Uma revelação reencontrar Napoleão, Bola de Neve, Sansão, Garganta e
toda a fauna de “A Revolução dos Bichos”, depois de quase quarenta anos.
Como o tempo passa rápido. Como mudamos. Como não mudamos.
E como as fábulas têm esse poder imperioso, sobrenatural de
permanecer eternas. É o que faz das fábulas, fábulas: as mais
permanentes histórias sobre a natureza humana. Que, aprendemos lendo os
antigos e os contemporâneos, não muda.
É tradição nas mais diferentes culturas botar as mais humanas
verdades nas bocas de animais. Era uma maneira de dizer a verdade com
total liberdade, pra gente lida e inculta, pra todas as idades.
Mas “A Revolução dos Bichos” é uma fábula diferente. Porque é um
conto de fadas – o subtítulo original é exatamente esse, “A Fairy
Story”. Também é quase um documentário. E, incrível, tão vital hoje
quanto em 1945, quando foi publicado.
Continua inspiradora e provocativa a história dos bichos que se
revoltam contra o dono da Granja do Solar. Estabelecem no sítio uma nova
sociedade, com novas regras, onde todos são iguais. E ao final
descobrem que alguns animais são mais iguais que os outros.
O livro voltou às listas de mais vendidos nos últimos anos. As
escolas estão dando “A Revolução dos Bichos” para os jovens lerem. Eu
mesmo comprei, e ao ver meu filho com o livro debaixo do braço, o tio
dele cuspiu fogo, “isso é propaganda da direita”. Imagine se ele
soubesse que é a tradução de Heitor Aquino Ferreira, secretário de
Golbery, Geisel e Figueiredo.
“A Revolução dos Bichos” foi escrito no auge da Segunda Guerra, quando
União Soviética, Reino Unido e EUA eram aliados contra o eixo. Londres
estava sendo bombardeada. O manuscrito foi salvo das ruínas da casa de
Orwell. Foi dificílimo arrumar editor, inicialmente porque Stálin era
aliado, e depois porque o livro era muito à direita, ou muito à
esquerda, ou muito irônico, ou “pra criança”. Era o livro certo na hora
errada.
CONTRA OS MESSIAS
É verdade que o livro tem sido usado para bater na União Soviética desde
seu lançamento. Justo, porque para isso foi concebido por George
Orwell.
Orwell considerava o stalinismo quase tão destrutivo quanto o
nazismo, e parentes próximos. Sua crítica à URSS era pela esquerda, não
pela direita. “Para reviver o movimento socialista”, explicou, “eu me
convenci de que é essencial a destruição do mito soviético”.
Uma visita cuidadosa à fazenda defende para sempre o leitor de
empulhações salvacionistas. Venham de onde vierem no espectro
ideológico. Foi a primeira vez que Orwell, em suas palavras, tentou
“fundir propósito artístico e propósito político em um todo.”
É o que tenta fazer Roger Waters. Na minha geração, muitos chegaram a
Orwell pelo Pink Floyd. Animals, o álbum, é inteiramente inspirado pela
Revolução dos Bichos. The Wall, um libelo anti-totalitário, foi o disco
que me iniciou nas possibilidades contestatórias do rock, lá em 1979.
Roger, autor das letras de ambos, só ficou mais explícito com a idade.
Em turnê pelo mundo, divide a humanidade em “Us” and “Them”. Rock de
verdade é assim. Rock é resistência. O mundo adolescente é claramente
demarcado, nós contra eles, e assim deve ser. Tem uso na vida adulta
também, como vimos no show em São Paulo.
Waters bateu sem dó em Trump e poderosos variados. Colocou no telão
mensagens listando neofascistas dos cinco continentes – aqui, Jair
Bolsonaro. Chutou o balde usando máscara de porco, e mostrando primeiro
um cartaz escrito “Pigs Rule The World”, e em seguida outro com “Fuck
The Pigs”.
Sua militância gerou grita a favor e contra no estádio lotado em São
Paulo. Mais a favor que contra, especialmente quando colocou um #Elenão
no telão. A maioria das pessoas que pagam pra ver Roger Waters conhecem
sua obra e leram suas letras. Mas é surreal perceber que fãs do
movimento Escola Sem Partido estão cantando “Another Brick In The Wall”
ao seu lado.
CUIDADO COM AS UTOPIAS
Se passaram quatro décadas entre meu primeiro encontro com The Wall e o
show de Roger Waters, entre minhas duas leituras de A Revolução dos
Bichos. O tempo força a gente a abandonar ilusões queridas e enterrar
certezas reconfortantes.
Nos meus 15 anos, “A Revolução dos Bichos” era um alerta claro, mas
generalista, contra maquinações messiânicas. Era impossível para mim
transferir esse alerta para, por exemplo, a Nicarágua, que lutava contra
um ditador cruento, Somoza.
Hoje não é surpresa – mas segue sendo doloroso – assistir o líder da
resistência a Somoza, Daniel Ortega, se revelando só outro ditadorzinho
caribenho. Exatamente como cantou a bola Orwell. Os rebeldes são mais
admiráveis quando não vencem, o que, aliás, é uma das razões porque o
rock é tão sedutor.
Este ano, revisitando a Granja do Solar, eu sabia até demais do que
se tratava. Por exemplo, que os protagonistas e acontecimentos eram
diretamente decalcados da revolução soviética e da ascenção de Stálin. O velho Major, que inspira a revolta dos bichos, é Karl Marx. Os
porcos são os revolucionários; Napoleão é Stálin, Bola-de-Neve é
Trotsky. Os cavalos são a classe trabalhadora russa, estóica, explorada
além do limite. Moisés, o corvo, representa a Igreja Ortodoxa Russa,
sempre contando histórias furadas sobre o reino encantado da Montanha de
Açúcar.
Nesses anos aprendi o que Stálin aprontou na URSS, matando milhões,
inclusive os mais próximos. E que Orwell e as forças antifascistas,
inclusive de esquerda, passaram o diabo na mão dos stalinistas, durante a
Guerra Civil Espanhola. Está lá em suas memórias da resistência a
Franco, “Homenagem a Catalunha”, que inspirou um bonito filme de Ken
Loach, “Terra e Liberdade”.
Para uma leitura ainda mais proveitosa de “A Revolução dos Bichos”,
leia antes “Why Orwell Matters”, de Christopher Hitchens, aqui “A
Vitória de Orwell”.
O capítulo sobre o livro ilumina o livro por várias frestas. Uma é
chave para a compreensão: “os objetivos e princípios da revolução russa
são tratados com isenção no livro; esta é uma revolução traída, não uma
revolução monstruosa desde sua concepção.” Exato: é isso que dá peso à
fábula, e a tira instantaneamente dos domínios da propaganda.
Hitchens também aponta a presciência de Trotsky. Do exílio, o líder
da resistência a Stálin profetizou que os burocratas do PC um dia iriam
vender as propriedades socializadas que expropriaram, e virariam eles
mesmos homens de negócios.
E nota a sensibilidade de Orwell, que faz desta cena o final de “A
Revolução dos Bichos”, quando Napoleão convida o fazendeiro humano,
senhor Jones, para confraternizar, e muda o nome da fazenda de volta
para o original, “Granja do Solar”, ou no original “Manor Farm”.
Hitchens: “não só Orwell produziu uma brilhante sátira da
auto-anulação do Comunismo, como até antecipou seu eventual final em um
estado capitalista mafioso, oligarca. Contra-revoluções também devoram
suas crianças.”
O BRASIL NO MUNDO
É justamente a Rússia a melhor ilustração de onde mora o perigo no
Século 21, em que vão rareando as tiranias explícitas. As ditaduras,
como os animais, são por sua natureza todas iguais. Os novos regimes
autoritários, pelo contrário, são animais muito diferentes entre si.
A Rússia de hoje é governada por um autocrata eleito, e sempre
reeleito, ou governando por trás de um fantoche. Vive-se sob Putin
melhor do que jamais se viveu na história da Rússia. Materialmente e
institucionalmente.
Há liberdades, com limites claramente demarcados. De imprensa, sob
vigilância. De expressão, se não ofenderes os religiosos. De
organização, contanto que seu partido não ameace ganhar as eleições.
É o melhor exemplo de sucesso desse novo tipo de regime autoritário, e
modelo não muito disfarçado para muitos outros países. No mundo
islâmico temos variações mais seculares, Egito e Turquia, ou
escorregando para o fundamentalismo, como os Emirados Árabes. Israel é
caso extremo: uma democracia para os judeus, uma ditadura para os
palestinos.
Na Europa também pipocam líderes do estilo homem forte, como Órban,
na Hungria. Conhecemos bem o modelo: nacionalista, tradicionalista,
pai-dos-pobres, que prometem segurança contra a mudança, a bagunça e
diferença. Mas países diferentes, em lugares diferentes do mundo, tem
soluções autoritárias diferentes, no poder ou tentando chegar lá.
Na Ásia temos supostos exemplos de modernidade, como Singapura, na real
um parlamentarismo de partido único. Outro lugar com um partido só é
grande caso de sucesso econômico das últimas décadas, China, uma
ditadura capitalista-coletivista, se você pode imaginar uma coisa
dessas. Para ficar no nosso hemisfério, temos Trump no trono do mundo;
Maduro, na pobre Venezuela; e no Brasil, Bolsonaro.
“A Revolução dos Bichos”, aliás, até hoje não foi publicado na China.
Nem no Irã, Coréia do Norte, nem em boa parte do mundo Árabe e
Africano. Aqui podemos ler, e vamos defender esse direito, porque há de
aparecer quem queira tirar.
COMO CLAUDICAM AS DEMOCRACIAS
A tendência é forte suficiente para já gerar uma massa de estudos
acadêmicos, e um best-seller, “Como as Democracias Morrem”, de dois
professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O argumento é
que elas morrem pelo voto, quando as próprias populações elegem
políticos que desprezam as regras e as instituições.
As três medidas básicas da democracia são, segundo os autores: se há
eleições livres e justas; se essas eleições geram governos com poderes
regidos pela lei; e se as liberdades civis, de imprensa, expressão,
associação e protesto, são protegidas. Nos três quesitos, o Brasil de
hoje fica a desejar. Começando pelas eleições, que são livres, passíveis
de cancelamento. Dilma Rousseff sofreu impeachment sem crime de
responsabilidade, derrubada por uma conspiração. E o candidato à frente
no momento só aceita o resultado se vencer, caso contrário é “fraude”.
As democracias também claudicam por causa do fracasso de líderes
populares, como Lula e outros, de consolidar uma mudança social
permanente, sólida, mobilizada. É muito difícil atender simultaneamente a
todas as expectativas do deus eleitor e do deus mercado.
O caso mais trágico é o do Siryza, partido grego eleito com bandeira
anti-austeridade, que acabou traindo seus eleitores e aplicando um
arrocho cruel. Pior: o eleitor aceita, porque não vê alternativa menos
pior. Mas nessa brecha vai crescendo o radicalismo; no caso, o Amanhecer
Dourado, partido neonazista grego. Aqui, os movimentos de ultra-direita
que desaguaram nesta triste eleição.
Mas nossa democracia não está morta, nem estará em 2019, aconteça o
que acontecer. “Morrer” é muito definitivo. A História não é estática.
O GRANDE IRMÃO E O MUNDO NOVO
Seguimos daqui, meu filho e eu, para “1984”, a outra obra-prima de
Orwell. Primeira vez dele, minha primeira vez em décadas, e desta vez em
inglês. Li garoto como ficção científica, quase ao mesmo tempo que
“Admirável Mundo Novo”.
Como observa Anthony Burgess no prólogo de “1985”, sua paródia da
obra de Orwell, os detalhes da vida cotidiana de “1984” são calcados na
Inglaterra de 1948, quando o livro foi escrito. Cinza, empobrecida, em
ruínas, sob racionamento estrito de comida, casacos, gilete de barbear.
São minúcias assim que fazem o livro tão forte.
Igualmente realista é a rotina da Granja dos Bichos. Orwell adorava a
vida rural, e passou bons anos vivendo no mato e cuidando de criação.
Escreva sobre o que você conhece, ensinou Dashiell Hammett, e instrução
particularmente importante se você está criando mundos imaginários, com
porquinhos falantes ou o Grande Irmão vigiando.
Em suas preciosas memórias, “O Afeto Que Se Encerra”, Paulo Francis
critica “1984” por ignorar a dinâmica da História. Em uma cena chave,
cruenta, o torturador diz ao torturado: “se você quer ter uma visão do
futuro, imagine uma bota pisando em um rosto humano – para sempre”.
Isso é uma fantasia, diz Francis, porque a História não é estática.
Mesmo os regimes mais totalitários geram contradições internas. Criam
elites, capatazes, sicofantas, excluídos, e disputas entre eles.
Vale para as sociedades, e para a interpretação delas. Poucos anos
atrás se dava de barato que Huxley batera Orwell em presciência.
Teríamos alcançado o Fim da História, um consenso capitalista
globalizado, e “Admirável Mundo Novo” teria acertado na mosca em
profetizar o mundo desenvolvido do século 21. Sem grandes problemas
materiais, anestesiado por consumo, entretenimento, tecnologia e drogas.
Como vimos, durou pouco a ilusão. O mundo de 2020, pra ficar em uma
data clássica da ficção-científica, é igual partes Huxley e Orwell.
Tanto o Orwell de “A Revolução dos Bichos”, quanto a de “1984”.
Hoje concordamos em ser vigiados 24 horas por dia, para lucro dos
gigantes colaboracionistas do Silicon Valley. Gravam nosso comportamento
online e offline e compartilham nossos dados mais íntimos com o
primeiro que pagar bem, e com o aparato de vigilância dos Estados.
Carregamos conosco o Grande Irmão e Napoleão em todo lugar que vamos,
da cama ao banheiro ao trabalho ao protesto, nas câmeras dos nossos
celulares, computadores e tevês. Tudo pela comodidade. E pela vaidade,
pela ansiedade de postar nossa vida, ou a versão dela maquiada para as
redes sociais. O comediante Keith Lowell Jensen tem o comentário
definitivo: “o que Orwell falhou em prever é que nós mesmos compraríamos
as câmeras, e nossa maior preocupação é que ninguém estivesse nos
olhando.”
AS POSSIBILIDADES DE RESISTIR
Como “A Revolução dos Bichos”, “1984” é leitura sempre obrigatória,
geração após geração. E com certeza nestes dias. A frágil, limitada,
imperfeita, corrupta Democracia está sob ataque, no mundo e aqui também.
É compreensível que muita gente queira simplesmente acabar com a
Política, que tanto pisa na bola. Mas a natureza abomina o vácuo, e na
ausência da Política, com seus infinitos debates, esse porre que não
anda, não desembaça, o poder é ocupado por outra coisa bem pior. O mundo
da Política é caótico, mas melhorável. A harmonia perfeita é fantasia
de ditaduras e monopólio dos cemitérios.
Educação não vai nos tirar dessa. Vemos pela tendência do eleitorado
de elite em 2018. O sistema educacional prioriza a criação de uma classe
média com boa formação acadêmica técnica e disposta a abrir mão de seus
direitos e liberdades em troca de uma simplista, imaginária
“segurança”, financeira e social.
Essa gente é o próprio esqueleto de sustentação e gerenciamento do
sistema, gente ordeira que tem fé infinita nas soluções tecnocráticas, e
se define pela obediência às opções de consumo de que dispõe. São
nossos colegas e familiares. São, tristemente, o inimigo.
Faltou Humanas no currículo. O que, claro, é a razão porque as
escolas, e a infância, são o novo campo de batalha da guerra cultural. E
sobrou “Deus”, essa figura egocêntrica, invejosa, totalitária. “Deus
Acima de Todos”, imperial, reza o lema do candidato. Como zomba Bill
Maher, gente como Stálin, Hitler e Mao não eram contra Deus porque eram
ateus; é que eles consideravam Deus como concorrência…
O que nos resta? Resistir e defender a Democracia, falha como é. A
Política, nojenta como pode ser. Defendê-las criticamente, para
transformá-las.
E defender a Liberdade, que, ampliada, gera sempre novos desafios, que
se resolvem com mais Liberdade, nunca com menos. Concordar ou discordar
disso divide ao meio o mundo e o Brasil.
Nisso, sejamos adolescentes: somos Nós e Eles. É hipócrita o apelo
por união quando um dos lados pretende impôr pela força sua pauta ao
outro. Quem quer mandar na gente é, por definição, um porco autoritário,
e nisso vamos reconhecer a sabedoria de George Orwell e o comando de
Roger Waters: fuck the pigs.
Que mais temos para fazer? Compartilhar inteligência e sensibilidade.
Estimular o debate e a contradição, com fundamentos e sem frescura.
Apostar na formação, mais que na informação. E na mobilização dos que
precisam, mais do que na cooptação dos que podem.
Finalmente resta ler, ler sempre. Ler o que nos abre a cabeça e atiça
a imaginação. Para imaginar e criar outros mundos, outras vidas, outras
liberdades. Como disse Fredric Warburg, editor de Orwell, sobre “1984”,
e vale também para “A Revolução dos Bichos”: “se um homem pode conceber
‘1984’, também pode evitar que ele aconteça”.
por André Forastieri
AQUI
#