quarta-feira, 10 de outubro de 2018

“se você quer ter uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando em um rosto humano – para sempre”.

Uma revelação reencontrar Napoleão, Bola de Neve, Sansão, Garganta e toda a fauna de “A Revolução dos Bichos”, depois de quase quarenta anos. Como o tempo passa rápido. Como mudamos. Como não mudamos.

E como as fábulas têm esse poder imperioso, sobrenatural de permanecer eternas. É o que faz das fábulas, fábulas: as mais permanentes histórias sobre a natureza humana. Que, aprendemos lendo os antigos e os contemporâneos, não muda.

É tradição nas mais diferentes culturas botar as mais humanas verdades nas bocas de animais. Era uma maneira de dizer a verdade com total liberdade, pra gente lida e inculta, pra todas as idades.
Mas “A Revolução dos Bichos” é uma fábula diferente. Porque é um conto de fadas – o subtítulo original é exatamente esse, “A Fairy Story”. Também é quase um documentário. E, incrível, tão vital hoje quanto em 1945, quando foi publicado.

Continua inspiradora e provocativa a história dos bichos que se revoltam contra o dono da Granja do Solar. Estabelecem no sítio uma nova sociedade, com novas regras, onde todos são iguais. E ao final descobrem que alguns animais são mais iguais que os outros.

O livro voltou às listas de mais vendidos nos últimos anos. As escolas estão dando “A Revolução dos Bichos” para os jovens lerem. Eu mesmo comprei, e ao ver meu filho com o livro debaixo do braço, o tio dele cuspiu fogo, “isso é propaganda da direita”. Imagine se ele soubesse que é a tradução de Heitor Aquino Ferreira, secretário de Golbery, Geisel e Figueiredo.

“A Revolução dos Bichos” foi escrito no auge da Segunda Guerra, quando União Soviética, Reino Unido e EUA eram aliados contra o eixo. Londres estava sendo bombardeada. O manuscrito foi salvo das ruínas da casa de Orwell. Foi dificílimo arrumar editor, inicialmente porque Stálin era aliado, e depois porque o livro era muito à direita, ou muito à esquerda, ou muito irônico, ou “pra criança”. Era o livro certo na hora errada. 

CONTRA OS MESSIAS

É verdade que o livro tem sido usado para bater na União Soviética desde seu lançamento. Justo, porque para isso foi concebido por George Orwell.

Orwell considerava o stalinismo quase tão destrutivo quanto o nazismo, e parentes próximos. Sua crítica à URSS era pela esquerda, não pela direita. “Para reviver o movimento socialista”, explicou, “eu me convenci de que é essencial a destruição do mito soviético”.

Uma visita cuidadosa à fazenda defende para sempre o leitor de empulhações salvacionistas. Venham de onde vierem no espectro ideológico. Foi a primeira vez que Orwell, em suas palavras, tentou “fundir propósito artístico e propósito político em um todo.”

É o que tenta fazer Roger Waters. Na minha geração, muitos chegaram a Orwell pelo Pink Floyd. Animals, o álbum, é inteiramente inspirado pela Revolução dos Bichos. The Wall, um libelo anti-totalitário, foi o disco que me iniciou nas possibilidades contestatórias do rock, lá em 1979. Roger, autor das letras de ambos, só ficou mais explícito com a idade.

Em turnê pelo mundo, divide a humanidade em “Us” and “Them”. Rock de verdade é assim. Rock é resistência. O mundo adolescente é claramente demarcado, nós contra eles, e assim deve ser. Tem uso na vida adulta também, como vimos no show em São Paulo.

Waters bateu sem dó em Trump e poderosos variados. Colocou no telão mensagens listando neofascistas dos cinco continentes – aqui, Jair Bolsonaro. Chutou o balde usando máscara de porco, e mostrando primeiro um cartaz escrito “Pigs Rule The World”, e em seguida outro com “Fuck The Pigs”.

Sua militância gerou grita a favor e contra no estádio lotado em São Paulo. Mais a favor que contra, especialmente quando colocou um #Elenão no telão. A maioria das pessoas que pagam pra ver Roger Waters conhecem sua obra e leram suas letras. Mas é surreal perceber que fãs do movimento Escola Sem Partido estão cantando “Another Brick In The Wall” ao seu lado. 

CUIDADO COM AS UTOPIAS

Se passaram quatro décadas entre meu primeiro encontro com The Wall e o show de Roger Waters, entre minhas duas leituras de A Revolução dos Bichos. O tempo força a gente a abandonar ilusões queridas e enterrar certezas reconfortantes.

Nos meus 15 anos, “A Revolução dos Bichos” era um alerta claro, mas generalista, contra maquinações messiânicas. Era impossível para mim transferir esse alerta para, por exemplo, a Nicarágua, que lutava contra um ditador cruento, Somoza.

Hoje não é surpresa – mas segue sendo doloroso – assistir o líder da resistência a Somoza, Daniel Ortega, se revelando só outro ditadorzinho caribenho. Exatamente como cantou a bola Orwell. Os rebeldes são mais admiráveis quando não vencem, o que, aliás, é uma das razões porque o rock é tão sedutor.

Este ano, revisitando a Granja do Solar, eu sabia até demais do que se tratava. Por exemplo, que os protagonistas e acontecimentos eram diretamente decalcados da revolução soviética e da ascenção de Stálin. O velho Major, que inspira a revolta dos bichos, é Karl Marx. Os porcos são os revolucionários; Napoleão é Stálin, Bola-de-Neve é Trotsky. Os cavalos são a classe trabalhadora russa, estóica, explorada além do limite. Moisés, o corvo, representa a Igreja Ortodoxa Russa, sempre contando histórias furadas sobre o reino encantado da Montanha de Açúcar.

Nesses anos aprendi o que Stálin aprontou na URSS, matando milhões, inclusive os mais próximos. E que Orwell e as forças antifascistas, inclusive de esquerda, passaram o diabo na mão dos stalinistas, durante a Guerra Civil Espanhola. Está lá em suas memórias da resistência a Franco, “Homenagem a Catalunha”, que inspirou um bonito filme de Ken Loach, “Terra e Liberdade”.

Para uma leitura ainda mais proveitosa de “A Revolução dos Bichos”, leia antes “Why Orwell Matters”, de Christopher Hitchens, aqui “A Vitória de Orwell”.

O capítulo sobre o livro ilumina o livro por várias frestas. Uma é chave para a compreensão: “os objetivos e princípios da revolução russa são tratados com isenção no livro; esta é uma revolução traída, não uma revolução monstruosa desde sua concepção.” Exato: é isso que dá peso à fábula, e a tira instantaneamente dos domínios da propaganda.

Hitchens também aponta a presciência de Trotsky. Do exílio, o líder da resistência a Stálin profetizou que os burocratas do PC um dia iriam vender as propriedades socializadas que expropriaram, e virariam eles mesmos homens de negócios.

E nota a sensibilidade de Orwell, que faz desta cena o final de “A Revolução dos Bichos”, quando Napoleão convida o fazendeiro humano, senhor Jones, para confraternizar, e muda o nome da fazenda de volta para o original, “Granja do Solar”, ou no original “Manor Farm”.

Hitchens: “não só Orwell produziu uma brilhante sátira da auto-anulação do Comunismo, como até antecipou seu eventual final em um estado capitalista mafioso, oligarca. Contra-revoluções também devoram suas crianças.”

O BRASIL NO MUNDO

É justamente a Rússia a melhor ilustração de onde mora o perigo no Século 21, em que vão rareando as tiranias explícitas. As ditaduras, como os animais, são por sua natureza todas iguais. Os novos regimes autoritários, pelo contrário, são animais muito diferentes entre si.

A Rússia de hoje é governada por um autocrata eleito, e sempre reeleito, ou governando por trás de um fantoche. Vive-se sob Putin melhor do que jamais se viveu na história da Rússia. Materialmente e institucionalmente.

Há liberdades, com limites claramente demarcados. De imprensa, sob vigilância. De expressão, se não ofenderes os religiosos. De organização, contanto que seu partido não ameace ganhar as eleições.

É o melhor exemplo de sucesso desse novo tipo de regime autoritário, e modelo não muito disfarçado para muitos outros países. No mundo islâmico temos variações mais seculares, Egito e Turquia, ou escorregando para o fundamentalismo, como os Emirados Árabes. Israel é caso extremo: uma democracia para os judeus, uma ditadura para os palestinos.

Na Europa também pipocam líderes do estilo homem forte, como Órban, na Hungria. Conhecemos bem o modelo: nacionalista, tradicionalista, pai-dos-pobres, que prometem segurança contra a mudança, a bagunça e diferença. Mas países diferentes, em lugares diferentes do mundo, tem soluções autoritárias diferentes, no poder ou tentando chegar lá.

Na Ásia temos supostos exemplos de modernidade, como Singapura, na real um parlamentarismo de partido único. Outro lugar com um partido só é grande caso de sucesso econômico das últimas décadas, China, uma ditadura capitalista-coletivista, se você pode imaginar uma coisa dessas. Para ficar no nosso hemisfério, temos Trump no trono do mundo; Maduro, na pobre Venezuela; e no Brasil, Bolsonaro.

“A Revolução dos Bichos”, aliás, até hoje não foi publicado na China. Nem no Irã, Coréia do Norte, nem em boa parte do mundo Árabe e Africano. Aqui podemos ler, e vamos defender esse direito, porque há de aparecer quem queira tirar.

COMO CLAUDICAM AS DEMOCRACIAS

A tendência é forte suficiente para já gerar uma massa de estudos acadêmicos, e um best-seller, “Como as Democracias Morrem”, de dois professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O argumento é que elas morrem pelo voto, quando as próprias populações elegem políticos que desprezam as regras e as instituições.

As três medidas básicas da democracia são, segundo os autores: se há eleições livres e justas; se essas eleições geram governos com poderes regidos pela lei; e se as liberdades civis, de imprensa, expressão, associação e protesto, são protegidas. Nos três quesitos, o Brasil de hoje fica a desejar. Começando pelas eleições, que são livres, passíveis de cancelamento. Dilma Rousseff sofreu impeachment sem crime de responsabilidade, derrubada por uma conspiração. E o candidato à frente no momento só aceita o resultado se vencer, caso contrário é “fraude”.

As democracias também claudicam por causa do fracasso de líderes populares, como Lula e outros, de consolidar uma mudança social permanente, sólida, mobilizada. É muito difícil atender simultaneamente a todas as expectativas do deus eleitor e do deus mercado.

O caso mais trágico é o do Siryza, partido grego eleito com bandeira anti-austeridade, que acabou traindo seus eleitores e aplicando um arrocho cruel. Pior: o eleitor aceita, porque não vê alternativa menos pior. Mas nessa brecha vai crescendo o radicalismo; no caso, o Amanhecer Dourado, partido neonazista grego. Aqui, os movimentos de ultra-direita que desaguaram nesta triste eleição.

Mas nossa democracia não está morta, nem estará em 2019, aconteça o que acontecer. “Morrer” é muito definitivo. A História não é estática.

O GRANDE IRMÃO E O MUNDO NOVO

Seguimos daqui, meu filho e eu, para “1984”, a outra obra-prima de Orwell. Primeira vez dele, minha primeira vez em décadas, e desta vez em inglês. Li garoto como ficção científica, quase ao mesmo tempo que “Admirável Mundo Novo”.

Como observa Anthony Burgess no prólogo de “1985”, sua paródia da obra de Orwell, os detalhes da vida cotidiana de “1984” são calcados na Inglaterra de 1948, quando o livro foi escrito. Cinza, empobrecida, em ruínas, sob racionamento estrito de comida, casacos, gilete de barbear. São minúcias assim que fazem o livro tão forte.

Igualmente realista é a rotina da Granja dos Bichos. Orwell adorava a vida rural, e passou bons anos vivendo no mato e cuidando de criação. Escreva sobre o que você conhece, ensinou Dashiell Hammett, e instrução particularmente importante se você está criando mundos imaginários, com porquinhos falantes ou o Grande Irmão vigiando.

Em suas preciosas memórias, “O Afeto Que Se Encerra”, Paulo Francis critica “1984” por ignorar a dinâmica da História. Em uma cena chave, cruenta, o torturador diz ao torturado: “se você quer ter uma visão do futuro, imagine uma bota pisando em um rosto humano – para sempre”.

Isso é uma fantasia, diz Francis, porque a História não é estática. Mesmo os regimes mais totalitários geram contradições internas. Criam elites, capatazes, sicofantas, excluídos, e disputas entre eles.

Vale para as sociedades, e para a interpretação delas. Poucos anos atrás se dava de barato que Huxley batera Orwell em presciência. Teríamos alcançado o Fim da História, um consenso capitalista globalizado, e “Admirável Mundo Novo” teria acertado na mosca em profetizar o mundo desenvolvido do século 21. Sem grandes problemas materiais, anestesiado por consumo, entretenimento, tecnologia e drogas.

Como vimos, durou pouco a ilusão. O mundo de 2020, pra ficar em uma data clássica da ficção-científica, é igual partes Huxley e Orwell. Tanto o Orwell de “A Revolução dos Bichos”, quanto a de “1984”.

Hoje concordamos em ser vigiados 24 horas por dia, para lucro dos gigantes colaboracionistas do Silicon Valley. Gravam nosso comportamento online e offline e compartilham nossos dados mais íntimos com o primeiro que pagar bem, e com o aparato de vigilância dos Estados.

Carregamos conosco o Grande Irmão e Napoleão em todo lugar que vamos, da cama ao banheiro ao trabalho ao protesto, nas câmeras dos nossos celulares, computadores e tevês. Tudo pela comodidade. E pela vaidade, pela ansiedade de postar nossa vida, ou a versão dela maquiada para as redes sociais. O comediante Keith Lowell Jensen tem o comentário definitivo: “o que Orwell falhou em prever é que nós mesmos compraríamos as câmeras, e nossa maior preocupação é que ninguém estivesse nos olhando.”

AS POSSIBILIDADES DE RESISTIR

Como “A Revolução dos Bichos”, “1984” é leitura sempre obrigatória, geração após geração. E com certeza nestes dias. A frágil, limitada, imperfeita, corrupta Democracia está sob ataque, no mundo e aqui também.

É compreensível que muita gente queira simplesmente acabar com a Política, que tanto pisa na bola. Mas a natureza abomina o vácuo, e na ausência da Política, com seus infinitos debates, esse porre que não anda, não desembaça, o poder é ocupado por outra coisa bem pior. O mundo da Política é caótico, mas melhorável. A harmonia perfeita é fantasia de ditaduras e monopólio dos cemitérios.

Educação não vai nos tirar dessa. Vemos pela tendência do eleitorado de elite em 2018. O sistema educacional prioriza a criação de uma classe média com boa formação acadêmica técnica e disposta a abrir mão de seus direitos e liberdades em troca de uma simplista, imaginária “segurança”, financeira e social.

Essa gente é o próprio esqueleto de sustentação e gerenciamento do sistema, gente ordeira que tem fé infinita nas soluções tecnocráticas, e se define pela obediência às opções de consumo de que dispõe. São nossos colegas e familiares. São, tristemente, o inimigo.

Faltou Humanas no currículo. O que, claro, é a razão porque as escolas, e a infância, são o novo campo de batalha da guerra cultural. E sobrou “Deus”, essa figura egocêntrica, invejosa, totalitária. “Deus Acima de Todos”, imperial, reza o lema do candidato. Como zomba Bill Maher, gente como Stálin, Hitler e Mao não eram contra Deus porque eram ateus; é que eles consideravam Deus como concorrência…

O que nos resta? Resistir e defender a Democracia, falha como é. A Política, nojenta como pode ser. Defendê-las criticamente, para transformá-las.

E defender a Liberdade, que, ampliada, gera sempre novos desafios, que se resolvem com mais Liberdade, nunca com menos. Concordar ou discordar disso divide ao meio o mundo e o Brasil.

Nisso, sejamos adolescentes: somos Nós e Eles. É hipócrita o apelo por união quando um dos lados pretende impôr pela força sua pauta ao outro. Quem quer mandar na gente é, por definição, um porco autoritário, e nisso vamos reconhecer a sabedoria de George Orwell e o comando de Roger Waters: fuck the pigs.

Que mais temos para fazer? Compartilhar inteligência e sensibilidade. Estimular o debate e a contradição, com fundamentos e sem frescura. Apostar na formação, mais que na informação. E na mobilização dos que precisam, mais do que na cooptação dos que podem.

Finalmente resta ler, ler sempre. Ler o que nos abre a cabeça e atiça a imaginação. Para imaginar e criar outros mundos, outras vidas, outras liberdades. Como disse Fredric Warburg, editor de Orwell, sobre “1984”, e vale também para “A Revolução dos Bichos”: “se um homem pode conceber ‘1984’, também pode evitar que ele aconteça”.

por André Forastieri

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