O americano Ian MacKaye, nas últimas três décadas, expandiu
o punk rock para um método autônomo de produção artística. Se hoje o rock
independente se vale de recursos como o controle de suas turnês e distribuição
própria, é, em parte, graças a ele.
MacKaye sempre rejeitou a ideia de reduzir sua música a um
mero produto. Fundador do selo Dischord, tornou-se notório nos anos 90
por liderar o Fugazi, grupo que, completamente desvinculado dos aparatos das
grandes gravadoras (TVs, distribuição em grandes lojas, publicidade etc.),
vendeu milhões de discos.
Antes disso, no início da década de 1980, esteve à frente do
Minor Threat, um dos principais expoentes do hardcore — e pai da filosofia
straight-edge. E ainda há quem aponte o Embrace, outra banda de Mackaye nos
anos 80, quando o assunto é a origem do emo.
Mackaye atem-se firme aos preceitos que o tornaram
mundialmente famoso: manter-se à parte do mainstream, não fazer da música um
lucrativo espetáculo alienado de seu público. Desde 2001, quando o Fugazi entrou em um hiato (pelo jeito,
permanente), se apresenta com sua mulher Amy Farina no duo Evens, hoje
com três discos lançados.
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por Daigo Oliva |
Em março de 2007, a dupla fez uma turnê por seis cidades
brasileiras. Alguns dias antes de Ian MacKaye fazer suas malas para o Brasil,
telefonei para sua residência, em Washington D.C., situada a cinco quilômetros
de distância do gabinete na Casa Branca onde George W. Bush ainda depositava
sua bunda suja.
Já ouvi gente dizendo que o Brasil mudou sua vida. É
verdade?
Sim, primeiro porque sou uma pessoa
bastante aberta a experiências. Sou muito afetado pelo mundo. Eu amo a vida e
amo estar vivo. E adoro estar com pessoas que se sentem assim também. A
primeira vez que fui ao Brasil foi em 1993, com L7, no Hollywood Rock. E esta
foi uma viagem muito esquisita, principalmente por causa do ambiente onde eu
estava trabalhando, às voltas com, além do L7, Nirvana, Red Hot Chili Peppers…
Eu estava ali apenas trabalhando como técnico de baixo do L7. Então foi um
jeito muito estranho de conhecer o Brasil. Lembro que assim que chegamos, a
primeira coisa que nos avisaram era para nunca deixarmos o hotel sozinhos.
Chegamos em São Paulo e tivemos uma reunião com a equipe de segurança que nos
disse:“Muito perigoso, não saiam! Nunca, nunca saiam sozinhos!” Assim que a
reunião acabou, saí pela porta dos fundos e fiz sozinho uma caminhada de duas
horas pela cidade de São Paulo. E foi maravilhoso, um lugar maravilhoso para se
caminhar, e não tive problema algum. Aí eu percebi que aquelas pessoas daquela
turnê… Sua perspectiva do Brasil, sua visão do país, foi cuidadosamente moldada
pelos promotores e organizadores do festival. Elas não podiam simplesmente sair
por aí, ficavam em hotéis cinco estrelas, iam de vans para os estádios e todas
as idas e vindas para os aeroportos aconteciam bem cedo e eram cuidadosamente
planejadas. Quando voltei com o Fugazi, em 1994, fizemos questão de fazer a
turnê de carro para conhecer o país. E foi uma experiência realmente incrível
conhecer um país tão indefinível. Na minha concepção, Brasil é o país dos
paradoxos: o mais feio e o mais bonito, o mais rico e o mais pobre, o mais
cruel e o mais alegre. Mas no geral, a experiência me fez sentir muito bem e
feliz. E o fato da música ser uma coisa tão levada a sério e de desempenhar um
papel tão importante na cultura do país é algo muito profundo. E me fez pensar
que a primeira vez que estive aí, com aquela tour com L7, Nirvana e tudo mais,
isso foi meio como nos EUA, as nossas perspectivas foram muito moldadas. Mas a
realidade do mundo é que a vida é cheio de surpresas e alegrias. Então, a
questão é “as pessoas querem mesmo participar disso ou só querem que sua visão
de mundo seja cuidadosamente moldada pelos ‘moldadores’”? Toda turnê é uma
experiência profunda pra mim, mas no caso do Brasil foi particularmente
profundo. Um país tão radical… Não se compara com nenhum lugar do mundo em que
estive. E, sabe, ao mesmo tempo, obviamente, tem tantos problemas nesse país. É
engraçado que na mesma medida que há tanta liberdade no seu país, haja uma burocracia
insana. Lidar com o governo brasileiro, tirar visto, ir às embaixadas, é uma
loucura. Não me leve a mal, eu sei como os americanos são burocráticos também.
Mas é loucura!
Para
você, “música é sagrada, é um meio agregador e uma forma de expressão
que antecede à língua”. Nos shows com The Evens, você toca sentado, fala
um bocado com as pessoas durante a apresentação e promove a interação
entre a banda e a platéia. A idéia disso é reforçar o aspecto
comunicacional da música?
Em
algum grau, sim. Parte do motivo de que eu toco sentado é porque Amy
está sentada atrás da bateria. E nós somos os Evens (os quites). Eu sou
mais conhecido que Amy, é natural que as pessoas prestem mais atenção em
mim, então, se eu estiver de pé pode parecer que ela é só um pano de
fundo, um mero músico de apoio. Conosco estando no mesmo nível, as
pessoas podem perceber visualmente que eu e Amy nos vemos como iguais.
Mas a idéia também tem a ver com o fato de que hoje tenho 45 anos e,
sabe, nesse tipo de musica, rock n roll, rock, punk rock ou o que você
quiser chamar, existe uma espécie de debandada das pessoas mais velhas
deste formato. Quando nós falamos em blues ou jazz ou samba, músicos
mais velhos são levados a serio, mas não no rock. No rock, os caras mais
velhos fingem que ainda são jovens ou partem para outros tipos de
musica, que supostamente seriam mais apropriados para pessoas mais
velhas. E eu acho que o rock é uma forma tão legítima quanto qualquer
outro tipo de musica. Eu o levo tão a serio quanto o samba, o blues, o
jazz ou qualquer outro estilo. Ao invés de passar a agir como um jovem
ou passar fazer algo diferente do rock, algo apropriado para pessoas
mais velhas, por que não apenas envelhecer e continuar fazer sua musica?
Eu pensei que poderia ser interessante levantar esta questão
confrontando visualmente, de novo, a idéia das pessoas de um show de
rock. As pessoas me vêem tocando sentado e logo pensam “ah, é folk
music”. Mas não é folk music, pára com isso! É musica punk, só que sem
uma banda com baixo e duas guitarras. Nos EUA, nós não tocamos em casas
noturnas, não tocamos em bares. Temos nossos próprios PA’s e nos
apresentamos em lugares onde normalmente você não verá bandas. A idéia é
quebrar com a concepção que algumas pessoas têm de música. Porque
música quando é emitida de um jeito particular, pode se tornar um mero
produto da indústria. E na minha cabeça, música é maior e mais antigo
que qualquer tipo de indústria. Então, por que temos que jogar de acordo
com as regras da indústria? Por que a música se tornou um meio de
publicidade, especialmente para a indústria do álcool? Não consigo
entender isso. Por que deveríamos tocar em lugares cuja economia é
baseada em autodestruição? Esse tipo de coisa eu não consigo entender ou
aceitar. Bom, então essa coisa de agregar as pessoas e poder falar com
elas vem da idéia de criar um senso de comunidade. No momento em que
você vai a um show, você fala com outro, você reconhece o outro. Enfim,
música é um ponto de agregação. Existem milhões de razões porque fazemos
coisa do jeito que fazemos. Também é porque simplesmente é o jeito que
funciona para nós. É interessante assim. Eu estava tão entediado
anteriormente… É isso. É tão frustrante para mim estar nos mesmo bares,
nos mesmo tipos de lugares em todo o mundo. Isso te desgasta, porque é a
mesma coisa sempre.
Você
falou dessa coisa de música folk. Apesar de ter alguns elementos do
folk no The Evens, eu não considero a música de vocês como folk, pelo
menos não enquanto gênero musical. Mas enquanto conceito, eu acho que o
Evens é folk, sim.
Sim,
concordo inteiramente com você. Punk é folk. Totalmente. É uma música
feita por pessoas reais, geralmente tem teor político, lida com questões
sociais, uma música viva que lida com questões reais. Mas o folk como
se cristalizou nas cabeças das pessoas, com violões acústicos e tudo
mais, este meio que se estagnou e se tornou repetitivo. Mas o punk é de
fato folk. Assim como o hip hop, se este é o caso.
OK,
mas sobre essa abordagem mais “folk” na música de vocês, por que
escolheram essa direção mais simples, mais calma, menos barulhenta? Você
se cansou do barulho ou algo assim?
O
Fugazi também tinha canções tranqüilas e viajantes. Para mim, não tem
diferença. As pessoas vêm com um papo de que “nossa, eu nunca ouvi você
cantar de um jeito tão sereno!” E, porra, vocês já ouviram “Pink
Frosty”? Ou “I`m so tired”?
“Long division”…
Isso,
exatamente. Pôxa, são canções tão serenas! Isso é parte da vida. Eu não
estou interessado em apenas uma temperatura o tempo todo. Se é sempre
quente, você não sente mais.
Tá bom. Mas para mim, num sentido geral, The Evens é muito mais tranqüilo do que o Fugazi.
E
talvez seja mesmo. Mas a coisa é: somos nós dois (ele e Amy Farina) e
esta é a música que nós fazemos e não a música que o Fugazi fazia. Não
dá para comparar as duas bandas. Eu era um membro de um grupo de quatro
pessoas no Fugazi. E agora sou um membro de uma dupla no Evens. E esta é
a música que nós fazemos. As pessoas perguntam “por que você está
fazendo músicas tão calmas?” E daí? Quem se importa? É a música que eu estou
fazendo (risos). Mas parte disso é porque as pessoas sempre me dizem
“você é muito furioso e cheio de raiva”. E isso não é verdade. Eu nunca
fui assim tão cheio de raiva. Acho que a pessoas supõem isso porque o
Fugazi tinha algumas músicas que eram tocadas num volume bem mais alto e
eu me envolvia com isso de verdade. Mas é apenas uma realidade física.
Se você está em cima do palco, pulando por todos os lados segurando uma
guitarra, sob uma temperatura de quase 40 graus, e a música é
alta — tudo isso é de um excesso tamanho — e você terá que gritar. Tudo
isso te faz trabalhar com as suas paixões. Mas essa idéia de que no
Fugazi eu era “cheio de raiva” não é acurada. Eu sou cheio de amor. Eu
sempre fui cheio de amor. Eu acho que a percepção das pessoas sobre mim
é, além de eu ser apaixonado pelas coisas, é por causa do modo como a
música é emitida, por causa de como as pessoas ouvem as coisas.
Mas
também há outros aspectos do volume pelos quais eu passei a me
interessar. Por exemplo, os momentos mais poderosos que aconteceram na
minha vida ocorreram quase no silêncio. É óbvio que o volume pode ser
poderoso, mas não é necessariamente a coisa mais poderosa de todas. Se
você caminha até um quarto e lá dentro tem uma pessoa em pé gritando na
sua cara, você pode parar na porta. Mas se alguém lhe fala calmamente,
isso pode atrair sua atenção e te fazer se aproximar. Eu quero que as
pessoas se aproximem, não que se afastem. É esta a idéia, mas não
significa que sou sempre calmo. No Evens, talvez eu possa gritar. Quem
sabe?
Você acha que músicas menos barulhentas e tocadas num volume mais baixo são veículos melhores para comunicar idéias?
Eu
acho que é um tipo diferente de veículo. Mas, sim, pode ser melhor em
termos da clareza das palavras. Digo, me deixa feliz quando as pessoas
me dizem que conseguem entender o que eu canto. Eu e Amy trabalhamos
muito duro nas nossas letras, e durante todos estes anos em minha vida
eu tenho trabalhado muito, muito duro nas minhas letras. E é
interessante para mim ver como as pessoas têm falado sobre as minhas
letras. Eu sei que pessoas falam sobre o jeito que eu monto minhas
bandas, o som da minha música, o aspecto político disso e a postura, e
como isso as afetam e as mudam… Mas quanto às letras, é muito raro as
pessoas chegarem até a mim e dizer: “ah, eu estava ouvindo aquela canção
e essa frase específica realmente me afetou”. É frustrante para mim
porque eu dou muito duro para escrever minhas letras, e quero mesmo que
as pessoas se envolvam com minhas letras. Então, bom, nesse ponto, é um
bom meio de tornar as letras mais claras na música.
Outra
coisa é que nós dois cantamos, e eu amo a textura criada por nossas
duas vozes juntas. Se a musica fosse super alta e tivéssemos que berrar,
você não ouviria essas nuances. Nós somos uma banda vocal. No Fugazi,
Guy, eu, Joe e Brendan, nós todos tínhamos approaches diferentes e a
combinação disso gerava ritmos e melodias bastante intricados. E, várias
vezes, quando estávamos compondo e tentávamos cantar era bem difícil
porque qualquer possível melodia era meio que encoberta pela música,
sabe? Não éramos uma banda vocal.
Vocês tinham que gritar.
Não,
não era exatamente sobre gritar, mas era mais difícil, as vozes tinham
um papel diferente no Fugazi. O jeito que trabalhávamos musicalmente
tornava as composições muito completas. Era se como todos os sabores já
estivessem lá. Então, na hora de colocar a vozes… Já com o Evens, se
você ouvir as músicas sem as vozes, elas vão soar como uma moldura a ser
preenchida.
No
Evens, você tem escrito algumas letras bem mais diretas. No Fugazi, a
coisa era um pouco mais abstrata, não tão direta. O que te fez escrever
assim?
Primeiro,
eu não acho que eu tenho escrito nada mais direto do que no Minor
Threat. E eu tenho que te dizer: eu não comparo as coisas como você
compara. Não você, mas é típico falar “agora você faz assim, antes você
fazia de tal jeito”. Se pensarmos nas letras do Fugazi, algumas delas
são extremamente diretas ao ponto. Como “Merchandise”, é direta para
caralho. “Suggestion” é direta pra porra. Mesmo no último disco,
“Cashout”, por exemplo, é bem direta e política pra caralho! Mas tudo é
político…
E não eu
fico pensando no que já fiz em termos de letras, (isso que escrevo
agora) é simplesmente o que eu sou hoje. Tenho 45 anos de idade, comecei
escrever com 17, tem quase 30 anos que escrevo. Simplesmente é o que eu
tenho feito por agora, eu não fico pensando por que eu estou fazendo
isso agora. Só penso sobre o que está na minha frente: o meu trabalho.
Mas
o que eu digo é: alguma coisa deve ter te provocado a escrever de uma
forma mais direta. A realidade do mundo hoje ou qualquer outra coisa…
Mas aí depende de que música você está falando. Como “Shelter Two”, você acha que a letra desta música é bem direta e explícita?
Não, não acho.
Pois
é, eu escrevi essa. Isso é interessante. Por exemplo, uma música que
pode soar bem direta como “Dinner With The President”, todos pensam que é
sobre George Bush. E não é sobre isso!
Estou vendo que você gosta de complicar um pouco as coisas… (risos)
(Risos)
Não, não é isso. Vou lhe dar uma idéia de como penso minhas letras: OK,
“Dinner With The President”… (pigarro) Sabe Hollywood? Uma vez por ano é
realizada a cerimônia de entrega do Oscar, certo? E tudo mundo diz “ó
meu deus, o Oscar! Que honra!” O valor do Oscar é diretamente ligado ao
modo como a pessoa se relaciona com Hollywood. Se essa pessoa percebe
que Hollywood é uma bela merda, uma indústria nojenta, espiritualmente
danosa para o mundo, que gera desperdícios absurdos e deixa as pessoas
envolvidas nisso enlouquecidas com fama e poder… Se você está pouco se
fodendo para Hollywood, o Oscar não significa nada. E,
em Washington DC, ir a um jantar na Casa Branca é considerado uma
grandessíssima honra. Mas se você reconhece que o governo federal é
também uma indústria nojenta, cheia de segredos escusos e gente
enlouquecida com o poder, então essa honra não tem valor nenhum. Está
vendo que a coisa é um pouquinho mais complicada? As pessoas acham que
as letras são bem diretas ao ponto, mas a coisa é um pouco mais sutil. É
claro que entendo quando as pessoas lêem essa letra e pensam logo de
cara: “Ah, esta é uma música sobre George Bush”. E talvez eu tenha mesmo
sido inspirado por ele… Claro que eu acho que George Bush é um
criminoso, claro que eu acho! Claro que eu acho que sua administração
tem causado um dano terrível ao mundo! Seres humanos têm sido brutais
uns com os outros desde o início dos tempos, até onde eu sei. E
repetidamente as pessoas que estão no poder, governos de países do mundo
inteiro, em algum período da história passam a se comportar de maneira
absolutamente criminosa. Por exemplo, o que está acontecendo no Iraque
neste momento não é uma guerra, não existem sequer dois lados ali, não
passa de um crime militar, não passam de assassinatos. Este
país (EUA) passa por um momento do qual não consegue sair. É óbvio que
eu estou puto com George Bush. Mas mais do que achar que George Bush é
um cara mau, eu estou puto com o fato de que ele tem um séqüito o
seguindo. E essas pessoas não têm levado em consideração o valor da vida
humana, elas simplesmente não pensam nisso. Eu sei que você, vivendo no
Brasil… Bom, eu sei que sua história é repleta desse mesmo tipo de
merda.
Ou até mesmo pior…
Exato.
Então, bem, eu tenho certeza que no Brasil existem alguns tipos de
honra como jantar com o presidente. E, porra, quem se importa?! Se você
não reconhece esse governo como algo de fato legítimo e que valha à
pena, então isso não significa nada para você.
Então,
meu ponto é que, na maioria das vezes, eu escrevo sobre o que eu penso e
o que sinto, mas não é tão simples assim. Às vezes, eu tento ser bem
direto ao ponto porque eu quero que as pessoas se envolvam, não quero
que as pessoas achem que estou tentando confundi-las. No início do Minor
Threat, eu dei às pessoas algumas idéias bem simples. Tentei ser o mais
direto possível. O que eu descobri é que sendo tão direto, dando às
pessoas idéias que, essencialmente, parecem completas, elas podem tomar
essas idéias e usá-las como bem entenderem. Por exemplo, uma música como
“Straight Edge”, que é uma música sobre auto-definição e
autodeterminação, sobre viver a vida como você acha que é melhor para
você, sobre rejeitar pressão de grupo e não ser forçado a fazer coisas
que você não quer fazer, esta é uma idéia completa que pode ser usada
por fundamentalistas para promover intolerância. Ou fazer pessoas
obedecerem alguns tipos de tipo de estruturas. E isso nunca, nunca,
nunca foi minha intenção.
Eu
já usei essa analogia várias vezes antes, mas o que eu percebi é que,
escrevendo mensagens extremamente diretas nas minhas músicas, eu posso
ter criado “uniformes” que qualquer um pode usar. E uma vez o sujeito o
veste, sejam lá quais forem suas intenções, este “uniforme” torna-se sua
missão. Então, mais tarde, me dei conta de que ao invés de fazer
“uniformes”, eu deveria “costurar” idéias do mesmo modo como se costura
tecidos e tramas mais complexas para que as pessoas se envolvessem com
isso, para elas construírem algo de positivo a partir disso.
Posso
estar errado, mas a letras do Evens, de um modo geral, me passam uma
sensação de que o mundo parece muito perdido — e consigo detectar até
uma pontinha de desesperança…
Nas minhas letras?
Sim.
Não!
(risos)
É o que eu sinto às vezes, mas deixe-me concluir: mesmo assim, existe
um apelo, explícito ou não, para a reconstrução do senso de
coletividade…
Sim, mas tenho que te dizer: minhas letras são muito positivas!
Sim, mas tem alguma coisa de tristeza entre as camadas. Mesmo porque é um mundo triste às vezes.
Claro,
parte dele é. Mas o mundo é alegre também. Mas isso é interessante.
Numa música como “Shelter Two”, tem um refrão: “It’s all downhill from
here” (É só ladeira abaixo a partir daqui). Não sei como é em português,
mas esta frase tem uma conotação negativa no inglês. Mas eu e Amy
estávamos pensando que quando nós cantamos “É só ladeira abaixo a partir
daqui” significa que estamos num lugar elevado. Deve ser um lugar muito
bom. Então, o jeito que vemos isso é que é uma música sobre eu e Amy
nos encontrando e nos dando conta que daqui de cima é só ladeira abaixo.
Estarmos juntos é tão bom, nos coloca num lugar tão elevado… Tem uma
linha que diz “we keep on climbing and never find the top” (nós
continuamos a escalar e nunca achamos o topo), ou seja, só fica cada vez
melhor. A verdade é que eu jogo bastante com as palavras.
Eu estou vendo. As letras parecem não ser tão simples quanto eu estava pensando. Acho que te subestimei um pouco…
Não,
não, a coisa trapaceia um pouco mesmo. Várias partes das minhas músicas
são meio tapeadoras. Nos EUA, sempre vem alguém até mim dizendo “cara,
você é tão pra baixo…” Não! Se envolva com a música. Não leia o livro
apenas, pense sobre ele. Não ouça a música apenas, se envolva, seja
parte da música, deixe que as palavras façam efeito sobre você. Não
entre nessa de “se é isto que está sendo dito, é isso que significa”.
Não seja tão rápido. Tente entender o que a voz está dizendo naquele
tom. Acho que indo tocar no Brasil, as pessoas vão poder de fato nos
ver, e quando você assiste à performance de alguém é bem mais fácil ter
uma idéia do que há por trás da música.
Mas,
sim, eu canto mesmo sobre coisas que sinto e/ou com as quais me
preocupo. Parte disso tem a ver com o fato de que durante a última
década havia pouquíssimas bandas que cantavam sobre alguma coisa. Elas
realmente mascaravam a coisa toda ou escondiam sentimentos por trás
referências imagéticas esquisitas. Aí você tinha um monte de músicas
sobre peças de carro e coisas do gênero, gente cantando sobre motores
sendo ligados. (risos) Acho que nesse período as pessoas se tornaram
muito retraídas para cantar sobre coisas com as quais elas se
importavam. Na cultura americana, pelo menos, tornou-se bem não-cool se
importar com algo. É o pânico de ser “politicamente correto”. O que é
extremamente bizarro para mim. É errado ser correto politicamente
falando? (risos)
É,
as pessoas tornaram-se cada vez mais cínicas e se sentem ridículas
quando se preocupam com algo maior do que suas vidas particulares…
Na
minha opinião, isso tem a ver com a “Revolução Reagan”, com as
operações psicológicas dessa “Revolução Reagan”, que estimulou o cinismo
e a fazer piada com as pessoas que se importam. E todo mundo se tornou
irônico, o que é bem cômodo. Ironia se tornou tão habitual nesta
cultura…
Bem, mas eu não acho que seja exclusivamente relacionado a Reagan, é algo relacionado à falha do Projeto da Modernidade, sabe?
Hmmm…
Quando disse “Revolução Reagan” eu não quis dizer que… Bom, o que eu
sei é que quando Reagan assumiu o cargo de presidente, ele começou a
bater forte no ativismo político de qualquer espécie. Porque, lembre-se,
nos 70, a esquerda era um pouco mais forte, e havia Jimmy Carter. E
Carter dizia: “Use um suéter!” Era sensacional! Um presidente dos
Estados Unidos da América dizendo à população do país: “Desligue essa
porra de aquecedor e use um suéter! Poupe energia!” Era inacreditável
para mim um presidente americano dizer uma coisa daquela. Então, quando
Reagan assumiu a Casa Branca, o lema era: “Ligue seus aquecedores, vão
às compras, e não se preocupem, os EUA são o nº1 do mundo. Vocês não têm
que se preocupar em serem responsáveis.” E quando eu disse “Revolução
Reagan”, não estava me referindo a Ronald Reagan, mas a um todo, todo o
levante da direita americana. E ele foi claramente bem sucedido. Veja só
o que está acontecendo agora!
Você
acha que a administração de Bush é, de alguma forma, uma volta a esses
tempos? Eu tenho falado com gente como Mission of Burma, Henry Rollins,
Mike Watt, Gary Panter, e todos eles me disseram que sentem que,
política e moralmente, os EUA estão voltando aos anos 80, ou ainda pior,
aos anos 50.
Eu
acho que as sociedades se movem em círculos. E, sim, eu sou obrigado a
acreditar que estamos presenciando uma forte guinada à direita. Não dá
para ir mais à direita que isso. Uma hora vamos ter que voltar um pouco
para esquerda, uma hora as pessoas vão despertar.
Pelo menos a maioria do Congresso americano não é mais republicana.
Exatamente.
Acho que a população americana está começando a reconhecer que ela tem
que dar um fim a esse seu sono profundo, a reconhecer que crimes estão
acontecendo. Parece que estão começando a sentir a uma pontada de dor.
Isso, no geral, é só uma sensação minha. Mas parece que as pessoas estão
começando a sentir que terão que ser mais responsáveis. E, bom, se você
sente alguma coisa, já é o primeiro passo para se importar com algo. Se você
não sente, você não se importa com nada.
Sabe,
eu sou de esquerda, eu acho que as pessoas têm que se importar. Eu acho
que deveríamos ser politicamente corretos. Pense nessas palavras, no
que isso significa: é sobre ser correto politicamente, não incorreto.
Nós temos que reclamar de volta a língua, retomá-la dos republicanos e
da direita. Eles definitivamente dominaram a língua e usaram a seu bel
prazer. E a população americana, por causa desse seu sono profundo e da
mídia, e em virtude de sua isolação e falta de senso coletivo, se rendeu
a essas idéias. Mas eu acho que, coletivamente, as pessoas começaram a
se dar conta de que as coisas estão fodidas.
Bom,
já que falamos tanto sobre a era Reagan, sou obrigado a falar dessa
nostalgia em volta do punk hardcore oitentista que tem sido aquecida por
alguns livros e documentários lançados recentemente. Vi você falando,
no programa de Ian Svenonius, Soft Focus,
que não está interessando em ler e ver esses livros e documentários
porque ler o que outros têm a dizer sobre o que você fez pode interferir
no que você está fazendo agora. Isso aí tem a ver com o fato de que
enquanto para alguns o punk rock foi um fenômeno passageiro, você sempre
deixa claro que você ainda faz música punk.
Sim! Claro!
Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que existe uma continuidade do conceito punk?
Porque
sabe quando você freqüenta o ensino médio e aí você se forma, e então
esse período da sua vida fica para sempre no passado? Na sua cabeça, o
ensino médio foi aquilo lá que você fez naquele tempo e naquele lugar.
Algumas pessoas encaram o punk rock assim. Elas se graduam em punk rock.
E uma vez graduadas, pronto, o punk está morto. Mas eu não penso em
vida em termos de graduação, é tudo uma linha só para mim. Eu nunca
deixei de ser um punk rocker. E mesmo quando eu descobri o punk, em
1979, foi muito importante para mim, mas não foi como “pôxa, estão aí
algumas idéias nas quais nunca tinha pensando antes”. Foi mais como “Ah!
Aqui está o lugar onde deveria estar!”.
As pessoas falam: “o punk está morto”, e eu digo: “não, o
seu punk
está morto”. O punk não morre. Aqui vai uma imagem para você: você está
sentado na beira de um rio, vendo o fluxo, e percebe que num ponto do
seu curso a água está ficando agitada porque está passando por cima de
uma pedra. O rio é calmo, mas neste ponto a água borbulha e esguicha.
Isto é punk rock. As pessoas podem prestar atenção na pedra por algum
tempo e depois simplesmente seguir o fluxo. Para elas, a rocha ficou
para trás, mas ela sempre estará ali, na contramão do rio. Enquanto
houver mainstream, haverá underground. Enquanto o houver tédio e
inércia, e a tentativa de convencer a garotada que este é o jeito como
as coisas são, ela vai dizer: “nós rejeitamos isso”. A coisa pode mudar
de nome, mas nunca morre.
Olha
só, eu vi Leonard Cohen tocar uma vez aqui em Washington DC. Eu adoro
Leonard Cohen. Sua filha é fã de Fugazi e ela nos convidou para o show. E
no palco, Leonard Cohen dedicou uma música para o Fugazi.
Sério? Caralho! Você viu isso?
Sim, eu estava lá! Eu levei minha mãe comigo!
Você deve ter ficado doidão.
Ah,
sim, eu fiquei maluco! (risos) Bom, mas ele disse do palco: “Fugazi é
uma banda que trava uma batalha num mundo melhor descrito como fodido. E
eu os vejo claramente como um elo da corrente da qual sou parte”. E,
bom, é isso aí!
Cacete… E quantos anos ele tem? 70 e alguma coisa?
Isso
foi há uns 10 anos, então ele devia ter uns 60 e alguma coisa,
caminhando para os 70… Mas o ponto é que ele vê os elos dessa corrente. É
como uma linha cronológica: um elo, depois outro elo, outro elo, outro
elo, mais um elo… E eu vejo da mesma forma.
Mas
voltando àquela coisa da relação das pessoas com a história do punk
rock, isso vem de querer ser parte da história. Eu não estou nem aí pra
isso, eu quero é ser parte do presente.
Mas você não acha que esses livros e documentários podem ser úteis para as novas gerações?
Eu
não disse que eles não deveriam existir. Tudo que eu disse é que eu não
estou interessado. Claro que as pessoas devem escrever sobre isso. Eu
acho importante.
Mas você nem quer saber disso…
Eu
não quero ler sobre a minha própria história porque será escrita da
maneira errada. Quem pode escrever a sua história de um jeito certo?
Tipo, eu posso escrever um livro sobre a sua carreira e sua biografia
corretamente? Eu consigo escrever um livro tão certo sobre você que você
pode lê-lo sem problemas? Sem chance alguma!
Em
alguns momentos, eu me deparei com livros e comentários de algumas
pessoas sobre a minha história e falavam por que eu fiz isso ou aquilo… E
eram tão errados! Era inacreditável! Uma vez eu li uma coisa sobre uma
música que eu escrevi no Minor Threat e dizia lá que eu estava tão puto
com a política de Reagan em El Salvador… E, porra, era pura bobagem!
Essa música específica foi escrita porque eu estava chateado, porque eu
estava puto pra caralho com alguns amigos, porque tinha alguns problemas
de relacionamento com uma pessoa, ficava nervoso só de pensar nessa
pessoa… Então, sejam quais forem suas intenções, o escritor sempre vai
se colocar no meio do assunto. A sua abordagem da minha história vai ser
errada. Eu não digo errado para todo mundo, mas para mim. Eu não posso
ler isso, seria depressivo. E se eu lesse, talvez eu deixaria de fazer
as minhas coisas. E não quero parar de fazer as minhas coisas.
Beleza,
mas por que você contribui com esse tipo de coisa então? Você está por
todos os lados quando o assunto é o registro da história do hardcore.
Eu
acho que dou essas entrevistas porque é importante alguém falar sobre
coisas positivas. Porque, nesses registros, tem tantas pessoas que estão
tão despregadas da sua própria história que quando elas falam sobre
isso só enfatizam o aspecto sensacionalista da coisa: “era tão
violento”, “éramos tão malvados e loucos”, “isso era negativo”, “aquilo
era tão diabólico”. Todos os livros e filmes dos quais me falaram sempre
enfatizam o quão fodido, perigoso e violento era o hardcore durante os
anos 80. Mas, para mim, a história nunca foi sobre a violência. A
história é que, apesar da violência, apesar da insanidade, apesar dos
obstáculos e dificuldades, havia uma paixão pela música e por aquela
comunidade e isso era o que nos mantinha produzindo. Esta é a história.
Você conhece Michael Azerrad?
Que escreveu “Our Band Could Be Your Life”, certo?
Isso.
Eu não li o livro dele, mas eu o conheço pessoalmente. Uma vez, eu fui
vê-lo fazer uma leitura de seu livro. Ele leu umas quatro ou cinco
coisas diferentes do livro. Todas elas eram sobre: “oh, alguém jogou um
saco cheio de vômito no palco”, “alguém bateu em outrem”, “um fulano
sofreu uma overdose”… Depois da leitura, nós nos cumprimentamos e eu
disse para ele: “Eu estou chocado de verdade com a seleção que fez do
seu livro. Porque tudo que você falou está relacionado ao
sensacionalismo. Tudo é negativo e violento. Você falou de destruição,
mas nós éramos construtores! Nós estávamos criando algo.” Eu não me
sentava numa porra de van por dias e dias, dirigindo de costa a costa,
porque eu queria quebrar as coisas, eu queria criar coisas. Mas este sou
eu. E espero que quando eu dou essas entrevistas, as pessoas possam
comparar as coisas que eu falo com as que os outros entrevistados falam e
perceber que eu vejo o punk rock como uma coisa profundamente positiva e
construtiva. Eu nunca me interessei pelo aspecto nilista disso. Eu
sempre pensei isso como música, como uma comunidade, e isso é bom, não
ruim.
Sinto muito,
mas é frustrante, para mim, ter dividido quartos e palcos com pessoas
que eram cheias até o estômago de violência, que não perdiam a
oportunidade de espancar alguém. É triste ter que ter dividido palcos e
espaços com pessoas que tinham demônios tão internos que só podiam
mitigá-los por meio de drogas e suicídio. Sinto muito ter visto pessoas
tão confusas a respeito de sua própria sexualidade que acabavam
abusando, manipulando ou tirando vantagem de outras. Estas são coisas
frustrantes, mas, por outro lado, a vida é assim, o mundo em que vivemos
é assim. No meu ponto de vista, o que era importante é que éramos
garotos trabalhando juntos, montado suas próprias bandas, fazendo suas
próprias músicas, organizando seus próprios shows e turnês, fazendo
todas essas coisas completamente à parte da indústria. A indústria
reclamava para ela a propriedade e o direito a todo tipo de música e nós
dizíamos: “Vai se foder! Você não é dona de tudo! Você não pode nos
ter!”
É, isso que você está dizendo faz muito sentido, porque no final daquele livro “American Hardcore”,
de Steven Blush, há um capítulo que se dedica a listar depoimentos que
explicam porque o punk acabou. E você, um cara extremamente presente no
livro, não consta nesse capítulo.
Pois é! Não tem. E no filme (
American Hardcore, de Steven Blush e Paul Rachman),
ele me fez a mesma pergunta novamente e eu lhe falei: “Eu não deixei o
hardcore, o hardcore é que me deixou. No meu ponto vista, eu nunca
deixei de ser um punk rocker, eu nunca deixei de ser hardcore. Sou mais
hardcore do que antes. O problema é que a palavra foi associada a uma
imagem bem particular”. Deixe-me te contar uma coisa: eu acabo de voltar
de uma turnê de um mês na Austrália, onde eu e Amy dirigimos todos os
dias, carregamos e montamos nosso próprio equipamento, tocamos em
lugares onde nenhuma banda toca. A coisa toda foi muito desafiadora.
Isso foi hardcore para caralho!. Nós não maquiamos nossa música com
volume, figurinos, luzes ou cenário. Nós simplesmente tocamos
praticamente no chão a uma distância de um metro da platéia. Dá para ser
mais hardcore que isso?
Quase a mesma coisa nos início dos anos 80…
Exatamente
a mesma coisa! Nós estávamos levando a música até as pessoas e tentando
nos fazer entender. Minor Threat não era alto, nós éramos rápidos. Mas
nada se compara com o sistema de PA’s que hoje vemos em shows. É insano o
tamanho dos PA’s de hoje! E o Minor Threat tocava com caixinhas! Claro
que éramos furiosos e rápidos e tudo mais, mas tocávamos em porões das
casas das pessoas! Hoje, nós vemos por aí shows para 40 mil pessoas e os
PA’s têm o tamanho de containers de navio…
Você
precisa usar protetores auriculares para ouvir música? Imagine você
comendo um prato qualquer, e a comida é tão apimentada que você tem usar
uma espécie de aparato de borracha na sua boca. Para mim, isto é ouvir
música com protetores auriculares. Isso é loucura! Não faz o menor
sentido! Quando você coloca protetores auriculares no seu ouvido, você
filtra os mais belos tipos de texturas sonoras e nuances. Tudo se torna
um zumbindo só. Obviamente, você usa isso porque está tentando salvar a
sua audição. Mas, porra, por que tão alto então? As pessoas,
confusamente, equacionam poder e volume, pensam que são a mesma coisa. E
não são a mesma coisa.
É, o volume no rock às vezes corre o risco de ser uma coisa meio fálica…
Sim,
é como em Mágico de Oz. Ele está atrás das cortinas, emitindo uma voz
altíssima, imensa, soprando tudo a sua frente! Aquilo é o rock ‘n’ roll,
baby!
(risos)
Você
sempre diz que o melhor jeito de evitar a super exploração econômica de
majors e o mainstream não é destruindo-os, mas criando um novo ambiente
artístico independente. A Internet está mudando as regras da indústria
musical. Há quem diga que ela está expandindo a ética d.i.y. (do it
yourself, faça você mesmo) do punk e redemocratizando a música. Você
acha que as coisas estão realmente mudando nesse sentido?
Hmmm…
Talvez a coisa não seja tão revolucionária assim. Mas idéia da música
poder escoar globalmente é bem interessante. Por exemplo, muitos de
nossos discos não chegam até o Brasil e agora qualquer um com acesso a
um computador pode comprá-lo ou pegá-lo de graça. É claro que, no
momento, uma parte importante dessa equação é ter acesso a um
computador. Mas, sim, no mundo ocidental, onde muitas pessoas têm acesso
a um computador, está acontecendo algum tipo de democratização. Mas
ainda é bem cedo para constatar qualquer coisa.
De
qualquer forma, existem aplicações excelentes referentes a
computadores. É maravilhoso para mim a idéia de que se eu estou
interessado em um determinado tipo de música, eu posso encontrá-lo no
computador. Eu não acho que soa bem, mas pelo menos eu posso ouvir e ter
uma idéia de como é. Eu não tenho um Ipod, e, pessoalmente, não escuto
muita música digital. Eu ouço música em vinil, cds ou em fitas. Este sou
eu. Mas é ótimo isso. Na Austrália e Nova Zelândia, eu perguntava às
pessoas: “quantos de vocês baixaram nossos discos?” E um monte de
pessoas tinha feito isso. E de graça! Eu dizia: “obrigado!” É para isso
que fazemos música, para as pessoas ouvirem.
O
simples fato de você me perguntar sobre o The Evens já me deixa feliz.
Significa que nossa música chegou aí. Este é o ponto, é por isso que
fazemos música. Eu não faço música para fazer grana. (risos) Eu faço
para que as pessoas se envolvam com a minha música. O fato de ir ao
Brasil e as pessoas daí terem uma idéia de como soamos me deixa muito
feliz.
Nesse aspecto,
internet é um excelente instrumento. E eu não me importo com downloads
gratuitos. Para mim, está legal. É claro que as pessoas devem apoiar os
artistas, dar suporte ao trabalho deles e não esperar que Bill Gates
faça isso. Porque fazer música não é de graça. Estamos indo ao Brasil e
isso não é de graça.
Mas,
bem, acho que vai ser interessante ver o que vai acontecer. Primeiro é
necessário que todos tenham acesso a computadores. Aí, sim, poderemos
falar sobre democratização.
Uma
coisa que é louca sobre isso é que a internet é vastíssima. É de longe a
maior loja de discos do mundo. Por onde começar? Eu estava aqui me
lembrando que quando eu comecei a me apaixonar por punk rock foi numa
pequena lojinha de discos… E, pense só nisso: eu e você estamos aqui
falando por, sei lá, quase uma hora, e enquanto nós falamos, no resto do
mundo, foi criada música suficiente para ouvirmos pelo resto de nossas
vidas. Então, está tudo lá fora. Sempre esteve, mesmo antes da internet.
E, sinceramente, eu realmente não sei quantas opções a mais eu preciso.
Se uma música me parece interessante, vou atrás dela, faço uma pequena
pesquisa e procuro comprar os discos, se ela me diz alguma coisa. Mas
ter tudo em termos de música, ter toda a música do mundo disponível no
meu computador… Eu não dou a mínima pra isso. Isso é loucura.
Vou
te dizer a última coisa sobre internet: se a internet de fato destruir a
indústria fonográfica um dia e devolver a música ao ar, será como ver a
União Soviética ruir. E ficarei mais do que satisfeito em ver minha
pequena gravadora ruir junto. Desde o advento da energia elétrica, a
indústria da música tem sido um imenso monopólio. Antes disso, a música
estava no ar, não pertencia a ninguém, não havia como vendê-la. Óbvio
que você pagava para ver alguém tocando, pagava por uma partitura, mas a
música em si era de graça. E de mais ou menos uns 100 anos para cá, a
indústria construiu um monopólio completamente totalizante da música.
Mas se a internet conseguir falir todo o sistema da indústria da música,
está ótimo para mim, que a Dischord vá pro ralo junto. É mais
importante que música esteja nas mãos das pessoas. É difícil para eu
entender o pânico em torno disso. Se os músicos arrumarem um jeito de
conseguir dinheiro, está tudo bem. E não há porque temer isso, músicos
sempre arranjaram um jeito de serem pagos.
30/03/2007
por Sávio Vilela
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