de Vladimir Putin, que avaliou mal o quanto a sua Rússia já
estava conectada ao resto do mundo e contagiada pela internet. Erro
elementar para um ex-coronel da KGB.
O crime-relâmpago das garotas foi cometido no altar da Catedral de
Cristo Salvador, em Moscou. Durou menos de quarenta segundos, abortado
às pressaspelos seguranças. Mas foi tempo suficiente para entoarem uma
insolente prece profana à Virgem Maria, que pedia à Santa Mãe para
abraçar a causa feminista e destronar Putin.
O fato ocorreu numa terça-feira, 21 de fevereiro passado. No sábado 3 de
março, véspera de reeleição de Putin para presidente-czar da Federação
Russa, o clipe editado da transgressão, com 1min53 de duração, foi
postado na internet. Tornou-se viral, com mais de 1 milhão de acessos.
Na noite do mesmo dia, três das cinco punketes profanas foram presas (as
outras duas conseguiram escapulir da Rússia), acusadas de vandalismo e
ódio religioso. No julgamento encerrado no mês passado, de reverberação
mundial, foram condenadas a dois anos de prisão. Fizeram, assim, mais
barulho político do que sucesso musical. Era esse o propósito.
“As pussy rioters mexeram literalmente com fogo em várias áreas”, diz Angelo Segrillo, professor de história contemporânea da usp, autor de Os Russos. “Criticaram o líder [Putin]
em um momento em que ele está acuado pela crise econômica e pelo temor
de que ocorra uma ‘primavera russa’ do tipo da Primavera Árabe. Mais que
isso, mexeram com um tradicionalismo patriarcal que ainda é forte no
país, não só entre os homens; boa parte das mulheres russas também não
aceitam o feminismo contestador ocidental. E ainda mexeram com os fortes
sentimentos religiosos [da população].”
uando
a sentença foi proferida, oardiloso Putin, que retornara de Londres
após ver seu país ficar em 3º lugar nas Olimpíadas, pode ter se
surpreendido com a simpatia mundial derramada sobre as jovens. Mas
calibrou corretamente a reação doméstica. Segundo dados do Centro
Levada, conceituado instituto de pesquisa russo, a grande maioria da
população manifestou simpatia escassa por essas jovens com atitude –
mesmo entre os que consideraram excessiva a pena criminal. Apenas 5% se
declararam abertamente simpáticos a elas.
“A saga da Pussy Riot pode ter sido um desastre para a imagem de Putin
no Ocidente, mas fez pouco para diminuir seu apoio doméstico. Mesmo
quando o país parece estar embicando para uma direção errada, Putin
continua sendo extremamente popular”, avalia o autor e pesquisador de
assuntos russos Vadim Nikitin, formado por Harvard e pela London School
of Economics.Ele acredita ser provável que a própria oposição ao líder
tenha se cindido com o episódio, umavez que a atual resistência ao
Krem-linnão contém o componente de cultura liberal comum a outros
países. “A vitória da Pussy Riot se deu em outro plano: desnudou a
extensão do poder político da Igreja Ortodoxa”, conclui Nikitin.
De fato, se até agora Putin soube dosar o grau de liberdade privada e de
consumo concedido sem precisar afrouxar demais o controle sobre as
outras liberdades, sempre pôde contar com o colossal peso do Patriarcado
ortodoxo, confiável sustentáculo da ordem conservadora.
leitura
dos autos da sentença contra a Pussy Riot parece saída de uma peça de
Dario Fo. As acusadas, “vestidas com indumentárias impróprias para uma
igreja”, teriam violado “regras concebíveis e inconcebíveis”. Citando
exames psiquiátricos e psicológicos das jovens, a juíza Marina Syrova
arrolou alguns dos desvios de personalidade que teriam sido constatados:
“propensão a protestos”, “autoestima inflada”, “abordagem proativa da
vida”, entre outros.
As peças de acusação são ainda mais delirantes. Uma dúzia de seguranças
da catedral, um sacristão e um coroinha representavam a parte ofendida.
Mikhail Kuznetsov, o advogado de um deles, acusou a Pussy Riot de ser
uma conspiração criminosa e qualificou o episódio de “ato capaz de se
transformar rapidamente em algo da dimensão do ataque de 11 de Setembro
contra as Torres Gêmeas”. Instado a se explicar um pouco melhor, não
hesitou: “O atentado russo foi obra de um grupo satânico. O [ataque] americano teve autoria de forças acima do governo dos Estados Unidos. Foi obra de um governo global.”
Para uma parte da classe média da Rússia emergente, que aspira a não
mais viver num estado pária e em dissintonia com as democracias
ocidentais, o recurso a “anomalias psicológicas” desenterradas do
passado bolchevique e sandices como as do advogado incomodam. A fusão de
Igreja e Estado em torno da perpetuação de uma “civilização ortodoxa
russa”, também. Só que a fatia em desconforto com a velha ordem ainda é
pequena.
"Liberdade é quando você es-que-ce o nome do tirano”, escre-veu o poeta e
ensaísta Joseph Brodsky, expulso da União Soviética quinze anos antes
de ganhar o Nobel de Literatura, em 1987. A citação consta de uma carta
endereçada ao governo pelas ativistas da Pussy Riot enquanto aguardavam
julgamento. Por essa medida, as jovens ainda terão de rezar muito até a
nação deixar de ter o nome de Vladimir Putin na ponta da língua.
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