sábado, 31 de agosto de 2013

Cidade Cemitério - uma entrevista.

De gente que ainda continua a praguejar contra o estado, a pátria e a religião, nenhum grupo poderia ser melhor representante que o Cidade Cemitério. O nome da banda, assim como de seu espetacular disco de estréia, Asa Morte, são homenagens nada lisonjeiras à cidade em que seus membros residem: Brasília.

Tema pra blasfêmia é o que não falta, como é de se esperar. Só que esse papinho de “vamos queimar Brasília e acabar com essa corja de políticos” virou um jargão escroto na mão da galerinha bem nutrida e reaça da rede mundial de computadores — mal aí, anarquistas. Como dá pra ver nesta entrevista com o Pedro Poney (ele também toca no Violator, um ícone do thrash nacional), guitarrista do quarteto brasiliense, o pessoal aqui faz jus ao polegar opositor e cria críticas nervosas e mais contundentes do que essa bravataria de taxista virgem. E numa boa: dá uma puta alegria ver gente se voltar contra o status quo com tanta propriedade e embalada num som foda.

VICE: "Feita na prancheta, imaginada e não vivida, Brasília é uma cidade construída em amor ao poder" (retirado do site da banda). Em Brasília boa parte da população trabalha em funções relacionadas à manutenção do poder. A questão é: de onde vocês vêm? Como vivem?
Pedro Poney: Meus pais são cearenses, vieram pra Brasília no começo dos anos 80. O Manga (vocalista) também é cearense, mas veio pra cá só três décadas depois. A mãe da Jully (baixista) também é nordestina, e isso não é uma coincidência — quando existem tantas forças envolvidas, existe pouco espaço pra coincidência. Os pais do Daniel (bateria) não, são de Minas, acho. Meus pais são servidores públicos, misto de regra-geral e meta-sonho da cidade cemitério. Destino compartilhado por mim também, espero que não pro resto da vida. Dá pra dizer que eles estão de alguma maneira trabalhando pra manutenção desse poder, então. Eu também. A minha única defesa é também minha fuga, poder responder entrevistas como esta durante o expediente na repartição. 

A primeira música do Asa Morte é um recado direto ao próprio éthos da cena punk/hardcore (sem contar que é um soco no ânus dos comentaristas reaças de internet). Queria saber como é essa cena no Distrito Federal — ou até mesmo se existe atualmente — e como vocês se sentem em relação a ela. Quando vi vocês ao vivo, tive a impressão de que essa crítica e outras que vão sendo perfiladas no decorrer do disco se ancoram na própria prática de vocês, que é 100% dentro desse ativismo mais faça-você-mesmo, correto?
Correto e correto, acho. Bem, "Contra o Mundo", a música que abre o Asa Morte, se disfarça de mensagem enaltecedora do punk "sou eu sozinho contra o mundo" [a saber: “Sua ideia de resistência / Nada mais que egolatria / Sua enorme prepotência / Te faz agir como polícia / Você contra o mundo / Mas o mundo nem sabe de você”] pra na verdade criticar todo a egolatria desvairada que existe em acreditar numa bobagem dessas. O que existe é uma profunda indiferença do mundo com relação à nossa insignificância, e acho que não há problema nenhum em assumir a nossa pequenez. Pelo contrário, pode ser bonito pra caramba. Justamente porque a partir desse ponto de vista com mais humildade existencial, a gente vê que não está sozinho, que podemos fazer coisas juntos e que tem muita gente criando coisa legal por aí. E assim é no pedaço que a gente faz parte da cena punk hardcore do DF, acredito. Um espaço bem pequeno, que congrega várias bandas e pessoas diferentes (de banda de garage rock a crust e death metal) e que, na minha opinião, nos últimos tempos tem se preocupado bastante com os aspectos não-musicais da "cena", o que é bem legal. Bem, mas pra além disso, muita coisa diferente vem sendo feita por aqui e as coisas estão bem segregadas nos últimos anos. O que eu acho que está longe de ser um problema. Me interessa produzir e compartilhar com pessoas com quem eu possuo algum tipo de afinidade, não sou a favor de um discurso de união vazio que pretende juntar pessoas com visões de mundo muitas vezes inconciliáveis porque compartilhamos uma palavra, ainda mais uma palavra tão genérica como "hardcore" ou "punk". Finalmente, vejo essa ética do "faça-você-mesmo" como o aspecto mais encantador e politicamente interessante do punk rock. Enquanto o resto do mundo inteiro parece funcionar de uma maneira brutalmente verticalizada, em que é preciso deter o conhecimento de uma série de procedimentos, práticas ou técnicas, no punk a gente pode ir lá e simplesmente fazer. Isso permite muita coisa ruim, é claro, mas a gente aprende durante o processo também. Abraçar a precariedade em vez de pretender exorcizá-la me parece uma coisa muito bacana de se levar pra vida. E, é claro, todo esse lance do DIY tem tudo a ver também com não criar fronteiras muito definidas entre "o que" se faz e o "como" se faz. Ambos são igualmente importantes e isso é legal pra caramba.

Queria que você fizesse um “roteiro pra se entreter” em Brasília, pra não acabar enlouquecendo na cidade feita pra carros e escritórios, como vocês dizem. Acredito que deve ter gente aí que dá seus pulos pra humanizar o lugar...
Sim, sim. Acho que a banda mesmo é uma tentativa de dar um desses pulos. A nossa relação com a cidade não é de simples desprezo ou raiva, é bem mais complexa do que isso. Existe algum amor incompreensível por esse lugar também e uma vontade que ele fosse melhor. O verso final de Asa Morte tenta dar conta dessa confusão de sentimentos: "Não sei explicar, mas nessa cova rasa, me sinto em casa". Talvez a gente possa dizer de maneira mais simples que tentamos cultivar uma visão crítica da cidade em que vivemos por meio do punk rock. O que, pra mim, é um exercício bem legal, de trazer essa cultura bastante colonizada do punk pra uma realidade mais local, mais próxima, mais própria. E até mesmo por ser uma cidade que promove tanto o desencontro, parece que quando conseguimos promover um esbarrão parece que as coisas ganham um peso simbólico que dá pra sentir no ar. É o caso de um show punk em um buraco qualquer ou da Bicicletada que acontece uma vez por mês. É quase como se ecoasse mais alto por causa do silêncio da cidade. Bem, eu sou da brigada antibalada (risos), então minhas sugestões vão ser bem zelas pra quem curte um agito (Brasília não é a cidade pra isso mesmo). Recomendo ir tomar banho de piscina natural, ver os micos e comer milho na Água Mineral (Parque Nacional de Brasília), andar de bicicleta nos eixos aos domingos e de skate à noite no Museu Nacional, nadar no Lago Paranoá na Ermida Dom Bosco, virar hippie em alguma cachoeira aqui perto, dar um rolê cívico se você nunca veio aqui, além de curtir uma arquitetura e não escutar Legião Urbana. 

Não dá pra deixar passar: a morte do Niemeyer parece que serviu só pra nego fazer proselitismo ideológico de esquerda e direita em cima do nome do Matusalém. Então... Brasília seria melhor sem as obras arquitetônicas dele?
Tudo que posso falar é a partir do ponto de vista de alguém que nasceu, cresceu e adora andar de bicicleta nesta cidade. Não tenho pretensão nenhuma de articular um discurso de técnica arquitetônica pra falar do ancião. Que nem eu vi a maioria das pessoas tentando fazer por aí, feião.
Minha relação cheia de contradições com esta cidade também está refletida na maneira como eu vejo as obras do Niemeyer. Apesar de achar que são visualmente muito agradáveis (aquelas mais "rolê Varsóvia" são minhas favoritas), acho que o Niemeyer e suas criações são brutalmente responsáveis por transformar Brasília em uma cidade em que simplesmente não existe espaço público. Sem encontro, sem compartilhamento, sem vida. A morte da cidade, de certa maneira. As praças do Niemeyer são desagradáveis, ninguém quer sentar lá naquele cimento duro. São espaços gigantes, mas vazios, de amor ao poder, sempre com alguma homenagem a algum herói que, certeza, foi um sacana. Mas na real, a culpa mesmo é do Lucio Costa (risos). Tem até um relatório dele dizendo que a cidade tinha que ser pensada com o automóvel como um membro da família, acredita?

Faz uma lista de bandas punks de Brazoca pra além do punk do Legião Urbana (risos) e do Capital inicial (RISOS). Sua hora de educar a juventude esperta do país...
Das bandas novas eu gosto muito do Subterror, The Squintz, Gulag, Dualid, Dança da Vingança, Soror, Gracias por Nada, Caim, Ameaça Cigana. Não vou ficar descrevendo uma por uma, consulta o oráculo que tá tudo aí, mas tem desde neocrust fresquinho até punk rock primário. No começo dos anos 2000 aconteceu uma retomada faça-você-mesmo por meio de bandas como Terror Revolucionário, Mayombe e Innocent Kids, que foram a minha escola pra esse tipo de música barulhenta e raivosa. Daí pra trás, tem um monte, né? TFP, CSM, Besthoven, Death Slam, Swankers, Dick Heads (a maioria bem difícil de encontrar material hoje em dia)... As primeiras de hardcore foram o ARD (que na época tinha um nome em alemão) e o BSB-H, que teve várias fases, sendo a mais legal uma época crossover meio Suicidal Tendencies no fim dos anos 1980. Uma bem desconhecida do começo dos anos 90 e que fazia um punk rock bem legal era o Desakato à Autoridade, lembrava bastante o Câmbio Negro HC, de Recife. E não, eu não tenho relativismo com o Plebe Rude (risos), mas eu curto um Escola de Escândalo e, posteriormente, um Arte no Escuro (risos).

Pra acabar, você dá muito rolê tanto com o Cidade Cemitério como com o Violator. Então, que cidade consegue ser mais cemitério que Brasília e qual seria uma cidade paraíso?
São Paulo, em alguns sentidos, é muito mais cemitério que Brasília. Fico angustiado com tanto concreto, tanta fumaça, tanto cinza. Algumas cidades do Japão são assim, de certa maneira, uma hiperurbanização que é sufocante. Palmas, no Tocantins, talvez por ter muita inspiração em Brasília, tem uma pegada parecida de muita fluidez pros automóveis e pouco espaço pras pessoas. Pela miséria e sofrimento acumulado, a cidade na periferia de La Paz, El Alto, também poderia ser considerada uma "cidade cemitério", ainda que com um sentido radicalmente diferente de Brasília. Cidade paraíso é difícil de dizer sem uma vivência mais longa, mas definitivamente existem muitas cidades por aí que extrapolam vida e comunhão nas ruas, mesmo que isso signifique contradições e conflitos. Gosto muito de Bogotá e toda a maneira que as ruas são compartilhadas por lá; Buenos Aires, com as pessoas sentadas nos gramados a tarde inteira e as praças cheias de gente até a noite; Cidade do México, com as pessoas dançando e tocando música em plena rua e um monte de gente andando de um lado pro outro; Amsterdã (e aquele tanto de bicicleta), Barcelona e Rio de Janeiro seriam bons exemplos também, acho. 

NOTA: Cidade Cemitério é uma das atrações do programa de rock de hoje.
 
Ouça o Asa Morte aqui.

Ouça o split deles com o Skate Pirata aqui.

por Arthur Dantas

Vice

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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Black Flag por Keith Morris, como contado para Legs McNeil

Keith Morris e eu somos amigos há um milhão de anos, desde que eu apaguei no chão da casa dele depois de mais uma noite enchendo a cara em Los Angeles nos anos 70. Nos 80, quando eu trabalhava na SPIN, peguei emprestada uma cópia de Hardcore California (um livro sobre a cena punk do sul da Califórnia) dele e nunca devolvi. Eu me arrepiava sempre que cruzava com esse livro. Ano passado, finalmente mandei o livro de volta para ele com minhas mais sinceras desculpas e isso meio que reacendeu nossa amizade. Como sempre fiquei meio confuso sobre a época do Keith no Black Flag, Circle Jerks e toda a cena do hardcore da Califórnia, pensei: que maneira melhor de esclarecer as coisas do que entrevistar o Keith e deixar ele mesmo explicar? Conversamos por telefone durante umas quatro ou cinco horas e o Keith mandou toda a história da cena do hardcore. O que deve ter ajudado foi que comecei dizendo: “Fale como se eu fosse um idiota que não sabe nada dessa história”.

Um mês depois que terminei a entrevista, Greg Ginn, o cara que fundou o Black Flag com Morris, iniciou um processo judicial contra o Keith, o Dez Cadena, o Chuck Dukowski, o Bill Stevenson e o Stephen Egerton porque eles estavam em turnê usando o nome Flag, dando aos fãs um gostinho do verdadeiro punk rock hardcore. Henry Rollins também é mencionado no processo. Como o Greg Ginn se tornou uma carcaça inchada e monótona de tudo o que a gente mais odeia no rock 'n' roll, o Flag se juntou para passar a tocha para uma nova geração de handbangers e envergonhar a banda de Ginn, mostrando ao mundo como se toca o puteiro.

Enquanto esse processo passa por todas as instâncias, faça uma viagem de volta àqueles dias negros dos anos 1970: o mundo era uma gigantesca cara feliz de macramê e a angústia adolescente se afogava num refugo mortal de folk rock, quando alguns moleques fodidos ousaram desafiar o status quo ...


SEMENTES DA DISCÓRDIA

Conheci o Greg Ginn por causa da irmã mais nova dele, Erica, quando eu trabalhava numa loja de discos chamada Rubicon, na Pier Avenue em Hermosa Beach, em 1975. O cavalheiro que era dono da loja, Michael, era louco pela Erica. Então, o Greg Ginn passava pela loja com a irmã dele — e a Erica e o Michael saiam para fazer sabe-se lá o que os jovens amantes fazem: andar de mãos dadas e ver as gaivotas voando sobre a Hermosa Beach, sei lá. Sabe, eles iam comprar o almoço ou cigarros e eu ficava cuidado da loja enquanto o Greg Ginn ficava por lá, esperando a irmã dele.

Na loja, eles sempre tocavam Joni Mitchell, Linda Ronstadt, Eagles, os três primeiros discos do Springsteen, Linda Buckinghan e Stevie Nicks, mas eu não curtia muito esses sons. O que estava acontecendo, enquanto essas músicas tocavam, é que as sementes de minha rebelião musical estavam começando a brotar.

Eu pensava: “Não curto nada disso. Eu queria ouvir Black Sabbath, queria ouvir Raw Power do Iggy e Stooges, queria ouvir New York Dolls e queria ouvir power trios estourando dos alto-falantes, tentando arrancar meu crânio!”.

Então, quando o Michael e a Erica saíam, eu tirava a Joni Mitchell e colocava Uriah Heap e Deep Purple, sabe, alguma coisa que fosse alta e abrasiva. O Greg não tinha muita escolha porque eu era o cara atrás do balcão, mas eu gostava do Greg. Gostava de conversar com ele. Sabe, era legal andar com ele. Ele parecia um cara legal. Ele curtia a maioria das coisas que eu tocava e os comentários dele iam bem com o que eu estava pensando. Foi assim que a gente se uniu. Foi ali que as sementes do Black Flag foram plantadas, naquela loja de discos de Hermosa Beach.

MINIRREVOLTAS

O Michael tinha comprado ingressos para o show do Journey e Thin Lizzy no Centro Cívico de Santa Monica. Nós três — Michael, Ginn e eu — fomos até lá no meu Chevy Impala. Depois do show, o Greg disse: “Tenho umas músicas prontas. Por que a gente não monta uma banda?”.

Veja bem, a gente era uma dupla de nerds. Não éramos parte da cena musical local. Éramos só dois caras entrando cegamente nessa. Eu não sabia tocar nada, mas queria aprender. Eu tocava um pouco de baixo, mas não o suficiente. Então, não tínhamos sequer ensaiado ainda. Tínhamos que achar outros músicos. Tivemos três baixistas antes do Chuck Dukowski entrar, e isso foi quando o Black Flag se tornou uma banda, porque o Chuck Dukowski trouxe uma ética de trabalho. Agora, a gente estava começando a praticar mesmo, sabe? “Vamos aprender essas músicas! Não vamos ficar nos contorcendo como um peixe no convés de um barco!”.

A gente precisava achar um baterista de verdade, então, colocamos um anúncio no Pennysaver, o jornal gratuito local. Um dos caras que respondeu o anúncio foi o Robo [Roberto Valverde], que trouxe sua arma secreta, a cúmbia.

Foi quando os ensaios de três, quatro horas começaram. A gente meio que já parecia uma banda, mas nenhum dos nossos amigos gostava do que a gente estava fazendo. O melhor que a gente conseguia era tocar numa garagem, num quintal, mas esses shows acabavam sempre em minirrevoltas. De repente, os motoqueiros, os jogadores de futebol, as líderes de torcida, os traficantes e os surfistas estavam todos brigando no gramado da frente.

Ocasionalmente, algum amigo músico nosso aparecia, como o Juan, baixista do Ratt. Ele só ria e dizia: “Isso é hilário!”.

PUNK ROCK

A coisa do punk só estava começando a ferver em LA — com o Germs e o Runaways. Mas a gente não estava tão ligado nas coisas para se dar conta disso. A gente continuava indo aos shows do Ted Nugent e do Lynyrd Skynyrd no Estádio Anaheim, coisas assim. A gente assistia a qualquer coisa que despertasse nosso interesse, mas acabamos nos apaixonando pelo Ramones. Os Ramones eram uma grande influência. E eu não só assisti quando eles tocaram no Whiskey como, na verdade, eles deram uma festa, tipo uma festa mesmo, no Motel Tropicana até o amanhecer. Tinha tanta gente na festa que até hoje me surpreendo do Tropicana ter deixado rolar. Eles tinham um mínimo de 100 a 150 pessoas lá. Os Screamers estavam lá, os Germs estavam lá. Tenho certeza de que uns caras do Dickies estavam lá também.

E nós estávamos lá, uns caras de South Bay e se encontrei ou conversei com os Ramones, nunca vou saber porque estava completamente bêbado. E foi quando cortei todo meu cabelo. Achei uma daquelas tesouras de poda e cortei todo o cabelo, o que sobrou ficou arrepiado, quase um topo plano, um lance meio skinhead. Fiquei muito orgulhoso de mim na hora.

Claro, no dia seguinte, fui trabalhar com uma puta ressaca e com aquele corte de cabelo horrível. Meu velho ficou puto. Ele queria saber o que estava acontecendo. A esposa do sócio dele me acusou de ser um pecador, disse que nunca iam me deixar entrar no céu. Sabe, merdas idiotas e sem sentido tipo essas.

A MÁSCARA

A gente não sabia aonde ir para conseguirum show. Então, depois de alguns anos trancados no espaço de ensaio, o Greg Ginn e eu fomos até o Masque em LA, o bastião do punk rock, e falamos com Brendan Mullen, um dos meus heróis. Nós éramos uns tipos zoados — eu não tinha cortado meu cabelo ainda, então parecíamos os roadies do Peter Frampton.

Éramos impressionados com o Brendan porque éramos impressionados com o Masque — era onde a gente tinha visto o Germs e o Weirdos. Enchemos tanto o saco do Brendan que ele acabou cedendo. Ele disse: “Certo, eu deixo vocês tocarem, vocês podem ser a banda de abertura na noite de fechamento”.

Então, tocamos na noite de fechamento do Masque original, mas não me lembro, porque eu curtia mesmo era tomar umas cervejas regularmente e cheirar o Pó Mágico de Hollywood. Eu andava com o Derf, o Philo e o Spit do Fear — eles viraram meus amigos de copo. E, às vezes, o Darby Crash aparecia também. Eu não estava preocupado em transar, eu estava muito bêbado para me preocupar com o que fazer com meu pinto. Eu estava mais preocupado em ficar chapado.

Quer dizer, eu era um desses caras que se sentam no estacionamento do Hollywood Bowl bebendo xarope para tosse sabor pêssego antes de entrar escondido para ver os Allman Brothers, sabe?

BANDEIRA BRANCA

Greg Ginn e eu começamos a nos afastar. Nossa amizade começou a se dissolver por volta da metade de meu segundo ano na banda. A gente não estava fazendo muitos shows. Tudo o que a gente fazia era ensaiar, mas ensaiar pra quê? Sabe, era como se a gente estivesse tocando só para nós mesmos. Fizemos algumas viagens para São Francisco e foi bem legal, mas aí as coisas começaram a mudar. Quer dizer, quando o Gary entrou na banda, as pessoas começaram a escolher lados. Não era mais “Um por todos e todos por um, vamos para a festa!”. Sabe, não era mais “Ei caras, vamos ser amigos! Vamos farrear!”.

O que aconteceu foi que três se voltaram contra um. Eu, aparentemente, estava empatando o progresso deles por causa de minhas palhaçadas de bêbado e porque eles queriam aprender mais músicas. Minha mentalidade era a seguinte: “Tudo legal, tudo ótimo, mas por que aprender mais músicas? Qual é a vantagem?”.

Chegou um ponto em que eu não me divertia mais. Quer dizer, a gente tocava, e enquanto a gente estava no palco eu curtia muito, mas todas as outras coisas anexadas a isso estavam me moendo. Tinha uma luta pelo poder acontecendo e eu não queria me envolver nisso. Sempre que a gente tinha algum tipo de briga, eles faziam uma discussão em grupo. Eu era o enteado sardento, sabe, o órfão. Por fim, eu disse: “Caras, tô fora”.

Como acabou sendo, porque passei muito tempo com o Chuck Dukowski e tive que ouvir todas as histórias pós-Keith do Black Flag. O Chuck me disse que o Greg ia me chutar da banda porque eu estava impedindo eles de seguir em frente. Isso é uma coisa que eu nunca entendi no Greg Ginn. Nunca vi ele como particularmente ambicioso, ou como o rei de um império que ele acabaria se tornando.

Mas a coisa só foi ficar feia quando o Circle Jerks começou a tocar ao vivo.

RODADA DE MASTURBAÇÃO

Depois que saí do Black Flag, eu estava morando numa Igreja Batista abandonada em Hermosa Beach, na esquina da Pier com a Hermosa. Depois que a igreja foi abandonada, uns hippies se mudaram para lá e começaram a alugar seções da igreja para pessoas que sopravam vidro, faziam cerâmica, coisas assim. O cara no comando era o Red, que tinha vendido LSD pro Grateful Dead — hahaha! E acontece que o Redd Kross estava ensaiando lá.

Então,o Redd Kross estava no porão num sábado à tarde, e cruzei com o Greg Hetson e o Keith “Lucky” Lehrer. Eles iam fazer um teste. O Redd Kross estava testando uns bateristas e o Lucky era o baterista naquele dia. Eles estavam lá há uma hora. Eu, sentado no corredor, tomando cerveja, e o Greg e o Lucky foram os primeiros a sair.

Vi que o Greg Hetson estava bem chateado, então eu disse: “Como foi lá? Parecia que estava rolando, cara!”. Mas eles saíram balançando a cabeça e com uma cara desiludida. Então perguntei de novo: “Oque aconteceu?”. E o Greg disse: “Bom, foi ótimo, foi incrível, mas os irmãos não gostaram do Lucky, ele foi muito proficiente. Ele é um baterista bom demais...”.

Foi aí que me dei conta: “Olha, a gente tem um vocalista, um guitarrista e um baterista. A gente só precisa de um baixista!”. Algumas semanas depois, cruzei com Rodger Rodgerson na frente do Anti-Club em Hollywood e contei a ideia pra ele. E foi mais ou menos assim que o Circle Jerks começou.

RAYMOND PETTIBON

Raymond Pettibon é o irmão mais novo do Greg Ginn, e ele é parte da história toda desde o começo. A gente fez o colegial juntos. Quer dizer, não estávamos nas mesmas turmas, mas teve um ponto em que todo mundo estudava na Maricosta High School, em Manhattan Beach. Éramos todos Mustangs — verde e dourado eram as cores da escola, como os Green Bay Packers.

E o Raymond sempre foi fã do Black Flag. Bom, a gente se chamava Panic antes de sermos o Black Flag. Mas já existia uma banda francesa chamada Panic, que tinha lançado um 45. Quando descobrimos, nos entreolhamos e dissemos: “Temos que mudar o nome, não temos como lidar com nenhum processo judicial!”.

Quer dizer, que advogado ia querer representar a gente? Tipo: “Alguém aqui conhece um advogado? O que é um advogado?”.

Então, o Raymond foi o cara que pensou no nome Black Flag. Foi ele também que fez o logo da banda, sabe, as quatro barras que formam a bandeira tremulando? É um design muito louco. Isso vai durar para sempre. E o nome Circle Jerks foi outra criação do Raymond Pettibon, porque a gente já tinha passado por uns seis ou sete nomes, Plastic Hippy, The Runs, White Hassle...

Bom, a gente não curtia nenhum desses nomes. Um dia, estávamos com o Raymond em um dos quartos da casa dos pais dele em Hermosa Beach. O Greg Hetson e eu estávamos tentando pensar num nome para a banda. Então, puxei um livro da estante, era o Dicionário de Gírias Americanas, e a gente começou a folhear. Eu estava olhando todos os nomes e de repente surgiu Circle Jerk. E eu pensando: “Bom, Rolling Stones, esse sim é um nome escroto...”.

São sempre os piores nomes, os nomes mais horríveis, aqueles mais lembrados.

Então pensei: Circle Jerk não, Circle Jerks, no plural, porque somos quatro. O Greg concordou com a cabeça e foi isso. A gente quase pode culpar o Raymond Pettibon de novo.

O Raymond foi um dos três primeiros baixistas que a gente teve antes de achar o Chuck Dukowski. Ele era um desses baixistas que não consegue tocar baixo.

A gente era amigo de farra. Uma noite, estávamos num show do John Cale/Zeros no Whiskey e ele estava completamente bêbado. Aí ele pegou uma mina e eles começaram a se agarrar no chão do Whiskey a Go Go. O Raymond não se envolvia muito em nenhum desses trabalhos internos no Black Flag, ele era só um fã, sabe? Ele cresceu com a gente. E se dava bem com o irmão, Greg. Mas eles não se falam mais porque um deles é uma pessoa incrivelmente horrível — e não é o Raymond.

MAS QUEM É O VOCALISTA?

O Black Flag teve dois vocalistas ensanduichados entre o Henry Rollins e eu. Muita gente, quando pensa no Black Flag, pensa no Henry Rollins, porque ele esteve em todos os álbuns. Ou quase. Essa é uma das coisas fantásticas sobre o Black Flag; foram quatro vocalistas diferentes e cada um trouxe seu próprio sabor para a banda, sabe?

Então, o Henry veio depois do Dez, e o Dez veio depois do Ron Reyes e o Ron veio depois de mim. O Ron só ficou na banda por uns seis meses. Ele simplesmente não estava muito empolgado. Não sei qual foi a desculpa ou as razões que ele deu para sair, mas sempre escuto que o EP do Black Flag com o Ron, o Jealous Again, ele tem as melhores músicas que o Black Flag já fez.

Henry Rollins usou o Black Flag como um trampolim para todas as outras coisas que ele fez, e aplaudo isso de forma sincera. O Greg Ginn não gosta que o Henry é mais famoso do que ele. Fico surpreso que o Henry tenha ido tão longe com o Greg Ginn, porque o Greg estava sempre dizendo: “Não posso deixar ele me ofuscar! Ah, ele está fazendo todas as entrevistas!”. Mas o Henry conseguia ofuscá-lo logo que entrava no palco. Quer dizer, o Henry era um símbolo sexual do punk rock. Então, por um lado, acho que o Greg ficava satisfeito de ter ele na banda, mas também tinha esse ressentimento.

Você tem que entender que o Greg se tornou muito egocêntrico. Ele pensava: “Bom, tenho esse selo incrível com todas essas bandas. Tem todas essas coisas acontecendo e estou no controle!”. E aí o Greg Ginn saiu da banda. Não sei quando. Só sei que o Greg saiu e deixou o Henry com o Black Flag. Isso foi quando o Henry decidiu fazer sua própria coisa com a Henry Rollins Band. Mas não sei nada dessa época.

Só sei que o Greg Ginn nunca foi e nunca será um vocalista. Mas como guitarrista, eu colocaria o Greg lá em cima junto com Jeff Beck, Jimmy Page e Jimmy Hendrix. Ele foi um dos grandes guitarristas de todos os tempos.

Fui o primeiro vocalista, mas também não sei cantar. Eu era o cara que gritava. Não sou o tipo de cara que vai num casamento e alguém me pede para cantar uma música.

Era para eu estar no primeiro disco do Black Flag, o EP Nervous Breakdown, mas saí da banda. Estou no Everything Went Black. Estou num dos lados dos três lados e estou em outra compilação, acho que se chama Wasted Again. Tenho material gravado o suficiente e também poderia pegar um belo pedaço dos royalties. Mas nunca ganhei nenhum royalty do Black Flag.

O Ginn não paga os royalties. Uma vez, ele me convidou para subir no palco com ele e cantar quatro ou cinco músicas. Eu olhei o Greg nos olhos e disse: “Claro, pega lá um cheque de US$75 mil dos royalties passados”. E isso seria só a ponta do iceberg, mas ele riu na minha cara.

VOLTAS SÃO UM SACO

O Circle Jerks fez uma turnê em 2003 e tocamos num grande festival daqui, no LA Coliseum. Alguns caras do Golden Voice, os promotores com quem tratamos a maior parte das nossas vidas, me disseram: “Keith, precisamos de sua ajuda, vamos fazer duas noites de Black Flag no Hollywood Palladium...”.

E eu disse: “Nem precisa me dar os detalhes, só me avisem quando vocês forem fazer. Claro, vou estar lá; vou fazer parte disso. O que preciso fazer?”.

Quando me pediram para participar do show do Hollywood Palladium, a coisa estava sendo anunciada como “Black Flag: The First Four Years”. É uma dessas situações em que você tem US$100 mil no curso de duas noites, e isso deveria ser um show em prol dos gatos. Então fiquei pensando: “Uau, eles vão chamar o Ron, o Dez, o Chuck e o Robo também! Vou poder tocar com alguns dos meus amigos!”.

Fui para o primeiro ensaio e foi brutal. Uns outros caras — não o Dez, o Ron, o Chuck ou o Robo — estavam tocando as músicas, e eles nem sabiam o que eram as músicas. Eles ficavam olhando um para o outro, esperando pelo riff para tocar suas partes cinco ou seis vezes. Foi bem ridículo. Balancei a cabeça. Tinha visto o suficiente. Eu estava perdendo meu tempo. Mas ainda queria saber quando o Chuck Dukowski ia aparecer, porque eu sabia que se o Chuck aparecesse a coisa ia deslanchar. Na verdade, eu liguei para o Greg e disse: “Então, quando o Chuck vai aparecer para os ensaios?”.

E o Greg disse: “Não falei com o Chuck ainda...”.

Então, fui falar com o Chuck na Amoeba Records em Hollywood, durante o show beneficente para o West Memphis Three, e perguntei: “Então, você está sabendo da reunião do Black Flag no Hollywood Palladium?”.

E o Chuck disse: “Ninguém falou comigo sobre isso...”.

E eu disse: “Bom, você ficou sabendo agora...”.

Então, saí do ensaio aquela noite pensando em só voltar quando soubesse que o Robo e o Chuck Dukowski iam estar lá. Liguei para o Dez para saber se alguém tinha falado com ele, para saber quando ele ia vir. Mas ele não me ligou de volta, então, deixei uma mensagem na secretária eletrônica dele. Eu teria ligado pro Robo também, se eu soubesse como entrar em contato com ele.

Então, o Greg Ginn me ligou para falar merda: “Te ligo quando for hora do ensaio, pare de falar merda pelas costas de todo mundo, pare de tentar foder com tudo...”.

E eu disse: “Bom, você falou com o Robo? Quando o Robo vai aparecer?”.

O Greg disse: “Isso não é problema seu. Vou te ligar quando for sua vez...”.

Foi quando percebi que o Greg nunca teve a intenção de ter a banda original no palco.

O GRANDE SHOW

O promotor me ligou e quis saber: “Bom, você vai estar no palco? Os ingressos da primeira noite já estão esgotados e precisamos encher a segunda noite. Queremos fazer umas propagandas, quem vai estar tocando com a banda? Queremos anunciar todo mundo que estará tocando”.

Eu disse pra ele: “Não sei dizer, me deixaram no escuro...”.

E ele disse: “Bom, você devia saber dessas coisas!”. E a coisa foi só piorando. Lembrei por que tinha saído da banda. No começo, eu estava mais do que empolgado e muito a fim de tocar, mas aí, estando com essas pessoas, ouvindo a conversa delas e sendo esculachado por coisas que eu não estava fazendo, acabei pensando: “Vocês estão de brincadeira? Essas são todas as razões pelas quais eu saí da banda!”.

O organizador me ligou algumas semanas antes do show e disse: “O Greg me disse, em várias ocasiões, que você estava espalhando rumores maldosos e falando merda pelas costas de todo mundo, então, seus serviços não são mais necessários”. Primeiro eu quis ficar deprimido, mas depois dei um suspiro de alívio e agradeci o cara.

Dois dias antes do show, o promotor me ligou e disse: “Keith, reservamos algumas mesas no balcão, você pode convidar todos os seus amigos. Você pode ficar no balcão e se quiser colar no palco e cantar algumas músicas, fique à vontade”.

E eu disse: “Obrigado pela oferta, mas não estarei lá”.

Alguns dias depois, ele me ligou de novo e se desculpou pelo jeito que tinha falado comigo no telefone. E isso não tinha me incomodado muito, já estou acostumado com esse tipo de coisa, mas no final da conversa ele disse: “Bom, a gente ainda continua amigo?”.

E eu disse: “Rick, sempre seremos amigos. Não importa o que aconteça, todas essas merdas, vamos sempre ser amigos”.

O triste é que o Rick misturou uns remédios e morreu pouco tempo depois disso.

Então não, não fui a esse show. Mas ouvi todos os rumores, ouvi todas as críticas. Eles estavam jogando latas de lixo do palco. Gente que comprou ingressos pras duas noites estava tentando vender os ingressos para a segunda noite. Só ouvi histórias horríveis.

MÓ BANDEIRA!

Gary Tovar, o chefe da Golden Voice, convidou o Chuck Dukowski para o aniversário da empresa e pediu para ele fazer um discurso para umas quatro mil pessoas. O Chuck pensou a respeito e disse: “Bom, não. Sou um músico, me deixa tentar alguma outra coisa”.

Então, ele ligou pra mim e pro Billy Stevenson. E nós concordamos em tocar o EP Nervous Breakdown na festa de 30 anos da Golden Voice antes do Descendents, que seria a banda principal daquela noite. A gente tocou naquela festa de aniversário e todo mundo ficou louco. Estávamos nos bastidores, eu, Chuck, Billy, Stephen e o Dez Cadena. A gente tinha curtido muito. Então, entre nós quatro, decidimos que talvez devêssemos tocar por aí como uma banda.

A gente pensou no nome Flag e começamos a tocar, e todos os nossos shows foram incríveis. A gente realmente gosta de tocar um com o outro. Gostamos da companhia um do outro. Quer dizer, somos um bando de velhos, então, de vez em quando alguém fica meio mal-humorado ou rabugento, mas gente velha é assim mesmo.

CARMA

Há um tempo, eu e o Raymond Pettibon fomos comer uns sanduíches e ele olhou pra mim e disse que sabia que o irmão dele já tinha destratado todo mundo que ele já conheceu. Sabe, o Raymond me disse que sabia que o Greg não era legal com todo mundo. E eu disse: “E qual é a novidade?”. Aí o Raymond me disse que, se eu estivesse num aperto financeiro ou com algum problema de saúde, que eu podia ficar à vontade para ir até seu estúdio e pegar o que eu quisesse para vender.

E era isso, um dos grandes artistas do nosso tempo fazendo esse tipo de convite pra mim? Não só fiquei lisonjeado como também percebi que eu e ele fomos muito próximos numa certa época, sabe? Na banda que a gente montou naquela igreja — no Black Flag, e em toda aquela cena underground de South Bay — eu e o Raymond tínhamos muito em comum. Éramos fãs dos Dodgers e dos Angels, éramos fãs do Super-Homem e do Batman. A gente era muito próximo.

Mas nunca aceitei a oferta dele. Nunca precisei. Sempre estive numa situação financeira na qual consigo pagar minhas contas. Fico sempre apertado de grana, mas não preciso de um monte de dinheiro depois de descobrir a grandeza do mercado agrícola.

Em 1975, Legs McNeil cofundou a Punk Magazine, que é parte da razão pela qual você sabe o que essa palavra significa. Ele também escreveu Mate-me Por Favor, o que basicamente fez dele o Studs Terkel do punk rock. Além de trabalhar como colunista da VICE, ele continua escrevendo em seu blog pessoal, o pleasekillme.com.

Siga o cara no Twitter – @Legs__McNeil

Fonte: Vice

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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

OBSCENE EXTREME 2013

"Curtindo a vida adoidado"
O mês de Julho de 2013 tinha tudo para ser entediante como no ano passado. Parecia inevitável que eu desperdiçasse mais um Verão, afundado em casa, viajando somente pelos locais cada vez mais óbvios da internet. Viver em Praga é certeza de vida social ativa, mesmo para um desempregado sem dinheiro. Só os anti-sociais podem ficar à margem do que Praga oferece. Mas, apesar de tudo, a falta de uma rotina e de uma ocupação acabaram por configurar uma rotina em si. A incerteza, as novidades a cada dia, a insegurança de não saber onde estarei no próximo mês. Julho tinha tudo para ser um mês desesperador, onde eu inevitavelmente fritaria o cérebro em preocupações existenciais e no calor que finalmente se fazia sentir na quase sempre fria capital tcheca.

Os festivais de música estavam à espreita, mas a falta de dinheiro desanimava e eu já me conformara com a não comparecência a nenhum deles. Nem Rock For People, nem Mighty Sounds, nem Play Fast Or Don't, nem Obscene Extreme. No entanto, bastou uma mensagem da Char, lá de Portugal, para me convencer do contrário. Que se foda a falta de dinheiro! Se a Char vai ao Obscene Extreme (OEF), eu também vou. Vamos repetir as loucuras de há quatro anos. E havia mais! Num desses encolhimentos do nosso vasto mundo, aproximei-me da banda brasileira Catarro através do meu grande companheiro Adelvan, de Aracaju. Catarro havia tocado por lá e Adelvan, ao saber que a banda faria uma tour europeia e passaria pela República Tcheca, sugeriu que nos conhecêssemos. Não tinha ouvido falar de Catarro até ler à resenha que Adelvan fizera eu sem blog sobre o selvagem show debaixo de um viaduto na capital sergipana. Era uma banda nordestina com proximidade a gente querida de Aracaju e que viria tocar na República Tcheca. Não poderia perder isso! Seria imperdoável! E ficou decidido: rumaria ao OEF, aos trancos e barrancos, para três dias de loucuras. O resto de Julho que se dane, eu sempre dou um jeito de me virar. O que importa é ir ao OEF e vingar-me de todas as dificuldades vividas nos últimos meses. Há coisas que, mesmo na adversidade, devem ser feitas e ponto final. Dedique-se 100% à razão e você envelhecerá frustrado.

Encontrei-me com Char e seu namorado, Filipe, na principal estação de trem de Praga, no início da tarde, para dali fazermos uma longa e enfadonha viagem de três horas até Trutnov, a Norte do país, já pertinho da fronteira polonesa. Lá encontramos dois ingleses podres de bêbados que nos guiaram ao recinto do festival, a uns bons vinte minutos da estação. Era a minha primeira vez em Trutnov. Em 2009 o OEF havia sido numa localidade perto de Pardubice, mais para o centro do país.

O preço do bilhete foi bem azedo, 1500 coroas checas, o equivalente a 60€ ou uns R$ 150,00. Entrando no recinto do festival, vi logo que o preço estava justificado. Além das 69 bandas de todos os cantos do mundo – com algumas verdadeiras instituições dentro do underground -, a estrutura do festival demandava, evidentemente, o elevado valor das entradas. Podemos, sim, questionar a necessidade de se criar uma estrutura tão forte e profissionalizada. Particularmente, não me incomodo com ela. Ouvi muita gente reclamar e falar que não era necessário isso tudo. Ora, para mim é simples: O OEF é organizado por um punhado de pessoas que adoram música extrema e encaram o festival de forma profissional e preferem optar por uma estrutura mais consistente. Qual o problema? O tempo do Franciscanismo já passou, creio, e realmente espero que as pessoas estejam maduras o suficiente para perceberem que underground e alternativo não são sinônimos de precariedade. Não necessariamente! Poderia ser um festival menor, com menos bandas, menos estrutura e mais barato? Poderia! Há outros assim, como o Play Fest Or Don't, mais voltado para o Crust e o Fastcore. Mas os mentores do OEF preferem conceber algo maior e têm todo o direito de o fazerem. Não são vendidos nem mercenários por causa disso.

Regressando ao recinto, de fato fiquei surpreso com a estrutura, ainda maior do que em 2009. Cartazes gigantes, outdoors publicitários do evento, inúmeras tendas de comida, com uma variedade enorme e tudo vegetariano (outro motivo de algumas reclamações, algo que abordarei mais adiante), muitas tendas de merchandising e um espaço especial apenas para merchandising oficial do OEF. O dinheiro é substituído por cupons (cada um deles valendo 30 coroas ou 1,20€ , os copos são recicláveis, possuem design do OEF e podem ser recolhidos e revendidos por 2 cupons cada - e foi nisso que eu me dei muito bem -, etc. Uma estrutura demasiado complexa para quem está acostumado com a precariedade do underground e exatamente por isso ela deve ser vista de forma positiva. Para tratar das necessidades fisiológicas e da higiene havia os famosos Toi Toi, os toilets móveis e apesar de disponibilizarem apenas dois chuveiros, próximo ao recinto havia um local onde poderíamos tomar banho mediante um pagamento simbólico. E também havia um espaço com várias torneiras e até uma mangueira que ficava quase sempre ligada - o calor era realmente intenso. Em relação às apresentações musicais, todos os shows foram filmados e posteriormente disponibilizados no Youtube. Comprando o ingresso ganhávamos um livreto apresentando todas as 69 bandas do festival e uma coletânea em CD com metade delas.

Ao contrário do preço da entrada, lá dentro era tudo barato. A comida, em porções satisfatórios, saia a 2 ou 3 cupons, a cerveja (não bebi mais nada além de cerveja mesmo) a 1 cupom e sobretudo o merchandising, pago com dinheiro mesmo, tinha o preço normal dos shows undergrounds. Em Praga quase não há lojas do submundo musical. Particularmente, só conheço uma. O preço de material em lojas é extremamente caro quando comparados com o preço das tendas nos festivais. Em média, as camisetas custavam 250 coroas (10€ ) e os CDs ou vinis também. Mas havia vários ítems mais baratos e algumas promoções. Numa das tendas estavam vendendo cinco CDs por 5€. Não costumo comprar material, apenas algumas camisas ou vinis, às vezes. Mas para quem coleciona CDs ou vinis, o OEF é um lugar perfeito para tal. Além de se encontrar de tudo, os preços praticados são muito bons.

Uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi a grande variedade de comida. De petiscos e sanduíches enormes a pratos bem elaborados. A variedade era tão grande e tudo era tão bom que ficava difícil experimentar todos eles. A vontade era sempre repetir o que havia comido anteriormente. Nota 10 absoluta para a comida do OEF. Na madrugada do primeiro para o segundo dia, ao regressar totalmente bêbado para a minha tenda, ainda tive lucidez suficiente para recolher copos no caminho e consegui juntar 22. Na manhã seguinte, troquei 17 deles por cupons - dos 5 restantes, 4 ficaram guardados como souvenirs e 1 ficou sendo usado durante o festival. Com 17 copos consegui adquirir 34 cupons que, somados aos 20 que eu já possuía, totalizavam 54.

Foi então que a festa começou de verdade para mim. Era a vingança por meses e mais meses só comendo a mesmice de sempre. Tentei provar tudo o que era possível. Acho que não deu, mas tudo o que consegui comer era delicioso, do tradicional Langoš, passando por milho cozinho, espetos de legumes, sanduíches veganos, até pratos à base de batatas, macarrão ou mesmo gulash. Tudo delicioso e eu realmente me entupi de tanto comer, regando com doses exageradas de cerveja.

Algumas pessoas tiveram a ousadia de reclamar da falta de carne. Sacanagem! Ora, aqui eu preciso realmente manifestar estranheza. Estamos falando de gente acostumada a shows e festivais onde há refeições com carne. Eu, enquanto vegetariano, sempre tive alguns problemas devido à falta de alternativa vegetariana. Mas no OEF, meus caros, os vegetarianos se vingam. Pois é, felizmente o Čurby, o organizador principal, é vegetariano e deixa bem claro, há anos, que para ele não faz sentido organizar um festival com refeições à base de carne. E não faz mesmo! Seria totalmente incoerente. Todos já estão bem avisados de antemão e os que quiserem comer suas carnes que as levem consigo, embora eu não veja qualquer sentido nisso, uma vez que o festival oferece uma variedade tão grande de comida (e não é apenas saladas) que não consigo imaginar como alguém pode sentir falta de carne. Tenho certeza que só reclamam por pura birra mesmo, para chatearem. Felizmente são poucos e até diria haver predominância vegetariana entre as milhares de pessoas que participam do festival.

O ambiente do OEF é o de sempre, seu grande cartão de visita, mais até do que as bandas. Gera-se uma enorme irmandade espontânea, não há brigas e o clima é de total festa. Uma grande falha minha foi não ter ido fantasiado. Eu queria ir de Chapolin Colorado. As fantasias variam bastante, há até algumas bem fofas e alguns super-heróis (o Batman passou por lá este ano), mas as que mais chamam atenção são as fantasias bizarras ou mesmo as apelações ao nu e à sexualidade. Freiras com roupa íntima, pessoas desfilando como vieram ao mundo, homens de fio dental ou ostentando enormes dildos e até sadomasoquistas com direito a chicote enfiado no fiofó. Há coisas bem bizarras mesmo! A licença para divertir-se exclui qualquer noção do ridículo e isso é sensacional. Costumo ver muitos posers nos shows que frequento em Praga, por várias vezes senti que o próprio Play Fast Or Don't parece uma passarela para o desfile de barbies radicais. É muita gente demasiado preocupada com a imagem, as roupas apetrechadas e os cabelos dreadlocks são muito bem elaborados e cuidados. No OEF isso não existe, até deixa a ideia de que quanto menos visual uma pessoa tiver, mais verdadeiramente underground ela é. Não estou afirmando nada, estou apenas transcrevendo um pensamento. Se excluirmos as dreadlocks (que realmente imperam), o público do OEF apresenta uma grande diversidade de visual, formando um arco-íris humano agradavelmente esquisito e sem qualquer lógica. Esqueçam as roupas pretas. Esqueçam as poses esnobes e as caras de mauzão. Vão ao OEF com o máximo de cores que conseguirem, tentem ser ridículo, afinal, mais do que um festival de música extrema, o OEF é uma licença para voltarmos a ser crianças. Não há nada melhor do que isso!

Durante a Quinta-Feira, o primeiro dia, os shows começaram às 14:00hs, nós só chegamos ao festival umas duas horas depois e uma vez ali dentro o plano era encontrar velhos amigos, conhecer novos e beber cerveja. Das 15 bandas que passaram pelo palco do OEF nesse dia, vi apenas o rot'n'roll de Malignant Tumour (CZE) com atenção. É uma banda muito divertida, vale sempre a pena vê-los. Tocaram Saddan Hussein is Rock and Roll para o deleite do público. Também acompanhei um pouco de Negative Approach (Hardcore dos EUA), sem gostar muito, e de Kryptopsy (Death Metal do Canadá), ultra-mega-chato, como quase todas as bandas de Death Metal. Bem, há estado de espírito para tudo, obviamente. Os shows não eram o meu interesse no primeiro dia. Apenas lamentei ter perdido o show de Fuck The Facts (Grindcore do Canadá), mas felizmente vê-los-ia uma semana depois em Bruxelas numa gig com Catarro.

Já passava da meia-noite quando Kryptopsy finalmente parou de tocar: era hora do Hell Show. Todos os anos há uma sessão que mistura suspensão de pessoas com bizarria sado-erótica ou whatever...sei lá como definir aquilo. Em 2009 vi uma mulher ter os lábios vaginais serem literalmente costurados. Desta vez houve suspensão de pessoas com ganchos enfiados na pele e a religião parecia ser o tema principal, visto que o sujeito suspenso por mais tempo estava vestido de Papa, e era acompanhado por uma diabinha e uma anjinha, também suspensas com ganchos enfiados nas costas e nos joelhos. Embaixo deles, no palco, um punhado de seres pervertidos, seminus, vestidos de freiras, com indumentários de sadomasoquismo, etc. Todo mundo com seios ou pirocas de fora, dançando e se roçando uns nos outros. Uma putaria à altura do nome do festival. Apesar da pouca luz e da falta de um tripé, consegui fazer algumas boas fotos.

Findadas as atrações no palco, a madrugada se prolongaria na tenda de convívio com um karaokê no Mustache Bar, um barzinho improvisado por ali. Havia um DJ e uma guilhotina. As pessoas deveriam escolher músicas e cantá-las no microfone. Caso errassem, haveria punição. Os homens teriam suas barbas e bigodes rapados (realmente não sei se a punição era a mesma para todos, muitos homens não tinham nem barba nem bigode para serem rapados), no caso das mulheres, não faço ideia, eu já estava bem bêbado para discernir qualquer coisa. Só sei que fui lá, todo metido a esperto, e pedi para cantar Smells Like Teen Spirit de Nirvana. Colocaram-me na guilhotina e só me recordo de estar tentando beijar uma loira que aproximava demais a boca dela da minha - depois eu concluí que era apenas para alcançar o microfone, mas na hora eu estava convencido de que ela queria algo comigo -, quando o cara do bar, um japona sacana, aproximou-se com uma máquina de barbear e, contra a minha vontade, foi rapando todos os pelinhos ruivos do meu doce rosto. Com a cabeça enfiada na guilhotina, só me restava berrar e implorar para que não rapasse, sem que fosse ouvido. Fiquei puto, embora rendido ao momento. Foi a primeira vez em mais de um ano que fiquei com a cara sem pelos. Mas o pior viria no dia seguinte, ao acordar. 

A Char e o Filipe lembram-se bem do momento em que acordei sozinho na minha tenda, vi uma pilha de copos ao meu lado e entre curtos flashbacks lembrei-me de que algo se passara na noite passada. Foi aí que levei as mãos ao rosto e não senti a barba, embora houvesse algo, parecia que nem tudo fora removido. Sem espelho por perto, a solução foi fazer um auto-retrato com a minha câmera para constatar que o japona filho-da-puta havia deixado um bigodinho de Hitler – ou de Chaplin, no caso dos otimistas. Entrei em pânico! Gritei para a Char e o Filipe, que estavam na tenda ao lado, dizendo-lhes que tinha uma notícia boa e outra má. A boa era que havia uma pilha com mais de 20 copos ao meu lado, o que significaria tirar a barriga da miséria durante o resto do festival, enquanto a má...bem, preciso agradecer ao Filipe por me ter emprestado sua lâmina de barbear quando fomos tomar banho. Rapei tudo e voltei a ficar com cara de rapaz de 18 anos, lamentando a escassez de testosterona que me faz esperar mais de um mês para voltar a ter a barba crescida e densa.

O segundo dia ficou marcado pela comida. De fato me recordo mais dos momentos em que estava comendo do que das apresentações em si. Como havia trocado os copos por cupons e ficado “rico”, não parava de comer e beber muita cerveja, além de atuar como paparazzi com a minha surrada 400D, já pedindo arrego, coitada. Não sei se alguma outra câmera participou de mais mosh e stage diving que a minha “quatrocentinha”. Não creio! Sentado ali nos bancos do “anfiteatro”, vi várias bandas apenas como música de fundo para os convívios que se estabeleciam. Tenho uma vaga lembrança dos shows de Crepitation (Death Metal do Reino Unido), Gruesome Stuff Relish (Grindcore da Espanha) e Gadget (Grindocre da Suécia). Lembranças bem esfumadas mesmo. Depois vi Birdflesh (Grindcore da Suécia) com um pouco mais de atenção até que, finalmente, sobem ao palco os velhotes de Birmingham para mais de uma hora do mais puro e genuíno Grindcore: Napalm Death. Foi a segunda vez que os vi, a segunda no OEF. Fizeram uma homenagem direta ao Čurby pelos 15 anos do festival e nos brindaram com seu ruído politizado. Certamente o próprio Jan do Agathocles preferiria dizer que são uma banda de Mincecore. O ponto alto do show foi, para mim, o cover de Dead Kennedys, Nazi Punks Fuck Off.

Depois de Napalm Death tocaram mais seis bandas, mas eu já estava a caminho da tenda para dormir. Além de não ter dormido quase nada na noite passada, também estava dando uns 30 espirros por minuto devido a uma alergia a não sei quê. O dia seguinte seria o mais esperado em termos de bandas e eu queria estar cheio de energia para desfrutar de tudo. Na madrugada do segundo dia não houve Mustache Bar para mim. Também já não tinha mais pelos na cara para serem rapados.

O Sábado estava lindo, céu azul e muito calor, do jeito que eu gosto. A mangueira estava sempre aberta para nos refrescar e as sucessivas cervejas garantiam as energias. Não estava com ressaca nem cansado. O dia prometia! A primeira banda começaria às 10:00hs e quase todas as bandas que se seguiam pela tarde eram do meu interesse. Depois de dois dias de convívio, comedeira e bebedeira, eis que chegava o momento de desfrutar das apresentações musicais. Começou com Beton (Metal Punk da Eslováquia). Depois vieram Fear of Extinction (D-Beat de Praga), Warfuck (Grind da França) e Distress (Crust da Rússia). Vi a todos. Excetuando os franceses, já os tinha visto noutras oportunidades. Distress fez um grande show em Praga há uns tempos. Desta vez achei menos potente, talvez por não ter sido num local pequeno mais propício. Estive ali sempre junto ao palco desde às 10:00hs da manhã. Depois de uma pausa, regressei para ver Horse Bastard (Grindcore dos Reino Unido) e Infanticide (Grindcore da Suécia). Não conhecia nenhuma delas, mas fui recomendado a vê-las por um mexicano que conhecera e que estava comigo ali junto ao palco. Valeu a pena, sobretudo porque dias depois voltaria a encontrar as duas bandas em Leiden, Holanda, durante outra gig de Catarro. Gente muito legal que passava o tempo todo gritando “muito doido” - em português mesmo, graças aos catarrentos, que já haviam tocado com eles em Berlim antes de chegarem ao OEF.

Depois veio uma banda de noisegrind japonesa, que na verdade era um duo (baixo e bateria). Uma mulher tocava baixo e berrava. Achei a banda mais estranha e difícil de digerir de todo o festival. Chama-se Sete Star Sept. Não digeri bem, sei lá. A próxima banda que vi foi Simbiose, de Portugal. Já os conheço há mais de uma década e um dos seus álbuns, o Bounded in Adversity, está no meu top 10 dentre todos os álbuns de Crust que já ouvi. Talvez até top 5. Já os tinha visto algumas vezes em Portugal e finalmente estavam ali no OEF. É uma banda com muito potencial. Creio que não têm a atenção que merecem por não serem dos EUA ou da Inglaterra. O show de Simbiose foi o primeiro em que verdadeiramente me diverti no mosh, enquanto tentava fazer o máximo de fotos possíveis. Meses antes do OEF eu contatei o vocalista Johnie para perguntar sobre uma possível passagem por Praga durante a pequena tour europeia que fariam, mas infelizmente não foi possível. Eu tinha muita vontade de trazê-los a Praga e como conheço as três pessoas que mais organizam shows de Crust por aqui, pensei que seria possível, mas a banda não tinha tempo. Menos mal que tocaram no OEF. O som de Simbiose mudou um pouco devido às mudanças na formação, que sempre me pareceu ser instável. O álbum referido anteriormente é brilhante, beira a perfeição, mas nunca consegui digerir bem as gravações posteriores a ele, somente as anteriores. Questão de gosto à parte, foi durante a apresentação de Simbiose que presenciei os momentos mais emblemáticos do festival, quando um punhado de crianças que não tinham sequer dez anos adentraram ali no meio do mosh e algumas delas até subiram no palco. Um garotinho loirinho, de uns cinco anos de idade, esteve ali ao lado do vocalista Johnie por bastante tempo e até proferiu alguns berros no microfone enquanto a banda tocava. Tenho uma foto desse momento que é, na minha opinião, A FOTO do OEF 2013. 

Digam-me, onde, em qual festival, podemos ver criança em shows de música extrema? Onde podemos ver crianças subindo no palco e pulando, fazendo stage diving? Sim, porque até isso aconteceu. A Sonia, uma francesa que dias depois eu voltaria a encontrar em Paris noutra gig de Catarro, tratou de pegar algumas daquelas crianças e colocar no palco e em seguida segurou-as quando deram seus saltinhos, todas sorridentes. Que momento incrível! E como aquelas crianças são corajosas! Eu, com cinco ou mesmo dez anos de idade, morreria de medo e desataria a chorar se alguém me levasse num lugar com gente tão esquisita e barulho tão grotesco. Mas eles, aqueles sacaninhas, estavam se divertindo e não paravam de rir, era como se fosse uma enorme festa de crianças. De fato éramos todos crianças ali, por mais velhos que fôssemos.

Eram 16:00hs quando Simbiose encerrou sua participação e eu comecei a ficar cansado e com sono. Como as bandas seguintes não me interessavam muito, decidi ir à tenda dormir um pouco para garantir energias para a noite. Dormi durante quatro horas. Sete bandas passaram pelo palco enquanto eu encontrava-me algures nos confins dos sonhos. Fui acordado pela Char e pelo Filipe - antes havia pedido para me acordarem quando Krisiun começasse a tocar, caso eu ainda não tivesse acordado. Das sete bandas, parece que preciso lamentar bastante não ter visto os goregrinders alemães Cock and Ball Torture. Consta que fizeram o show mais colorido e divertido do festival, com várias boias e bolas coloridas, fantasias, máscaras e até confetes. Não foi um show, foi uma apresentação carnavalesca. E eu dormindo na tenda...

Quando a Char e o Filipe me acordaram, Krisiun já estava no palco afinando os instrumentos. O meu interesse pela banda surgiu com o último álbum, The Great Execution, um dos melhores que ouvi nos últimos tempos. Estava ansioso para vê-los ao vivo, é uma banda que conheço há muitos anos mas só com o último álbum passei a prestar mais atenção. Bem, talvez pelas expectativas criadas, o show não foi o que eu esperava. Não foi ruim, mas não teve empolgação, foi tudo muito automático. Os três músicos estavam bem distantes uns dos outros e pouco se moviam, permanecendo parados enquanto tocavam com os cabelos cobrindo os rostos. Diria que não assimilaram o espírito do festival e fizeram uma apresentação demasiado rígida. Quando chegou na metade do show tudo parecia meio enfadonho, embora eu tenha subido no palco quando o Gordo (Ratos de Porão) se juntou a eles para cantar Extinção em Massa, música do último álbum que tem sua participação. Mas confesso que subi só para que me fotografassem mesmo.

Depois veio Aborted. Não vi. Estive conversando com a Juliana e seus amigos, todos brasucas do Rio Grande do Sul que vieram à República Tcheca por causa do OEF. Em seguida era a vez dos Ratos (de Porão). Foi aí que me acabei mesmo, eu e a minha “quatrocentinha”. E foi aí que finalmente encontrei o Pedro (Catarro). Andava à procura dos catarrentos desde o primeiro dia e até tentei invadir a área vip reservada às bandas, sem sucesso. Pelo que ouvi, parece-me quase unanimidade que Ratos fez o melhor show do festival. Não sei, questão de gosto. Para quem estava lá no meio da bagaceira toda, sem dúvidas que foi. Eu confirmo isso, embora não tenha estado lá em todos os shows. Ratos tem uma energia especial ao vivo. Só há um álbum deles que costumo ouvir com alguma frequência, que é o Anarkophobia. Mas ao vivo dá mais gosto, parecem mais rápidos e ao contrário de muitas outras bandas, eles soam bem audíveis e inteligíveis. 


Foi muito foda estar ali no meio daquele bando de loucos, tentando proteger o rosto e a câmera das pessoas voando para cima de nós a todo instante. Levei com uma botinada no nariz e nos segundos a seguir ao golpe tive a certeza de que o meu nariz havia quebrado, tamanha eram as dores. Felizmente meu nariz é grande e duro, deve ter rachado a bota. Depois disso decidi subir mais uma vez ao palco enquanto deixei a minha câmera com um desconheci ali do meio do mosh para que tirasse uma foto minha com o Gordo, coisa de tiete mesmo, super poser. Só que os seguranças do OEF que vigiavam o palco não permitiam que ninguém avançasse para além das caixas de retorno, que também serviam para demarcar o espaço de atuação das bandas do espaço em que poderíamos ficar antes de saltar. Pois é, mas que se fode, né? É um festival underground e são apenas alguns segundos. Mas o sacana do segurança não gostou nem um pouco e me pegou mesmo pela gola da camisa e me empurrou para fora, praticamente me jogando sobre as pessoas. Achei a atitude bem exagerada, mas tudo bem. Apenas fica aqui o registro. As bandas que atuam no OEF não são formadas por popstars intocáveis, não deveria haver nenhum problema em bailar ao lado deles por alguns segundos e sobretudo um segurança “amador” que só está ali ajudando os companheiros da cena não deveria pegar alguém pela gola e atirar para baixo. Desde que comecei a ter alguns problemas de saúde ligados à ansiedade e tal, com dores em várias partes do corpo, fiquei bastante receoso em dar pulos do palco durante shows. Antes era uma loucura total, saltava sempre e muitas vezes caia direto no chão, como ocorreu durante o OEF 2009, quando fiquei com um buraco no joelho depois de atirar-me do palco. Tem sido tudo bem diferente nos últimos 18 meses e quando subo num palco para fazer fotos ou fazer gestos para o público, a minha ideia é descer pelo cantinho, sem saltos – embora nas semanas seguintes, durante a tour com Catarro, eu tivesse esquecido um pouco o receio causado pela doença, voando bem alto em vários shows.

O show de Ratos durou uma hora e foi pura energia. O público, que lotava o recinto, ficou realmente em êxtase. Vi a banda seguinte, Exhumed, sem prestar muita atenção. Mas depois veio Agathocles e seu Mincecore. Gostei mais de quando os vi em Portugal há sete anos atrás. Agathocles é o tipo de banda que funciona muito melhor em shows pequenos e apertados. Foi o que achei enquanto os via, talvez devido às lembranças do show que vira lá nas lusitânias. De qualquer forma, Agathocles é uma das fundadoras do Grindcore, uma lenda do gênero e merecem todo o respeito sobretudo pela seriedade e pela forma como encaram a cena e as questões políticas que estiveram na origem do Grindcore. Por isso o vocalista Jan diz que a banda toca Mincecore, para distinguir das bandas de Grindcore voltadas para temáticas de horror e de gore, que para mim não têm o menor interesse.

Em seguida foi a vez de Holocausto Canibal, de Portugal. Conheço o guitarrista da banda, PG, desde 2001, quando saí do Brasil para ir morar lá em Braga, Norte de Portugal. Na época éramos todos adolescentes ainda desvendando o underground. Doze anos depois, estamos no maior festival de música extrema do mundo. O tempo passa...

A banda seguinte foi Wake, do Canadá. Mas eu estava com fome e fui comer rapidinho para não perder a última e mais esperada banda do OEF 2013: Catarro, diretamente de Mossoró, Rio Grande do Norte, Brasil. Eu nem conhecia a banda até o Adelvan escrever sobre o show que fizeram debaixo de um viaduto em Aracaju, como parte de um evento sensacional chamado Clandestino, cuja ideia é mesmo tocar em locais inusitados, sem permissão (leia o que ele escreveu aqui).

O que posso dizer de Catarro? Acho que Adelvan já disse tudo em sua resenha, não há muito mais a acrescentar. É, sem sombra de dúvidas, a banda com atuação mais caótica que eu já vi nessa década e meia de underground. Não há nada igual! Shows de Punk, HC, Crust, Fastcore ou Grindcore costumam ter uma grande energia e agitação do público, certo? Agora imagine o pogo mais agitado que você já viu. Imaginou? Pois é, agora imagine uma banda que consegue ser mais caótica que esse público que você imaginou. Se você não imaginou nenhuma banda é porque nunca viu Catarro ao vivo. É comovedor! Eu fiquei chocado, meio atônito enquanto tentava fotografar tudo o que conseguia mesmo estando meio bêbado e mesmo levando com pessoas voadoras por cima de mim. Como foi o último show do festival e já eram quase 03:00hs da manhã, o “battlefield” não estava lotado, a maioria das pessoas dispersara depois do show de Ratos. Azar delas! Não sabem o que perderam – na verdade alguns até vieram a saber depois, quando encontraram Catarro em suas cidades Europa adentro.

Consta que, durante a apresentação dos meninos de Mossoró, houve uma prática sexual oral no palco. As vídeos gravados não mostram com clareza se houve mesmo ou se não passou de uma encenação, uma brincadeira. De qualquer forma, fica o suspense. Após o show os caras da banda abriram uma mala cheia de merchandising ali na frente do palco mesmo. As pessoas que ficaram até ao fim para vê-los não se arrependeram, estavam todos muito surpresos, como deu para ver em seus rostos. Lembra o que eu disso sobre o show de Ratos ter sido o melhor? Esqueça! Foi o melhor na parte de fora do palco. Na parte de dentro os catarrentos não deram chance para ninguém.

E o OEF nunca mais terá um show de encerramento como o deste ano.

Antes do show de Catarro eu só havia conhecido o vocalista Pedro, que estivera comigo batendo cabeça durante a apresentação dos Ratos. Depois conheci o resto da trupe, tiramos fotos em frente ao palco e a sensação de estar ali com um monte de nordestinos foi muito foda! Depois disso, desencontramo-nos, já que eu estava com os caras de Simbiose na tenda de cerveja e depois...bem, depois sentei-me numa das mesas por ali mesmo e só me levantei dela quando já eram altas horas da manhã e uns malucos chilenos começaram a tocar de forma bem improvisada ali ao lado da tenda de cerveja. Era uma espécie de Jam Session, sei lá. Só sei que ainda tive energias para estar ali dançando com o punhado de malucos que ficaram até aquela hora ali comigo, bebendo e conversando durante toda a noite e toda a manhã. Vimos quase todo mundo que compareceu ao festival ir embora e nós permanecemos. Primeiro estive ali com os membros de Simbiose, depois com os de Holocausto Canibal, com a Char e o Filipe, e por fim, num entra e sai de pessoas, acabei encontrando uns canadenses, uns austríacos, espanhóis e chilenos e estivemos todos ali por horas e mais horas, indo comprar cerveja num quiosque fora do recinto porque dentro já não havia mais, estava tudo fechado.

Entre nós estava também o Jan, vocalista de Agathocles, com quem tive o enorme prazer de conversar durante horas e descobri que ele é um dos seres humanos mais amáveis que já conheci. Que pessoa incrível! Tão atencioso, tão humilde, sincero e lúcido. O cara é vocalista de uma das três maiores lendas do Grindcore mas ele é que me tratava como tal, sempre tão gentil em suas palavras. Certo momento perguntei-lhe: “E aí, Jan, como é trabalhar com pessoas que têm problemas mentais...ups...desculpa, esse não é o termo correto”. Nunca esquecerei sua resposta, pelas palavras e pelo tom sincero que usou, quase implorando por compreensão: “Juliano, aquelas pessoas não têm problemas, a sociedade é que tem problemas”. Jan é o cara! Agathocles é a banda!

Ainda debaixo de um sol escaldante, brincávamos, entre todos, de dar banhos uns aos outros. Uma das austríacas que estava ali, uma de cabelo verde, cujo nome nem me recordo, só faltava dizer “ei, Juliano, é você mesmo que eu quero, não faça cara de desentendido”. A forma como ela me encarava me deixava meio sem graça e eu, sem saber muito bem por que motivo, fingia que não estava captando nada. Até que ela se levanta, pega-me pelo braço e diz-me para irmos buscar algo para beber. Eu fui, mas mais por receio de que ela me batesse. Ela era bonita. Não sei, achava-a atraente, mas tinha um aspecto extremamente imundo. Naquele instante, isso não era problema para mim, eu também não era dos mais limpos, digamos. Mas houve algo nela que me fez recuar. Talvez por seu visual demasiado “squat”. Tenho sempre um pé atrás quando vou me meter com meninas da cena mais politizada, já vi serem armados grandes casos de histeria e acusações de sexismo por absolutamente nada de relevante. Então, por fim, até levei uma rasteira dela e caí no chão enquanto fazíamos uma rodinha de pogo ao som dos chilenos malucos. O Jan disse que ela era uma menininha da mamãe, que tinha um visual muito fodão, vivia em squat, mas recebia papinha da família. Não sei, ela não confirmou, disse que se virava sozinha. Pouco me importava! Acho que foi a primeira vez que me senti atraído por alguém e ao mesmo tempo tentei evitar ao máximo qualquer aproximação física. Talvez tenha sido burro, talvez estivesse apenas bêbado. 

Outra pessoa que me marcou foi um espanhol de Almería, que conheci no segundo dia do festival e que virou um bom amigo, estando também até ao final. Todo esse grupo, incluindo os chilenos da banda cujo nome desconheço, acabou ficando unido e partilhando bebidas e comidas até altas horas da tarde. As minhas costas já estavam assadas e assustadoramente vermelhas. O incrível é que eu não tinha sono! Já passava das 18:00hs quando encontramos um velhinho numa tenda nos oferecendo, de graça, uns panelões enormes cheios de comida vegan. Um velhinho de uns oitenta anos, ali, do nada, nos oferecendo comida. Surreal! Já não sabia se estava muito bêbado ou se estava tendo alucinações devido à insolação. A verdade é que, surpreendentemente, os melhores momentos do OEF foram vividos depois de todos os shows, com gente desconhecida de vários países. Isso não tem preço!

Quando decidi ir embora, com medo de já não haver trem de regresso a Praga – a Char e o Filipe já haviam ido de manhã, quando eu ainda estava no auge da farra toda e àquela hora já estavam num avião de regresso a Portugal -, vi o Jan conversando com os demais membros de Agathocles e outras pessoas, todos numa mesa junto à entrada da tenda de cerveja, onde haveria o after party com cinco bandas, incluindo um set especial de Exhumed. Mas eu lá queria saber de after party! De longe, sorri e fui embora, sem me despedir. Não gosto de despedidas, apenas sorri observando aquele cara tão agradável de se conversar, agradecendo-lhe por existir.

Regressei a Praga de trem, sozinho. Durante a viagem comecei a passar muito mal, parecia beirar o desmaio. Foi quando lembrei que além de ter tomado muito sol durante várias horas seguidas, eu não bebera sequer um copo d'água durante os três dias de festival, enchendo-me de cerveja apenas. Estava, provavelmente, totalmente desidratado. Não havia saliva na boca e a viagem de regresso a Praga duraria umas três horas. Aproximei-me da primeira pessoa que encontrei com uma garrafa de água e pedi-lhe, no meu sofrível tcheco, para que me deixasse beber, pois eu estava passando mal. Era um casal jovem que prontamente deixou-me levar a garrafa de 1,5 litros inteira. Não passaram dez minutos até que eu a esvaziasse. Melhorei um pouco, mas horas depois, em Praga, já na cama tentando dormir, tive alucinações pela primeira vez na minha vida. Tudo o que havia no quarto, sobretudo roupas espalhadas e móveis, transformavam-se em pessoas desfiguradas que tremiam desesperadamente como se estivessem agonizando. Eu é que estava agonizando! Bebi vários copos d'água até que a alucinação diminuiu e eu consegui dormir.


No dia seguinte encontraria os catarrentos no centro de Praga para passear um pouco. Eles estavam com a Sarka e o Jakub, dois checos de Praga que os hospedaram. Nessa noite também dormi na casa deles e no dia seguinte fomos ao Modrá Vopice, onde Catarro tocaria junto com Agrotóxico e duas bandas tchecas. Foi ali que eles tiveram a ideia de me raptarem e me levarem para os demais países da tour europeia. No início recusei e achei a ideia absurda. Na manhã seguinte já estávamos em Amsterdam, na segunda maior ocupação anarquista do mundo.

Mas isso é assunto para outro report. Por enquanto, resta-me dizer que provavelmente já não estarei morando em Praga quando chegar a próxima edição desse festival incrível, mas, esteja onde estiver, quero vir a ele todos os anos, mesmo que para isso seja necessário entrar num avião.

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por Juliano Mattos

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